Elie Wiesel, escritor e Prêmio Nobel da Paz em 1986, esteve no Brasil em março, para mais uma etapa de sua missão: atuar como uma espécie de “consciência crítica”, iluminando com idéias e análises comunidades judaicas espalhadas pelo planeta e a opinião pública internacional.
Nascido em solo romeno em 1928, Wiesel, hoje naturalizado norte-americano, é um sobrevivente dos campos de concentração nazistas que ganhou o Prêmio Nobel pelo conjunto de sua obra , montada para resgatar a memória do Holocausto e defender outros grupos vítimas de perseguições.
Em Brasília, Wiesel foi condecorado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Em São Paulo, fez palestras, encontrou-se com personalidades e foi o personagem principal de um jantar de gala promovido pela Congregação Israelita Paulista, que organizou sua vinda ao Brasil. Em meio a sua agenda carregada, Wiesel, um dos principais intelectuais judeus da atualidade, recebeu a equipe da Morashá para uma entrevista exclusiva.
Morashá - O que poderia ser feito por Israel para melhorar sua imagem junto à opinião internacional, que é tão influenciada pelos meios de comunicação?
Elie Wiesel - O povo de Israel é o povo do livro, um povo que acredita nas palavras e até agora, por algum motivo, um motivo estranho, talvez algum complexo, não lançamos mão de todos nossos recursos nesse plano das palavras. Espero que o novo governo recorra a profissionais de todas as partes do mundo e diga: venham, conheçam, e expliquem o que é tão especial sobre Israel, que Israel não pode aceitar certas condições, que Israel deve pensar antes de tudo em sua segurança, por causa do seus traumas, de condições que não são apenas materiais, mas também espirituais. E há muitas coisas que devem ser ditas, e ditas de uma maneira adequada. Os argumentos de Israel são muito fortes. Em 1947, quando a ONU adotou o plano de partilha, Israel recebeu uma porção muito, muito pequena, mas em nome da paz, Israel aceitou. Outro fato é que Ben-Gurion foi o primeiro e único primeiro-ministro que reconheceu o Estado árabe, logo no primeiro dia, reconhecendo a resolução da ONU. O mundo não sabe disso. E há tantas outras coisas a dizer sobre História, temas sociais e políticos que poderiam ser ditos.
Morashá - Então de que maneira esses aspectos deveriam ser ditos?
E.W. - Novamente, são necessários especialistas para isso, e que, antes de mais nada, creio que não devam se dirigir apenas à imprensa. Existe também a comunidade intelectual. A oposição a Israel vem principalmente da comunidade intelectual, que muitas vezes é dominada por ideologias de esquerda, que vêem Israel como um poder colonialista. Os especialistas devem se empenhar para explicar que Israel não é um poder colonialista, mas uma democracia. E no que se refere à situação atual, está absolutamente claro que nenhum governo, nenhum governo democrático, civilizado, deveria recorrer à violência. Portanto, eu creio que a liderança palestina deve reconhecer isso e declarar uma moratória, afirmando, por exemplo, que durante algumas semanas não haverá um único disparo. Não se pode provocar violência, e esse caminho deve ser condenado.
Morashá - Como o sr. acha que o governo de Ariel Sharon vai encaminhar o processo de paz?
E.W. - Ninguém sabe, nem mesmo Sharon, porque é um gabinete tão diferente. É um governo de união nacional, e, em tempos de crise, eu acho que devem haver tentativas para unir o povo. Mas como Sharon vai acomodar todas as ideologias: há gente do Shas, há Shimon Peres, que é um “pombo”, e existe a sua própria política. Estarei seguindo tudo isso com curiosidade, com muita curiosidade. Estarei em Washington em meados de março para fazer um discurso de abertura no encontro da Aipac, e Sharon virá também nesta época para se encontrar com George W. Bush. Então eu vou perguntar a ele todas essas questões!
Morashá - Como o sr. avalia as relações entre a Diáspora e Israel? A Diáspora deve se envolver em política israelense?
