Há 150 anos, em 2 de maio de 1860, nascia em Budapeste Theodor Herzl, o estadista judeu que não teve a felicidade de conhecer o estado que idealizou. “Se não for em cinco anos, certamente em cinqüenta, os judeus terão seu próprio estado”, vaticinou em 1897.

Sua profecia se concretizaria. Em 1947 se votava a “Partilha da Palestina” e, pouco depois, o pequeno Estado de Israel declarava sua independência.

Theodor Herzl, uma figura controversa de personalidade complexa, conhecia como poucos os meandros da vida pública européia; mas era muito infeliz em sua vida pessoal. Húngaro de nascimento, culturalmente alemão e austríaco por naturalização, o precursor do sionismo sempre foi retratado como um judeu assimilado, no entanto, extremamente sensível diante do amargo destino dos judeus.

O pensamento de Herzl se sustentava na convicção de que os judeus deviam obter seu próprio Estado com a cooperação de governos em que fermentava o anti-semitismo. “Patrocinem nosso esforço para que suas mãos não se manchem de sangue quando houver uma eclosão bárbara de ódio aos judeus”, dizia Herzl aos governantes, dentre eles o Kaiser alemão e o Sultão turco. A maioria dos judeus, contudo, não via, como ele, a tempestade que se aproximava. Inclusive muitos dos judeus encaravam o movimento sionista por outros ângulos, aspirando outras prioridades, entre estas, a empatia com as idéias socialistas.

Enquanto Herzl incluía no seu programa sionista a solução de problemas sociais e culturais, ele reforçava a necessidade de salvar aqueles judeus que estivessem em situação de perigo imediato ou previsível, em futuro próximo. Foi assim que seguidores como Max Nordau e Wladimir Z. Jabotinsky deram total prioridade à saída de judeus das zonas em que era latente o perigo de vida.

Herzl registrou suas idéias sobre o futuro do Povo Judeu na obra Der Judenstaadt (O Estado Judeu), publicada em 1895. A seguir, nossa reflexão mencionará alguns trechos dessa famosa obra e a vigência de suas principais idéias nos dias 
atuais.

Judenfrage, instituições e possíveis territórios

Em “O Estado Judeu”, Theodor Herzl traça um plano sistemático para resolver o que ele mesmo denominaria deJudenfrage ou questão judaica. Segundo ele, “a questão judaica existe em todo lugar em que os judeus vivem, por menor que seja seu número”.

“Compreendo o anti-semitismo, que é um movimento complexo. Em minha qualidade de judeu, encaro este movimento sem ódio e sem medo. Para resolver a questão judaica é preciso transformá-la numa questão política universal, regularizada pelos conselhos dos povos civilizados”. Passados mais de 100 anos desde que Herzl registrou estas palavras, constatamos que muito pouco mudou, pois o anti-semitismo ainda está latente na Europa, principalmente pelo ódio disseminado pelo Irã contra o jovem Estado de Israel.

Herzl idealizou duas instituições para direcionar os judeus até o novo território. A primeira era a “Society of Jews”, entidade destinada a negociar politicamente um território. A segunda era a “Jewish Company”, órgão responsável pela liquidação total dos bens e fortunas dos imigrantes judeus, bem como pela organização da vida econômica no novo país. Esta última instituição funcionaria como uma espécie de banco imobiliário à disposição dos candidatos decididos a se mudar para o novo Lar Nacional. De fato, a idéia era nobre, porém sua concretização requeria, por parte dos judeus, uma alta dose de confiança e credibilidade. Ela não vingou.

A Organização Sionista Mundial e a Agência Judaica tentaram trilhar esse caminho, mas fugindo propositalmente do formato das instituições herzlianas.Para Herzl, o lugar geográfico para o estabelecimento da nação judaica era irrelevante. Cogitou seriamente alternativas tais como Uganda, El-Arish (Egito), Argentina e a então Palestina otomana. Seu livro “O Estado Judeu” discute detalhadamente as duas últimas: “A Argentina é, por natureza, um dos países mais ricos da Terra, de imensa superfície, população escassa e clima temperado, e teria o maior interesse em nos ceder uma porção de seu território”.

A priori, o momento histórico era propício à idéia de Herzl, pois a JCA (Jewish Colonization Association), do Barão Hirsch, havia comprado terras na região. No entanto, após alguns contatos, o Programa Argentina caiu no ostracismo. Para Herzl, a idéia de obter a então Palestina do Sultão tinha mais consistência: “A Palestina é a nossa eterna pátria histórica. A simples citação de seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo. Se Sua Majestade, o Sultão, nos conceder a Palestina, nós nos comprometeremos a sanear as finanças da Turquia”.

Segundo Theodor Herzl, os sionistas formariam um bloco aglutinador contra a primitiva Ásia: “Constituiríamos a vanguarda da cultura em sua luta contra a barbárie”. Assim, continuava Herzl, “manteríamos relações com toda a Europa, que, por sua vez, teria de garantir nossa existência”. 

