Um homem dedicado a décadas de luta e responsável por uma herança indelével na história. Simon Wiesenthal, morto em setembro passado, aos 96 anos, dedicou sua vida à busca por justiça e à defesa dos direitos e da dignidade humana. Sua fama de "caçador de nazistas" percorreu o planeta, assim como sua mensagem universal para o futuro, sobre a importância de preservar a memória do Holocausto, combater o ódio e evitar novos genocídios no mundo.

Com o falecimento de Wiesenthal, um sobrevivente do Holocausto, foi-se um símbolo e um porta-voz da batalha por não esquecer horrores do passado e por impedir sua repetição no futuro.

"Eu me lembro intensamente de quando conheci Simon Wiesenthal em maio de 1997, em Viena, bem no começo de meu primeiro mandato como secretário-geral", relatou Kofi Annan em seu discurso, numa homenagem em Nova York, dias depois da morte do "caçador de nazistas". "Embora ele tivesse uma idade bastante avançada, fiquei marcado pela tremenda energia com que levava adiante seu trabalho. Impressionou-me também sua capacidade de manter em sua mente, ao mesmo tempo, memórias de um passado terrível e esperanças por um futuro melhor".

As palavras de Kofi Annan me soaram muito familiares. Também me lembro claramente do momento em que ouvi, pela primeira vez, a voz de Wiesenthal. Falávamos ao telefone, quando ele me perguntou: "Você consegue chegar a Viena na quinta-feira?". Respondi sim, de imediato. Corria o ano de 1992 e eu morava em Moscou, onde trabalhava como correspondente da Folha. Obtive o telefone do Centro de Documentação Judaica, quartel-general da luta de Wiesenthal na capital austríaca, e disquei o número. Uma secretária atenciosa, depois de eu me apresentar, passou o telefone ao "caçador de nazistas". Sua proposta de nos reunirmos na Áustria, dentro de poucos dias, soou como música para mim. Mal desliguei, passei a arrumar a mala e a preparar a logística da viagem.

Em meio à intensa cobertura da desintegração do império soviético, decidi tentar entrevistar Wiesenthal. Fui guiado não apenas pela sensibilidade jornalística. Não tinha dúvidas sobre o interesse que a conversa despertaria e sobre o espaço que esta obteria no jornal. Ganhou uma página inteira na nobre edição dominical. Queria conversar com Wiesenthal para ter sua orientação e, sobretudo, inspiração para como lidar pessoalmente com uma sensação inédita para mim: a proximidade, muito intensa e concreta, de lembranças do Holocausto e da II Guerra Mundial, por conta de minha vivência em Moscou e em regiões da Europa oriental. Claro que tinha uma forte noção dessa tragédia histórica, por meio de relatos familiares e de estudos, mas era diferente entrar em contato mais direto com as marcas do passado naquele cenário europeu.

Pude, por exemplo, ter acesso e manusear os livros de registro de prisioneiros de Auschwitz, que estavam em arquivos soviéticos recém-abertos. Era impressionante e horripilante ver a maneira metódica como os nazistas tratavam suas vítimas. Em outra reportagem, acabei conhecendo - e me tornando amigo pessoal - do general Vassily Petrenko, um dos comandantes do Exército vermelho que libertaram o campo de extermínio de Auschwitz. Visitei também Babi Yar, uma ravina em Kiev, capital da Ucrânia, onde os nazistas assassinaram milhares de judeus.

Conviver com os russos de idade mais avançada significava ouvir as experiências trágicas impostas pela II Guerra Mundial. Também fui envolto por reminiscências daquele período quando realizei uma viagem por ex-repúblicas soviéticas, em busca de informações sobre meus antepassados, e para conhecer terras de onde vieram meus avós. Em solo bielorrusso, mais precisamente na região de Pinsk, localizei a casa onde, durante a guerra, havia morado um primo de meu avô, que se instalou posteriormente em Israel. Naquela construção humilde, vivem hoje camponeses cristãos que, de início, receberam a mim e a meus pais com muita desconfiança. Quebrado o gelo inicial, demonstraram hospitalidade. Um de meus anfitriões levou-me para dar uma volta pelo vilarejo e, quando passávamos por um terreno bastante irregular, ele me avisou: "Caminhe com mais cuidado, estamos sobre uma vala comum onde os nazistas enterravam suas vítimas".

