O ano de 2023 assinala o 50º aniversário da guerra do Yom Kipur e 45 anos da morte de Golda Meir. Pioneira e um dos alicerces do ressurgimento da nação de Israel, os desígnios da história inseriram seu nome no foco das controvérsias sobre a dita guerra, o momento de maior perigo vital sofrido pelo país, deixando em segundo plano outros momentos cruciais na existência torrencial dessa mulher que foi um mito ainda em vida.

ARQUIVOS ABERTOS

O filme em recente exibição pelo mundo, que tem Golda Meir como figura central, é rigorosamente fiel à verdade dos fatos ocorridos durante a Guerra do Yom Kipur, sobretudo quando aborda as tensas reuniões do gabinete por ela comandado. Um mês antes do 50o aniversário daquele dramático conflito, os Arquivos do Estado de Israel publicaram uma coleção abrangente de milhares de documentos, fotos, gravações e vídeo que proporcionam uma visão aprofundada da forma pela qual a guerra foi conduzida, com ênfase nas principais falhas da inteligência israelense na avaliação da possibilidade de o país enfrentar um conflito armado. Muitos documentos sobre as tomadas de decisões, anteriores e durante a guerra de 1973, já vinham sendo publicados ao longo dos anos. Mas, o extenso material agora reveladonão pode ser tomado como definitivo porque ainda conserva fechados alguns poucos arquivos. Por ora, um portal disponível apenas no idioma hebraico exibe cerca de 3.500 arquivos contendo centenas de milhares de páginas, 1.400 documentos originais em papel, 1.000 fotos, 750 gravações, 150 minutos de deliberações do governo e oito videoclipes. Alguns dos documentos fornecem registros de deliberações entre Golda Meir e os chefes militares e assessores civis nos dias e horas antes de que a Síria e o Egito lançassem uma guerra coordenada no dia 6 de outubro de 1973, quando a população de Israel se encontrava recolhida em centenas de sinagogas, devotada às orações do Yom Kipur, o Dia do Perdão.

Na tela, Golda renasce através da excepcional atriz britânica Helen Mirren e o filme vira pelo avesso a atuação de Golda durante a guerra. A certa altura, a intérprete diz uma frase que justifica e sintetiza a difícil trajetória da primeira-ministra durante o conflito: “Eu sou um político, não sou militar”. Na verdade, dentre os chamados Pais da Pátria, Golda se impôs por suas determinadas posições políticas e por sua convicção no sistema trabalhista. No entanto, apesar dos incontáveis desafios enfrentados pelo yishuv (comunidade judaica na Palestina Britânica), Golda jamais teve uma participação efetiva nos assuntos militares. Ao contrário dela,  Ben-Gurion possuía um instinto inato para atuar nessa área e não hesitava em discordar das opiniões de seus generais, com surpreendentes decisões acertadas.

Golda Mabovitch (Myerson depois de casada, Meir depois de se radicar na Eretz Israel), nasceu em Kiev, Ucrânia, em 1898. Foi imigrante no estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, e naturalizada cidadã americana. Era sionista ardorosa desde a juventude, tendo transitado com habilidade por meandros e injunções no núcleo dirigente do movimento sionista, para cujo fortalecimento percorreu continentes. Foi proeminente no sindicalismo do yishuv e no partido majoritário Mapai. Ocupou diferentes ministérios no governo de Israel, até ascender à chefia do governo do país, em 1969. Em sua primeira entrevista coletiva no novo posto, um jornalista lhe perguntou: “Como, sendo mulher, a senhora se sente na qualidade de primeiro-ministro?” Respondeu: “Não sei dizer, porque nunca fui homem primeiro-ministro”.

Embora Israel tivesse alcançado uma vitória fulminante, dois anos antes, na Guerra dos Seis Dias, o país não estava em paz quando Golda assumiu o governo. Nas margens do Canal de Suez se desenrolava a chamada Guerra de Atrito, uma situação que exigia permanente estado de alerta, inclusive com o deslocamento de tropas através do deserto do Sinai. Porém, a situação militar de Israel mantinha indícios consistentes de estabilidade.

Dentre os documentos agora tornados públicos, há uma insólita revelação segundo a qual o rei Hussein, da Jordânia, se havia encontrado com Golda secretamente, numa casa nos arredores de Tel Aviv, no dia 25 de setembro de 1973, ou seja, 12 dias antes do início da Guerra do Yom Kipur. O monarca disse à primeira-ministra estar convencido de que o Egito e a Síria estavam prontos para desfechar uma guerra contra Israel, com vistas à retomada do deserto do Sinai e das Colinas do Golã. Explicitou que seu país não se engajaria no conflito, mas, como muçulmano, não poderia obstar a passagem de blindados sírios por seu território, rumo ao ataque contra Israel. Disse, ainda, ter muita vontade de que a Jordânia fizesse a paz com Israel. (A paz entre os dois países foi assinada 21 anos mais tarde, em 26 de outubro de 1994).

Não se sabe com quais membros de seu gabinete e das forças armadas Golda teria compartilhado a reunião mantida com o rei Hussein. O mais provável, em face dos acontecimentos subsequentes, é que a hipótese de uma guerra tivesse sido descartada pela maioria dos dirigentes consultados.

Reproduzo, doravante, um apanhado do que escrevi nestas páginas, há cinco anos, por ocasião do 45o aniversário da Guerra do Yom Kipur, porque desde então os acontecimentos históricos permanecem imutáveis.