E a Europa aceitaria de bom grado a existência dos judeus? Quão errado estava o precursor do sionismo! Desde os primórdios do século 20 até hoje, a Europa continua registrando o maior índice de anti-semitismo, e seus países censuram qualquer atitude adotada pelo Estado de Israel.

Jornada de trabalho e operários

Não menos importante para Herzl era definir a jornada de trabalho no país que queria criar. Inicialmente, registra que “a jornada normal terá sete horas de trabalho”. Logo depois, entende que a árdua tarefa de podar árvores, cavar a terra, carregar pedras e realizar diferentes trabalhos braçais requerem 14 horas de labuta. Ele fala ainda em organizar “equipes de trabalho que serão substituídas a cada três horas e meia”.

A previsão de Herzl era precisa. Os primeiros kibutzim estabelecidos entre 1909 e 1947 organizaram longas jornadas de trabalho, com mais de 14 horas, alternando-se os turnos de trabalho (mishmarot) entre todos seus membros.

Herzl sabia perfeitamente que, inicialmente, os judeus mais abastados e intelectualizados não afluiriam ao novo Estado. Portanto, seu apelo inicial é dirigido aos operários judeus não-qualificados da Rússia e Romênia, conclamando-os ao trabalho para construir seu Lar Nacional. Ele sabia das dificuldades e alertava dizendo que, com “o passar do tempo, essas construções provisórias serão substituídas por outras melhores”. Ainda esclarecia que “o trabalho desses operários não-qualificados os tornará donos das casas, sempre que demonstrarem bom comportamento durante três anos”.

Historicamente, as primeiras levas migratórias chegadas por volta de 1882-1923 eram constituídas por judeus sionistas socialistas. Somente a partir da 5ª Aliá (1933-1935), oriunda da Alemanha do Terceiro Reich, aparecem os primeiros profissionais liberais, comerciantes e pequenos industriais.

Leis e regimes políticos

Que tipo de leis haveria no novo Estado? A preocupação de Theodor Herzl com as leis a serem promulgadas também é profunda. A “Society of Jews” teria como tarefa principal encarregar a um renomado corpo de juristas os trabalhos de legislação. Mas, como julgar os novos imigrantes? Com certa dose de ingenuidade, Herzl aclara que para o período de transição ao novo Lar, “pode-se aceitar o princípio de que cada um dos judeus imigrantes seja julgado  com as leis do país de origem, até o momento de emigrar. Em seguida, a tendência será pela unificação da administração da justiça”.

A idéia não era utópica e contou com apoio incondicional de vários advogados próximos a Herzl. Para estes juristas as leis adotadas deveriam ser dinâmicas, utilizando o que existia de melhor em matéria de codificação, atendendo também às rígidas exigências dos tempos modernos. Atualmente, as leis do Parlamento de Israel (Knesset) encontram sustentação nas leis bíblicas e nas leis britânicas já existentes no país durante o Mandato Britânico, entre 1917-1947.

E qual seria o regime político a ser incorporado ao novo Lar Nacional dos judeus? Haveria uma constituição que definiria o rol do Estado a ser construído? Herzl não parece ter plena certeza de qual seria o regime político mais adequado para o futuro país. Ele discute os melhores e os piores. Contudo, deixa claro que fosse qual fosse o regime escolhido, caberia a ele redigir a mais moderna constituição. “Considero a monarquia democrática e a república aristocrática as formas de governo mais perfeitas”, sempre em equilíbrio total, disse Herzl. Para ele, as instituições monárquicas possibilitavam uma política conseqüente e preservavam os interesses do Estado nacional. Por outro lado, Theodor Herzl tinha plena consciência de que o Povo Judeu não mais poderia restaurar sua monarquia, extinta há milhares de anos.  E a democracia? Por acaso não havia democracias na Europa? O conceito de democracia não é aceito de bom grado por Herzl. Para ele, sem o útil contrapeso de um monarca, a democracia atua sem moderação e “leva à tagarelice parlamentar e engendra a odiosa classe dos políticos profissionais”, criando assim um regime pouco eficiente e sem limites. Certamente, Herzl tinha em mente o parlamentarismo britânico. Para ele, assíduo leitor de Montesquieu, “a base da democracia é a virtude”, encontrada em muito poucos regimes da época.

Rabinos, idiomas, exército e bandeira

Mesmo não sendo uma pessoa religiosa, Herzl pensou longamente na função que teriam os líderes religiosos e rabinos na empreitada rumo ao novo Lar Nacional judaico. Para ele, “cada grupo de judeus terá seu rabino, que (por sua vez), acompanhará a sua congregação. Todos se agruparão livremente e o grupo local se reunirá em torno de seu rabino”.

Herzl acreditava que os rabinos seriam os primeiros a entender e se entusiasmar com a causa (sionista), contagiando os demais judeus a partir do púlpito. “Não é preciso convocar assembléias onde se perde tempo com palavras vãs e ociosas. Isto (falar do sionismo) será intercalado no serviço religioso”, declarava Herzl com toda convicção.

Esta afirmação tampouco se constatou e, de fato, os primeiros a se dirigirem à então Palestina foram judeus não religiosos do Leste europeu, especialmente da Polônia e Rússia. Na obra “O Estado Judeu”, Herzl aborda o possível idioma oficial do novo Estado. Pergunta ele retoricamente: “Haveremos de falar hebraico?”. E imediatamente responde: “Quem, entre nós, sabe hebraico suficiente para pedir um bilhete de trem? Não há quem saiba fazê-lo”.

A sugestão do precursor do sionismo é simples: cada judeu conservará  seu próprio idioma que representa a pátria de seus pensamentos. A Suíça é citada por Herzl como um ótimo exemplo de federalismo lingüístico, ou seja, uma nação onde convivem cidadãos que falam diversos idiomas. Aqui vem inserida uma idéia bastante difícil de aceitar: “Os judeus devem amar com melancolia as pátria da qual foram expulsos”. Esta regressão herzliana sobre a língua a ser adotada, encerra-se com a seguinte afirmativa: “O idioma que vier a ser o mais útil na vida cotidiana será imposto, sem violência, como o principal”. Herzl falhou categoricamente ao fazer esse comentário, pois o hebraico moderno se converteu rapidamente na língua oficial do Estado judeu. Atualmente, os israelenses vão às compras em hebraico, amam em hebraico e investem seu dinheiro na bolsa em hebraico.

Para Theodor Herzl, “o Estado judeu deve ser concebido como um Estado neutro, que necessita apenas de um exército profissional dotado de instrumentos de guerra modernos para poder manter a ordem tanto no exterior quanto  em seu interior”. Esta foi outra das tantas imprecisões do precursor do sionismo. Contrariamente, o Estado de Israel construiu seu próprio exército (Tzahal, o Exército de Defesa de Israel), para o qual existe a obrigatoriedade do serviço militar para homens e mulheres. Há também a possibilidade da carreira militar. Além disso, o Tzahal criou sua própria indústria armamentista, denominada Refael (Reshet Pituach Emtzaei Lechimá), para não depender de fornecedores externos, em circunstâncias adversas.

Em relação à bandeira a ser adotada pelo novo Estado, Herzl errou novamente. Sem negar a necessidade de que os judeus fossem conduzidos através da força de um símbolo nacional, ele imaginou “uma bandeira branca com sete estrelas douradas. O campo branco significaria a nova vida, pura; enquanto as estrelas simbolizavam as sete horas douradas da jornada de trabalho, pela qual os judeus se dirigiriam ao novo país”.

Tal bandeira jamais vingou; sequer foi colocada em votação entre os sionistas. Num dos congressos, foi rapidamente substituída por outra, proposta pelo líder sionista David Wolfsohn, inspirada no talit, o xale ritual judaico, de fundo branco e duas franjas azuis, com a estrela de David, o Maguen David, também em azul.

Palavras finais

Theodor Herzl foi, sem dúvida alguma, o precursor e visionário do Estado judeu. Durante os últimos 10 anos de sua vida lutou com todas as forças para que a idéia de um Lar Nacional para o Povo Judeu se concretizasse.  Neste breve artigo pudemos constatar que “O Estado Judeu” de Herzl é também um livro de imprecisões e prognósticos inexatos. Contudo, precisamos entender que se trata de uma obra polêmica, de grande valor histórico; totalmente pioneira na busca sistemática de um plano de ação que solucione de forma definitiva a complexa Judenfrage na Europa.

Em um de seus últimos escritos, Theodor Herzl pediu para ser enterrado ao lado de seu pai, “até que um dia o Povo Judeu leve meus restos mortais para a Palestina”. O pedido se concretizou somente em 1949. Ele repousa hoje no alto do Monte Herzl, de onde se avista uma das mais belas paisagens de Jerusalém. Seu corpo não foi levado para a então Palestina e sim para o recém-estabelecido Estado de Israel. Foi para este país imaginário do qual ele sequer chegou a ser cidadão, que Herzl dedicou os últimos anos de sua curta vida.

Morreu em 3 de julho de 1904, aos 44 anos, deprimido e debilitado, sem saber o forte impacto causado por suas idéias.

Prof. Reuven Faingold é historiador e educador. PhD pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Professor titular da pós-graduação no Departamento de Artes Plásticas da FAAP em São Paulo e Ribeirão Preto. É ainda sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.

Bibliografia:

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Bein, Alex, Theodore Herzl: A Biography of the Founder of the Modern Zionism. Translated by Maurice Samuel, 1941.
Ghivelder, Zevi, Theodor Herzl, cem anos do sonho à realidade. Morashá 45, junho de 2004, págs. 34-37.
Hertzberg, Arthur, The Zionist Idea. New York 1959. Reimpressão de 1997. 
Herzl, Theodor, O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Mercaz-Wizo-Brasil, 1954.
Kornberg, Jacques, Theodor Herzl: From Assimilation to Zionism, Indiana University Press, 1993.
Laqueur, Walter, A History of Zionism, London, Weidenfeld and Nicolson 1972.