Todas essas experiências intensificaram em mim a já existente sensação de comprometimento com os esforços para preservar a memória do Holocausto e de comprometimento, também, com as iniciativas por justiça e por combate ao ódio e a genocídios. Conhecer Wiesenthal se tornou imperioso. Entrei no acanhado Centro de Documentação Judaica de Viena e logo fiquei impressionado com as pilhas de livros e documentos que dominavam aquelas três salas. O espaço escasso era ainda dividido por Wiesenthal e uma equipe de três funcionários. Na rua, o quartel-general era denunciado apenas pela presença de um policial armado à porta do prédio. A proteção era conseqüência de uma bomba que havia explodido em junho de 1982 à porta da casa de Wiesenthal. O autor do ataque, um alemão, acabou preso e condenado a cinco anos de prisão. Também foram detidos vários neonazistas austríacos envolvidos no atentado.

Quando ouvi as palavras de Kofi Annan sobre Wiesenthal, lembrei que eu havia guardado a mesma impressão do "caçador de nazistas": um dínamo de vitalidade e de lucidez, apesar da idade avançada. Mesmo depois de ter completado 90 anos, Wiesenthal freqüentava seu local de trabalho diariamente, com uma impecável pontualidade. O trabalho, no entanto, havia mudado. Em vez de mergulhar nas investigações que o mobilizaram durante décadas e resultaram na prisão de mais de mil criminosos de guerra, Wiesenthal passou a se dedicar, num sinal dos tempos, a passar seu rico e vasto arquivo para o computador.

Wiesenthal nasceu em 31 de dezembro de 1908, em Buczacz, na região da cidade de Lvov, hoje parte ocidental da Ucrânia. O anti-semitismo modelou muitos momentos de sua juventude, como quando tentou ingressar no Instituto Politécnico de Lvov. Foi barrado por conta das cotas impostas a estudantes judeus. Mas conseguiu se formar engenheiro pela Universidade Técnica de Praga, em 1932. Quatro anos mais tarde, casou-se com Cyla Mueller e passou a trabalhar num escritório de arquitetura, em Lvov. A cidade, um importante pólo da vida judaica na Europa oriental, foi ocupada pelos soviéticos em 1939, após Hitler e Stalin, por meio de um pacto de não-agressão, decidirem dividir a Polônia de então. Com a chegada dos comunistas, começaram os expurgos de "elementos burgueses e contra-revolucionários". O padrasto e o irmão de Wiesenthal foram vítimas da perseguição. O jovem arquiteto teve de fechar seu negócio e trabalhar numa fábrica. Conseguiu escapar da deportação para a Sibéria, junto com sua mulher e mãe, ao subornar um comissário da NKVD, antecessora da famigerada KGB.

Em 1941, após Hitler romper o pacto de não-agressão com a URSS, os nazistas chegaram a Lvov. Um novo pesadelo se abateu sobre os Wiesenthal. A mãe de Simon, em agosto de 1942, foi enviada ao campo de extermínio de Belzec. Já em setembro daquele ano, uma trágica constatação: os nazistas haviam assassinado a maioria dos familiares de Simon e de sua mulher. No total, 89 integrantes da família foram massacrados.

Cyla sobreviveu graças a um acordo de Simon com a resistência polonesa. O arquiteto fez e entregou mapas, úteis para operações de sabotagem, dos entroncamentos das estradas de ferro. Em troca, sua mulher recebeu documentos falsos, transformando-a na polonesa "Irene Kowalska", que viveu em Varsóvia dois anos, depois de ser retirada do campo de concentração com ajuda da resistência.

Simon Wiesenthal passou por diversos campos de concentração. Foi libertado em 5 de maio de 1944, quando as tropas norte-americanas chegaram a Mauthausen, na Áustria. Sua saúde era extremamente precária. Estava à beira da morte.

