O sol começava a impor sua luz em tons de vermelho sobre o deserto do Sinai quando o ônibus no qual eu me encontrava, junto com outros jornalistas, estacionou junto a uma grande tenda de lona cercada por tanques e veículos militares que compunham o cenário da guerra do Yom Kipur, em 1973. Ao fundo da tenda havia uma mesa e cavaletes que exibiam alguns mapas.
Atrás da mesa, falando num microfone, um jovem oficial nos transmitia informações: “Saindo daqui e seguindo em frente, chega-se até o canal de Suez, que nosso exército já atravessou e assim temos uma base militar instalada no Egito. Seguindo à direita, nada há de especial. Mas, para a esquerda, chega-se até a cidade de Suez, metade da qual está em nosso poder. Circulem à vontade, mas é sempre bom tomar cuidado porque algum avião egípcio pode surgir de súbito e causar problema”.
Àmedida em que o oficial falava, percebi que sua voz me era familiar. Com certeza jáa tinha ouvido mais de uma vez. Quando o militar terminou sua instrução, aproximei-me e perguntei de imediato: “Você é o Topol, não é?” Ele riu e respondeu: “Como é que você me reconheceu?” Disse que tinha sido pela voz porque o havia aplaudido no teatro em Londres, anos antes, como protagonista do musical Violinista no Telhado e porque já tinha assistido duas vezes ao filme do mesmo nome. Ele então parafraseou a fala que interpretava ao término do monólogo da canção Tradição, apresentada na introdução do espetáculo: “Como você poderá observar, nossa situação nessa guerra ainda é tão incerta quanto a de um violinista num telhado”.
Saímos da tenda e ele sugeriu que seguíssemos em seu jipe, para percorrer uma estreita estrada de asfalto até a cidade de Suez. Estava tudo calmo por causa do cessar-fogo acordado no dia anterior. Mas, foi impactante ver, num pequeno barraco junto àestrada, os corpos de quatro soldados egípcios. Suas faces estavam totalmente enegrecidas por causa do sol a que estavam expostos já havia pelo menos três ou quatro dias. Aproximamo-nos de um deles que tinha ao lado uma mochila. De dentro da mochila, Topol tirou um caderno no qual havia anotações de problemas de álgebra. Em seguida, caminhamos até os escombros de uma casa bombardeada, na entrada de Suez, na qual numa parede ainda intacta se destacava uma fotografia de Gamal Nasser. Ambos concordamos que, apesar da derrota por ele sofrida na Guerra dos Seis Dias, o líder egípcio seria cultuado para sempre.
Voltei para Tel Aviv e Topol permaneceu nas cercanias do canal de Suez. Aquele dia marcou o início da nossa amizade que se estenderia por quase 50 anos.
Não foi uma amizade com uma frequência regular. Só nos encontrávamos pessoalmente quando eu viajava para o exterior, além de uma semana em que estivemos juntos no Rio de Janeiro. O sintoma mais intrínseco da nossa mútua amizade é que, depois de algum tempo sem nos vermos, retomávamos conversas como se as tivéssemos interrompido apenas no dia anterior e eu me acostumei a chamá-lo somente de Chaim, seu primeiro nome.
Para ele, Londres era a segunda melhor cidade do mundo, “porque a primeira é Tel Aviv”, conforme insistia em repetir. Em Londres, Topol era uma consagrada celebridade, onde tinha a vantagem de não ser reconhecido na rua porque sua aparência física nada tinha a ver com o personagem Tevie, do musical Violinista no Telhado, que representava no palco e como exibiu no cinema. Quando fez Tevie em Londres, pela primeira vez, tinha 33 anos de idade, enquanto seu personagem, por força do enredo, teria pelo menos 60 anos. Para isso, compunha o personagem com uma peruca, barba e bigode grisalhos e um enchimento em torno do torso.
Em Londres, tinha dois restaurantes preferidos: o Bloom’s, de comida judaica, que não mais existe, e o sofisticado Lebanese Restaurant, na Edgware Road, cujo falafel, segundo afirmava, superava qualquer outro, mesmo o feito em Israel. Vê-lo entrar no Lebanese era um espetáculo à parte. Além da ruidosa recepção do dono e do maître, xeques e emires se deslocavam até sua mesa para cumprimentá-lo e cobri-lo de elogios.