E.W. - A relação Israel-Diáspora está melhor agora, mas ainda não é boa, não é suficiente. Temos as raízes disso na história. O movimento da aliya era um movimento tão idealista, que eu admiro. Mas o fato é que quando Israel nasceu, poucos judeus fizeram aliya, inclusive eu. Essa é uma questão de fundo psicológico, por que não o fizemos, especialmente pessoas religiosas, tradicionalistas, que rezam diariamente para Jerusalém. Eu já me coloquei essa questão várias vezes, mas não gosto quando outros a fazem para mim. Eu passei a ir a Israel ano após ano e, no começo, como eu falo hebraico, pensavam que eu era israelense e não me colocavam essa pergunta. Mas quando eu me identificava, me perguntavam porque eu não fazia aliya. Havia uma certa atitude, não de todos, mas geralmente de intelectuais, que nos desprezavam, que nos olhavam como judeus de segunda classe. Eu não gostava disso, mas eu me sinto tão ligado a Israel que não falava nada sobre isso. Eu tenho colegas que pararam de ir a Israel, que diziam “por que preciso ir a Israel para ser insultado”? Mas agora muita coisa mudou. Eu estive em Israel durante a Guerra do Golfo, quando o Iraque disparava mísseis Scuds contra Israel. Antes que os Scuds começassem a cair, o aeroporto estava cheio de israelenses que não estavam voltando, mas partindo. Partindo! Muitos me perguntaram então: as pessoas estão partindo, por que você veio? Eu simplesmente sentia que devia estar em Israel naquele momento. No entanto, a imprensa local foi ultrajante. Os ataques a judeus da Diáspora foram escandalosos. Havia coisas como “judeus da Diáspora, se vocês não vierem agora, fiquem onde estão”. Esse tipo de atitude é perigosa, somos um povo pequeno, não podemos nos dar ao luxo de ter essa divisão. Mas a situação está melhor agora.
Morashá - Por que ela melhorou?
E.W. - Eles perceberam que (essa situação) não é boa para eles e não é boa para nós. Eles entenderam que existem aqueles que querem permanecer judeus, onde quer que estejam, e que é importante deixar que seja assim. É nossa escolha, são nossos problemas, é a nossa complexidade. Sharon, por exemplo, desde que eu o conheço, e já o encontrei diversas vezes por intermédio de amigos comuns, tem dito, ao longo de anos, “eu me considero primeiramente um judeu”, um judeu em Israel, e ele não é único a dizer isso, que fala de necessidade de uma identidade judaica de inclusão, não de exclusão. Por isso tenho esperanças de que teremos melhoras.
Morashá - E a relação da Diáspora com a política israelense?
E.W. - Acredito realmente que não devemos interferir. Eu escrevi isso num texto meu publicado recentemente no The New York Times. Mas isso não significa que às vezes eu não me posicione sobre alguns temas, que coloque alguma posição quando me encontro com líderes israelenses. Onde acho que poderíamos interferir? Em educação. Quero dizer influenciando universidades, faculdades, escolas de ensino médio, en-viar professores, trazer professores, organizar intercâmbios, entre outras iniciativas.
Morashá - O sr. acredita que para os judeus na Diáspora a assimilação é um problema mais grave do que o anti-semitismo?
E.W. - Eu não vejo o anti-semitismo como um grande problema, e sim como um fator que incomoda e que em alguns lugares chega a ser perigoso. Claro, há casos de ataques contra judeus, há certa violência, mas, em geral, no cenário mundial, não vejo o anti-semitismo como um grande problema. Quanto à assimilação, eu não a sinto. Eu leio as estatísticas, eu as conheço. Os dados são horríveis. Em alguns lugares, o índice de casamentos mistos chega a 60%. Mas eu não vejo isso no meu dia-a-dia. Só encontro os “bons judeus”, ainda tenho de encontrar um judeu assimilado.
Morashá - Mas o sr. vive nos Estados Unidos.
E.W. - Eu viajo muito. Faço, nos Estados Unidos, pronunciamentos a pelo menos 100 mil pessoas por ano nas grandes universidades! Não encontro os judeus assimilados, mas claro que acompanho as estatísticas. Acho que enfrentar a assimilação é sobretudo responsabilidade da comunidade, não do indivíduo. Precisamos criar em nossas comunidades um clima para mostrar que há muito estímulo intelectual, estímulo moral para ser judeu hoje em dia. Você pode ter certeza que não vai enfrentar o tédio se for judeu! Temos que mostrar a beleza que existe em nossas fontes, nossos recursos, nossas contribuições, nossos dilemas.
Morashá - Se o sr. tivesse a chance de rever a sua vida, há algo que o sr. deixou de fazer e que gostaria de ter feito? Ou algo que não gostaria de ter feito?