No final de 1945, Simon e Cyla se reencontraram. Ambos achavam que o outro cônjuge tinha morrido. No ano seguinte, nasceu Pauline, filha do casal. Saúde restaurada e família reestruturada, Simon Wiesenthal mergulhou na tarefa de recolher provas sobre as atrocidades nazistas para serem usadas nos julgamentos de criminosos de guerra. Também se dedicou a ajudar sobreviventes e refugiados em solo europeu.

Em 1947, após encerrar sua colaboração com os norte-americanos, Wiesenthal e mais 30 voluntários criaram o Centro de Documentação Histórica Judaica em Linz, na Áustria, também com o intuito de recolher evidências e informações sobre o nazismo e seus seguidores. O trabalho incansável daqueles idealistas foi duramente golpeado pelo acirramento da Guerra Fria, já que Washington e Moscou, mobilizadas na sua disputa, demonstravam cada vez menos interesse em perseguir criminosos de guerra. O centro de Linz acabou fechando, em 1954, quando seus arquivos migraram para o Instituto Yad Vashem, em Jerusalém. No entanto, no ano anterior, Wiesenthal havia recebido uma informação sobre o paradeiro de Adolf Eichmann, o coordenador da "Solução Final". Ele vivia, sob nome falso, em Buenos Aires, e não em Damasco, como muitos acreditavam. O "caçador de nazistas" passou a informação a Israel. Agentes israelenses capturaram Eichmann em solo argentino, em 1960, e levaram-no a julgamento em Israel. Foi enforcado em 31 de maio de 1961.

"Busco justiça, não vingança", costumava dizer Wiesenthal. Sobre sua motivação, ele afirmava: "Quando a história olhar para trás, quero que as pessoas saibam que os nazistas não puderam matar milhões de pessoas e ficar impunes". Ele também escreveu o seguinte: "Sobreviver é um privilégio que significa obrigações. Estou sempre perguntando a mim o que posso fazer por aqueles que não sobreviveram. A resposta que achei para mim (e que não precisa necessariamente ser a mesma para todo sobrevivente): eu quero ser seu porta-voz; quero manter sua memória viva e assegurar que os mortos sobrevivam naquela memória".

Encorajado pela captura de Eichmann, Simon Wiesenthal decidiu reabrir o Centro de Documentação Judaica, agora em Viena. Na lista dos quase 1,1 mil criminosos de guerra que ele levou à Justiça, está, por exemplo, Karl Silberbauer, responsável pela prisão da menina holandesa, Anne Frank. Em 1963, quando localizado, o ex-homem da Gestapo trabalhava na polícia austríaca.

Os tentáculos de Wiesenthal chegaram ao Brasil, com a captura de Franz Stangl, que foi comandante dos campos de concentração de Sobibor e Treblinka, na Polônia. A investigação durou três anos. Stangl foi extraditado para a Alemanha em 1967 e, condenado à prisão perpétua, morreu no cárcere. Outro caso célebre ocorreu em solo norte-americano. Certa feita, Wiesenthal foi aos Estados Unidos para divulgar o lançamento de seu livro de memórias. Na viagem, anunciou ter localizado, em Nova York, Hermine Ryan, que supervisionou a matança de centenas de crianças no campo de Majdanek. Extraditada para a Alemanha em 1973, foi julgada e condenada à prisão perpétua.

Em 1977, foi criado o Centro Simon Wiesenthal, organização judaica que se transformou em referência internacional nos esforços para preservar a memória do Holocausto, defender direitos humanos e promover ações contra racismo, anti-semitismo, genocídio e terrorismo. Conta com mais de 400 mil famílias como filiados, mantém sua sede em Los Angeles e escritórios em Nova York, Toronto, Miami, Jerusalém, Paris e Buenos Aires.

A obra de Wiesenthal, portanto, continua. Prosseguem buscas por criminosos de guerra. Reforçam-se as iniciativas por organizar e divulgar informações relativas às causas que modelaram a ação de uma das figuras mais marcantes das últimas décadas. Simon Wiesenthal morreu em 20 de setembro de 2005, enquanto dormia em seu lar, em Viena, e foi enterrado em Herzlya, Israel.

O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim.