Um dos nomes mais importantes da história judaica contemporânea encontra luzes escassas a iluminar seu nome. Responsável por salvar parcelas expressivas do povo judeu das perseguições e da miséria.
Maurice de Hirsch patrocinou um amplo leque de iniciativas filantrópicas responsáveis pela construção de comunidades e escolas judaicas a partir do século 19 em locais tão distintos como Brasil, Israel, Estados Unidos, Turquia, Argentina e Canadá. Uma trajetória impressionante que lhe valeu o epíteto de “o Barão da Tzedacá”.
A mão do barão Hirsch deixou marcas indeléveis na história da comunidade judaica brasileira. Fundou em 1891, na capital britânica, a Jewish Colonization Association, conhecida pela sigla JCA, envolvida na emigração de judeus da Europa oriental, para viver no Rio Grande do Sul no começo do século passado.
“Sua morte foi lamentada em todas as sinagogas do mundo judaico, das estepes da Rússia aos rios do Rio Grande”, escreveu Jean-Philippe Schreiber, professor da Universidade Livre de Bruxelas. Prosseguiu o texto: “Ele, cujo nome era conhecido por todos os judeus, onde quer que estivessem; ele, cujo sobrenome era sinônimo de generosidade e compaixão, o sinal anunciador de uma dignidade enfim recuperada”.
Maurice de Hirsch nasceu a 9 de dezembro de 1831, em Munique. A situação de sua família contrastava com a pobreza e as limitações impostas à grande maioria das comunidades judaicas da Europa do século 19. O avô entrou para a história como o primeiro judeu a possuir terras na Bavária; seu pai, banqueiro, recebeu o título de barão em 1869. A mãe, Karoline Wertheimer, responsabilizava-se por supervisionar que o filho recebesse aulas densas de hebraico e de judaísmo.
Bruxelas, em 1855, testemunhou o casamento de Maurice de Hirsch com Clara Bischoffsheim, filha do fundador de outro robusto banco da época. O noivo conhecia bem a capital belga, pois havia estudado lá em sua juventude. Nas frequentes andanças pelo velho continente, Londres e Paris despontavam como destinações frequentes para um homem de negócios que se movimentava com impressionante facilidade pela aristocracia da época.
Inquieto, Maurice de Hirsch ampliou os horizontes financeiros de sua família e, segundo algumas estimativas, chegou a ter uma das cinco maiores fortunas da Europa naquele momento. O século 19 apresentava como um dos empreendimentos mais cobiçados e rentáveis a construção e exploração de estradas de ferro. E, dono de visão aguda, o barão Hirsch percebeu uma oportunidade dourada em paragens orientais do continente. Mergulhou, em 1869, na construção de uma ferrovia entre duas importantes capitais imperiais: Viena e Istambul (Constantinopla).
A tacada mostrou-se bem-sucedida. O grande empreendedor judeu se aproximou muito das autoridades otomanas, o que resultou no apelido de “Turkenhirsch”, explorado por seus inimigos e por pasquins antissemitas franceses. Além dos recursos acumulados nas finanças e no mercado de açúcar e de cobre, o patrimônio do barão Hirsch listava a administração de ferrovias que incluiu a origem da lendária Orient-Express.
O roteiro das viagens passou, portanto, a incluir o império otomano. Maurice de Hirsch contratou alguns dos melhores engenheiros da Europa, supervisionando as obras com impressionante determinação. “É nessa visitação assídua à Turquia que ele descobre de verdade a miséria do povo judeu”, relatou o jornalista e escritor Pierre Assouline no livro “A Megillah do Barão Maurice de Hirsch ou a Glória da Filantropia”. “O estranho é que essa miséria poderia ter- lhe sido revelada de forma mais dramática ainda mais proximamente, ao visitar terras da Europa do leste e da Europa central”.
Apesar do contato direto com a pobreza judaica em terras otomanas, não há dúvidas de que as notícias de pogroms e perseguições em cenários russo, polonês ou romeno também estimularam ainda mais o barão Hirsch a se aprofundar no caminho da filantropia, em especial no plano comunitário. Sua mulher, Clara, já se dedicava a atividades de cunho social antes mesmo do casamento. E uma tragédia familiar, em 1887, reafirmou o compromisso da família com a ação humanitária. Naquele ano, Lucien, então único descendente direto, morreu de problemas pulmonares, aos 31 anos de idade. “Meu filho eu perdi, mas não meu herdeiro”, escreveu o pai enlutado. “A humanidade é minha herdeira”.