E.W. - Sem dúvida se não tivesse ocorrido a guerra, eu teria permanecido em minha pequena cidade natal. Minha ambição era me transformar num professor talmúdico e num comentarista, escrever livros sobre isso. Eu realmente acabei dando aulas, mas não sobre aqueles temas. No entanto, hoje, eu abriria mão de tudo que tenho, de tudo que conquistei, para ficar naquela pequena cidade, se isso representasse evitar a tragédia que se abateu sobre nós. Eu teria preferido ficar onde estava. Mais tarde, em minha vida, hesitei entre música e filosofia. Durante certo tempo, pensei em ir ao conservatório para me tornar um maes-tro, trabalhar com coros. No meu coro, havia lindas garotas, e eu me apaixonava por todas, uma de cada vez, é claro! E nunca tinha coragem de dizer a elas que estava apaixonado, e por isso perdi todas as oportunidades. Eu era tão tímido, muito tímido, tinha uns 18 ou 19 anos e vivia em Paris. Anos mais tarde, fui dar uma palestra na Austrália, e uma mulher se aproximou de mim e me perguntou: você se lembra de mim? Disse o seu nome e lembrei-me dela; ela era tão bonita, e eu fui tão apaixonado por ela. Ela então me falou: você se lembra que nós todas éramos apaixonadas por você? Passei noites sem dormir pensando no que havia perdido! Então, pensando novamente sobre o que deixei de fazer, acho que foi a música, o resto teria feito de novo.
Morashá - O sr. é um intelectual com profundo comprometimento religioso. Como o sr. vê a relação entre produção intelectual e religiosidade?
E.W. - Você pode aliar as duas coisas. Se alguém vem a mim e me diz que quer fazer uma tese, obter um PhD num estudo sobre o Rabi Akiva, e o outro quer fazer sobre Nietzsche, você acha que um é mais intelectual do que o outro? Vamos ver, o que é um intelectual? É alguém que é aberto, cuja mente esta aberta a novas idéias e que deve estar pronto a hesitar antes de tomar uma decisão de natureza intelectual, que se pergunte se consultou todas as fontes, que pense que se consultar outra fonte pode chegar a uma conclusão diferente. Um intelectual está sempre buscando, pesquisando.
Morashá - Como deve ser a relação entre Fé e Ciência?
E.W. - Antigamente, a Ciência costumava ser contrária à Fé, mas agora elas podem vir juntas. Dois anos atrás, fui convidado para dar uma palestra numa base da Nasa (a agência espacial norte-americana) sobre misticismo. Não entendia porque eles queriam que eu fosse. Não entendo nada sobre Ciência. Vocês não têm idéia de como sou fraco nessa matéria! Seria reprovado em qualquer exame. E perguntei a eles o que queriam da minha palestra. Eles me disseram que estavam trabalhando em estudos de como seria a Ciência dentro de cinqüenta anos e chegaram a um obstáculo, a uma parede, que não conseguiam mais avançar, que a imaginação se esgotou. E me disseram que por isso é que gostariam de ouvir sobre misticismo, porque isso poderia ajudá-los em seu trabalho.
Morashá - O século 20 testemunhou ondas de violência, como as duas guerras mundiais, genocídios, como o Holocausto, do qual o sr. foi vítima, além de matanças, por exemplo, na Bósnia e em Ruanda. Por que o século 20 foi assim?
E.W. - Nessa virada de milênio, tive que dar algumas palestras sobre o assunto, o que me levou a uma pesquisa. Queria saber como era o estado de espírito das pessoas em 1899. E descobri que nunca tinha havido tanto otimismo sobre o próximo século, acreditava-se que o século 20 seria o melhor de todos. Politicamente, eu acho que a Primeira Guerra Mundial já sinalizou que havia algo errado. Veio o Tratado de Versalhes, e a Alemanha foi humilhada como nação. E nunca se deve humilhar uma nação! Se uma nação é derrotada, ela deve tirar lições disso. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha foi derrotada, o que fizemos? Um Plano Marshall. Além disso, o século 20 conviveu com duas ideologias totalitárias, comunismo e nazismo, que eu não gosto muito de comparar, porque acho, em última análise, o nazismo pior. Mas o que elas têm em comum? A negação do indivíduo. No mundo comunista, a pessoa era uma abstração. Líderes como Stálin e Lênin foram responsáveis pela morte de milhões de pessoas, tudo “em nome da história”. Isso, em linguagem política, era descrito com a frase “o fim justifica os meios”. E por que os judeus foram vítimas? É uma das questões mais antigas do mundo, estamos falando do mais antigo preconceito na História: o anti-semitismo.
Morashá - E o que podemos esperar do século 21?
E.W. - Eu gosto de citar Camus. Ele disse que a escolha está entre ser um pessimista sorridente ou um otimista lacrimoso. Quando estou muito otimista, para mim basta fechar os olhos para me tornar muito pessimista. E quando estou muito pessimista, abro os olhos e me torno muito otimista. Mas quando penso que tenho de escolher entre as duas opções, fico com a do otimismo. Não tenho o direito de cair no desânimo.