Chaim Topol nasceu em Tel Aviv no dia 9 de setembro de 1935, filho de uma família russa com longa tradição religiosa e sionista da corrente revisionista, o Betar. No entanto, Topol não gostava de falar de política e mantinha relações de amizade com os líderes do Partido Trabalhista, em especial com Shimon Peres.
Com 14 anos de idade começou a trabalhar como tipógrafo no jornal diário Davar, no qual fez suas primeiras ilustrações. Por conta disso, ao longo dos anos acabou desenvolvendo particular habilidade como desenhista. A essa atividade se dedicou por toda a vida, presenteando os amigos com desenhos artísticos, anos atrás reunidos num belo livro.
Quando foi servir ao exército engajou-se no grupo de entretenimento Nahal, onde começou a fazer sucesso a par de dirigir os companheiros. O grupo até hoje existe com prestígio: dezenas de cantores e atores israelenses nele começaram suas carreiras. Foi no Nahal que conheceu Galia, uma morena atraente, dona de um sorriso sempre colado na face, com quem foi casado por 67 anos. O casal teve três filhos.
O salto de Topol para a fama verdadeira aconteceu em 1964, quando interpretou o personagem Sallah Shabati no filme do mesmo nome. O filme se passa numa maabará, como eram chamados os acampamentos provisórios que abrigavam imigrantes de todos os cantos do mundo. Predominavam sobreviventes do Holocausto na Europa e judeus resgatados de países árabes, absorvidos por Israel logo depois da independência.
Topol representava um jovem resgatado de um país árabe, apegado às suas seculares tradições, e inteiramente alheio aos costumes daquela nação com grande contingente secular que acabara de nascer. Mas Shabati era um homem de meia-idade, inteligente e ardiloso, que sabia encontrar de forma hilariante as mais simples soluções para os mais complexos problemas de sobrevivência que enfrentava, conferindo ao filme um êxito espetacular, inclusive com repercussão internacional.
Naquele mesmo ano estreava na Broadway o musical Violinista no Telhado, com Zero Mostel no principal papel, espetáculo inspirado em personagens criados pelo escritor Scholem Aleichem, cuja obra é um tesouro da literatura em idioma iídiche. Seu sucesso foi tão monumental que o espetáculo ficou em cartaz durante oito anos, com 3.242 representações. Variando os protagonistas, teve mais cinco novas encenações na própria Broadway, além de versões em países de todos os continentes em diferentes idiomas. No Brasil, o primeiro Violinista foi representado em 1971, com Oswaldo Loureiro no papel principal. Houve nova encenação em 2011, com José Mayer vivendo Tevie.
O Violinista estreou em Israel no ano seguinte ao da Broadway, no teatro Alhambra, em Jaffa, numa produção idêntica à de Nova York, tendo como protagonista o ator israelense Bomba Tsur, que deu conta do recado. Meses depois ele foi substituído por Shmuel Rudensky, ator icônico do grupo teatral Habima, pioneiro desde os anos 1930 nas apresentações em língua hebraica. Rudensky adoeceu após algum tempo em cena e Topol foi chamado para substituí-lo por dez semanas.
Enquanto isso, o mítico diretor Hal Prince, responsável pela encenação na Broadway, assistiu ao filme Sallah Shabati. Ficou impressionado com o desempenho de Topol e custou a acreditar que aquele personagem quase sexagenário pudesse ter sido interpretado de forma tão expressiva por um rapaz de pouco mais de trinta anos. Prince começava a planejar o Violinista que seria apresentado em Londres e resolveu chamar Topol para um teste. Ficou impressionado com o seu domínio do personagem central, mas não lhe escondeu a dúvida no sentido de escalá-lo para um papel no qual teria que interpretar um personagem com cerca do dobro de sua idade. Topol não se intimidou. Com típica impetuosidade israelense, disse a Hal Prince que o fator idade era inexistente para um bom ator e, além do mais, os recursos de maquiagem existiam justamente para dar veracidade a qualquer idade, em uma atuação teatral.