A morte de Lucien mudou radicalmente os hábitos do casal. Deixaram de ocorrer as festas frequentes no salão de baile da casa na parisiense rue de l`Elysée, onde os Hirsch possuíam um complexo arquitetônico imponente, com ares de palácio real. Mantinham ainda uma residência em terras húngaras, como espécie de refúgio, e em Londres.
Em 1873, catorze anos antes da morte do filho Lucien, o barão faz uma grande doação à Aliança Israelita Universal, entidade que, entre as suas várias frentes de atuação, atraiu o filantropo por conta da ênfase no trabalho de educação judaica. Manteve, por vários anos, contribuições polpudas à instituição francesa de auxílio a judeus em situação de risco.
Porém, os projetos mais ambiciosos da filantropia de Hirsch ainda estavam por vir. O barão passou a se preocupar cada vez mais com a situação dos judeus sob o tacão do czarismo, que viviam uma realidade significativamente mais áspera do que as comunidades no império otomano. O primeiro projeto, de 1885, consistiu em criar um fundo educacional, preparando-os para enfrentar os crescentes desafios da vida moderna. O alvo desse auxílio era a massa de judeus pobres que vivia em pequenas aldeias, conhecidas como “shtetls”, em iídiche.
O poder czarista impôs uma condição para aceitar o projeto: ter o controle da aplicação dos recursos. Contrários à exigência, Maurice de Hirsch e seus assessores chegaram à conclusão de que restava apenas a alternativa da emigração. E passaram a trabalhar por ela.
O barão apostava numa reorganização do perfil socioeconômico daquelas comunidades, voltadas sobretudo a atividades comerciais e artesanais de pequena escala, livrando-as, por exemplo, da proibição de se dedicarem à agricultura. Emissários do projeto estudaram comprar terras e viabilizar o assentamento dos refugiados em países como Argentina, Brasil, Canadá e México.
De olho principalmente no chamado Novo Mundo, a recém-criada JCA buscava implementar a missão definida em seu estatuto: “Ajudar e promover a emigração de judeus de qualquer parte da Europa ou da Ásia – e principalmente de países nos quais eles podem estar sujeitos a qualquer tributação especial ou limitações políticas ou de outra natureza – para qualquer parte do mundo, e formar e estabelecer colônias em várias partes da América do Norte e do Sul e outros países, para fins agrícolas, comerciais ou outros”. Em 1892, em São Petersburgo, formou-se um braço da iniciativa, para viabilizar o projeto em cooperação com as autoridades russas.
O barão Hirsch incluiu ainda os EUA como destino com relevância para auxiliar imigrantes. Ajudou também iniciativas em Israel, à época sob domínio otomano. Mas avaliou que o local mais adequado, naquele momento, para receber judeus que desejavam sair do jugo czarista no curto prazo era a longínqua Argentina. Colônias também foram organizadas no Canadá.
A JCA planejava apenas no primeiro ano da sua ação nos pampas, em 1892, levar 25 mil refugiados. Conseguiu, no entanto, apenas um décimo do objetivo. Ao longo das várias décadas de atuação, o projeto de colônias judaicas na Argentina, como Moisesville, a maior delas, nunca chegou a ter uma população superior a 33 mil pessoas.
O projeto também estendeu seu braço ao Brasil, chegando aqui após a morte do barão Hirsch, com a criação de núcleos como Philippson e Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Essa onda migratória atingiu seu ápice entre 1904 e 1914. Ao longo dos anos, num processo semelhante ao ocorrido na Argentina, as colônias se diluíram, com o êxodo de seus habitantes a centros urbanos. Hoje, há apenas alguns resquícios da presença judaica em rincões dos pampas argentinos e terras gaúchas.
Maurice de Hirsch faleceu a 21 de abril de 1896, quando visitava terras húngaras. Clara, sua mulher, ainda manteve as atividades de cunho social, até morrer três anos depois. Do outro lado do Atlântico, o “The New York Times” noticiou a morte do barão, no dia seguinte, com destaque. “Sua filantropia era tão ilimitada quanto sua fortuna”, sentenciou o obituário publicado no diário norte-americano.
O Jornalista Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.