Havia, porém, outro obstáculo: para se apresentar num palco de primeira linha em Londres, o inglês falado por Topol estava longe de ser suficiente. O diretor resolveu apostar nele e contratou um fonoaudiólogo que, durante três meses, o treinou para reproduzir o acento britânico. Ao mesmo tempo, Topol passou a ouvir sem cessar a gravação em disco da performance de Mostel. Em seguida, chegou a Londres o coreógrafo e também diretor Jerome Robbins, que recomendou a Topol que deixasse de lado o conteúdo da gravação porque pretendia compor um Tevie menos cômico do que Mostel e com mais intensidade dramática. Enfim, Violinista no Telhado abriu o pano em Londres no dia 16 de fevereiro de 1967, no teatro Her Majesty’s, e Topol conquistou a aprovação da crítica e do público de formatãoarrebatadora que os ingressos para os meses seguintes foram sendo esgotados em proporções cada vez maiores.
No dia 5 de junho daquele ano, Topol convocou uma entrevista coletiva de imprensa para anunciar que, como reservista, havia sido convocado para o exército de Israel em face de uma guerra iminente. Portanto, teria que abandonar o espetáculo e retornaria conforme os acontecimentos se desdobrassem. O assunto ganhou as primeiras páginas dos jornais britânicos e os tabloides populares, com seus tradicionais exageros, saudaram Topol como um herói em potencial. No transcurso da Guerra dos Seis Dias a imprensa persistiu em aludir à participação do ator no conflito. Na segunda quinzena de junho, quando retornou ao palco do Majesty’s, voltou a ganhar as primeiras páginas.
Nos anos seguintes, continuou interpretando Tevie no palco, um personagem que já era sua segunda pele. O musical esteve em mais de um teatro e uma noite, ali pelos anos de 1980, ele me levou para assistir ao espetáculo no Apollo Victoria, um teatro magnífico com mais de três mil lugares. O sucesso foi maior do que o de sempre. Quando, no final, Topol veio à boca de cena para agradecer aopúblico, foi saudado com uma ovação acrescida de gritos e assovios que se sobrepunham aos aplausos convencionais. A ovação de certo se prolongou por mais de dez minutos. Foi um triunfo raramente vivido por um algum artista em alguma época.
Em meados de 1970, o diretor Norman Jewison começou a montar a produção do Violonista para o cinema. Era óbvio que o Tevie do filme seria Zero Mostel, o criador do papel no palco. Jewison, porém, julgou que Mostel transbordaria o personagem por causa de seu carisma. Já tinha assistido a Topol em Londres e não cogitou em mais ninguém para o papel. As filmagens foram realizadas no interior da antiga Iugoslávia, sendo historicamente impecável a reprodução de uma pequena aldeia judaica tal como as que existiam no leste da Europa até serem destruidas pelos nazistas na 2a Guerra Mundial. Topol lembrava as filmagens com mais tristeza do que alegria porque a atriz Norma Crane, que fazia o papel de Golde, mulher de Tevie, ficou muito doente durante os trabalhos e morreu dois anos depois da conclusão do filme.
Mais uma vez aclamado por sua interpretação no filme, Topol foi indicado para melhor ator no Oscar de 1972. Era uma competição muito difícil, na qual concorria com quatro grandes nomes: Gene Hackman, Peter Finch, Walter Matthau e George C. Scott. A estatueta coube a Gene Hackman pelo personagem Jimmy “Popeye” Doyle no filme The French Connection (Operação França). Visto hoje, em perspectiva histórica, o trabalho de Hackman se esvaiu na voragem do cinema, enquanto o de Topol permanece emblemático. Ficou para o Tevie na mesma dimensão de perpetuidade, sem fazer comparações diretas, com que Sir Laurence Olivier ficou para Hamlet, Orson Welles para Cidadão Kane ou Gene Kelly para Cantando na Chuva.
Ao longo do tempo, Topol evitava falar sobre a sua experiência na disputa do Oscar, mas a frustração decerto lhe marcou. Ele não gostava da atmosfera que cercava a indústria cinematográfica em Hollywood, onde atuou em dois filmes que, em nada, o gratificaram do ponto de vista artístico, embora tivesse desempenhado bons papéis: Flash Gordon e como protagonista em Galileo, convite que só aceitou porque o diretor era Joseph Losey, um dos nomes mais cults em Hollywood. O filme foi mal de público e de bilheteria.
Só voltou ao cinema dez anos depois do Violinista porque as filmagens teriam Londres como base. Fez um personagem secundário chamado Columbo, no filme For Your Eyes Only (Somente Para Seus Olhos), ao lado de Roger Moore, mais uma das extravagantes aventuras de James Bond-007. Viajou mundo afora para promover o filme e assim veio parar no Rio de Janeiro, em 1981, acompanhado de duas Bond girls, moças bonitas que na verdade eram apenas figurantes. Dava para perceber que todo o empreendimento lhe desagradava, sobretudo quando tinha que posar com as moças para fotografias na imprensa ou com elas dividir a tela na televisão.
Organizei para ele um jantar no qual convidei mais de uma dezena de atrizes e atores brasileiros interessados em conhecer e trocar ideias com o astro do Violinista. O Dr. Albert Sabin, que também se encontrava no Rio, compareceu ao encontro e foi mais uma atração para os convidados naquela noite. A certa altura, quando o Loureiro entrou na sala, Topol foi ao seu encontro, abraçou-o e disse: “Eu percebi que o Tevie do Riosópodia ser você”.
No decorrer de sua carreira, Topol foi um infatigável trabalhador do teatro cujo talento dava a impressão de se avolumar cada vez que pisava no palco. Depois das centenas de representações, em Londres, chegou sua hora na Broadway, onde lotou todas as sessões numa longa temporada. Retornou àInglaterrapara novos sucessos. E, a rigor, nunca saiu dos palcos. Em 1989, quando o espetáculo comemorou seu 25º aniversário, fez uma turnê que, de costa a costa e de norte a sul dos Estados Unidos, percorreu 30 cidades. Em toda a excursão, a atriz Michele Marsh, que tinha feito o papel de sua filha mais velha no filme, atuou como Golde, sua mulher. Na ocasião, ele comentou: “Foram minhas melhores atuações porque eu estava na idade compatível com a idade do meu personagem”. Terminou a excursão em Nova York com uma longa temporada no teatro Gershwin. Em seguida, acertou uma turnê pelas maiores cidades da Austrália. Dessa vez, sua filha Adi representou no palco uma das cinco filhas do leiteiro. Como sempre, o ponto alto dos espetáculos acontecia quando Topol entoava a canção “Se eu fosse rico”, que, na versão para o hebraico, ganhou um pequeno desvio, porém significativo: “Se eu fosse um Rothschild”.
Apesar da sequência de trabalhos, sempre encontrou tempo para voltar a Israel e, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, participou de mais de uma centena de eventos de apoio a seu país. Nos últimos dez anos preferiu ficar a maior parte do tempo em Tel Aviv. Há doze anos, alegando cansaço de viagens, recusou um convite dos produtores brasileiros Cláudio Botelho e Charles Möeller para comparecer à estreia da nova encenação do musical no Rio de Janeiro, onde pretendiam lhe prestar uma grande homenagem.
Em Israel, continuou participando de filmes, seriados, programas de televisão e se dedicou a atividades humanitárias voltadas para crianças. Estive com ele pela última vez em Tel Aviv, poucos anos atrás. Rindo muito, fez uma revelação: “Lembra daqueles mapas na tenda no Sinai? Nada tinham a ver com a situação militar. Eu os desencavei e os coloquei ali só para impressionar vocês da imprensa”.
Topol partiu no dia 8 de março de 2023 depois de sofrer durante um ano do mal de Alzheimer. Em meados de abril, a mídia israelense publicou reportagens segundo as quais, conforme informações divulgadas pela própria família, Topol teria agido durante anos como agente do Mossad, o serviço de inteligência de Israel. Havia, inclusive, a descrição de uma arriscada operação feita na embaixada europeia de um país árabe, executada na companhia de Zvi Malkin, um dos sequestradores de Eichmann na Argentina. Malkin foi meu amigo durante longos anos e nem ele, nem Topol, jamais deram a entender que se conheciam. De todo modo, é difícil contestar ou endossar a narrativa da família, que fica agregada a Topol como mais uma possível virtude.
Chaim Topol assinalou sua despedida de Tevie, o leiteiro, num espetáculo representado em 2009, em Israel. No decorrer de sua carreira, viveu seu imortal personagem 3.543 vezes, cada qual como se fosse uma estreia. Sem ele, o mundo do teatro – e de todos nós – está bem menor.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.