Na manhã do dia 2 outubro, portanto quatro dias antes do início do conflito, Golda Meir teve que fazer uma viagem a Estrasburgo, França, para participar de um encontro com o Conselho da União Europeia. No aeroporto, antes de embarcar, foi informada de que a Síria tinha reunido grande quantidade de tropas junto à sua fronteira com o Golã e o Egito tinha feito o mesmo na margem do canal de Suez. Entretanto, ao mesmo tempo, um relatório do Serviço de Inteligência dizia que a movimentação síria se devia ao temor de um ataque por parte de Israel e que o Egito não poderia empreender qualquer agressão antes de duas semanas.

Golda regressou a Israel pouco depois da meia-noite e convocou uma reunião para a manhã seguinte com Moshe Dayan, ministro da Defesa, os generais Elazar e Shalev, do Estado-Maior, e Benny Peled, comandante da Força Aérea. Todos concordaram que não havia um perigo imediato de guerra. Mesmo assim, Golda convocou uma reunião do gabinete no qual informou que estava pensando em convocar os reservistas, que constituíam 80% das forças armadas; mas nenhum ministro concordou.

O general Bar-Lev, até o ano anterior comandante do Estado-Maior, lhe disse: “Você está aqui cercada pelos militares mais experientes do país. Nenhum deles julga conveniente chamar a reserva. Só você, que é civil, está insistindo nisso”.

Golda, então, convocou Eli Zaira, chefe do Serviço de Inteligência Militar, para uma reunião na manhã seguinte à celebração do Yom Kipur. Nesse meio tempo, enfatizou ao gabinete que era preciso concluir a lista de pedidos de armamentos e munições a ser encaminhada ao presidente Nixon, acentuando a urgência da remessa. Porém, antes da hora acertada, Zaira foi ao encontro de Golda e lhe disse ter recebido uma notícia preocupante: as famílias dos consultores e assessores soviéticos estavam partindo às pressas do Cairo e de Damasco. Zaira acrescentou estar surpreso em face do comportamento do chefe do Mossad, Zvi Zamir, que havia deixado o país horas antes, ainda de madrugada.

Golda ignorava que Zamir estava ausente de Israel numa hora tão crucial, mas imaginou que, decerto, ele tinha ido ao encontro de alguma fonte muito importante, o que de fato aconteceu, conforme se ficou sabendo. Zamir tinha embarcado para Londres para falar pessoalmente com Ashraf Marzan, um cidadão egípcio que atendia pelo codinome Anjo em seu conluio com o Mossad. Marzan, genro do falecido presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, informou a Zamir que no sábado, dia 6, Egito e Síria lançariam um ataque contra Israel. Da embaixada israelense em Londres, o chefe do Mossad enviou uma mensagem criptografada para seu gabinete em Tel Aviv a ser imediatamente repassada para a primeira-ministra.

Às quatro horas da manhã de sábado, depois de receber a mensagem de Zamir oriunda de Londres, Golda ordenou a convocação dos reservistas. Às duas horas da tarde do sábado, 6 de outubro, os sírios e egípcios partiram para o ataque contra Israel.

A ofensiva árabe foi bem-sucedida e a primeira semana da guerra resultou num pesadelo para Israel. Os membros do gabinete e os comandantes militares mantinham posições divergentes, em face das quais Golda mantinha serenidade, ao mesmo tempo em que se comunicava aflita com Henry Kissinger, insistindo na remessa de armamentos e de aviões do tipo Phantom 50, essenciais para a defesa do espaço aéreo israelense. Os debates se intensificaram a partir da presença do general Ariel Sharon, que insistia em cruzar o canal na direção do Cairo, um plano que já havia concebido anos antes para a eventualidade de Israel ser atacado. A maioria dos chefes discordou, argumentando que Arik, como era chamado, seria responsável por uma catástrofe militar. Ele só contou com o apoio de Dayan e de Golda. A travessia do canal comandada por Arik foi um êxito notável e mudou o panorama do conflito por ter resultado no cerco ao Terceiro Exército egípcio e consequente cessar-fogo, que posicionou Israel em condição de indiscutível superioridade.

Tão logo o cessar-fogo foi efetivado, Golda voltou sua preocupação para concretizar o pidyon shvuim, um conceito milenar no Judaísmo, referente à libertação dos cativos. Segundo o Talmud (extensa compilação de ensinamentos judaicos), o pidyon shvuim é uma ação meritória que se sobrepõe à maioria das outras porque trata da liberdade e da dignidade do ser humano. Golda permaneceu fiel à tradição segundo a qual em caso de um judeu se tornar prisioneiro, é obrigação de sua comunidade fazer de tudo para libertá-lo, seja pagando um resgate ou negociando com os captores. A devoção de Golda ao pidyon shvuim era tão constante que ela começava todas as reuniões do gabinete perguntando: “Quantos mortos? Quantos feridos? Quantos estão cercados no canal? Quantos estão prisioneiros? Como é possível salvá-los?”

Em sua autobiografia, escreveu: “Mesmo no pior daqueles primeiros dias, quando já sabíamos das perdas que estávamos sofrendo, tive completa fé em nossos soldados e oficiais, no espírito das Forças de Defesa de Israel e em sua capacidade de enfrentar qualquer desafio. Nunca perdi a fé em nossa vitória final. Sabia que mais cedo ou mais tarde venceríamos, mas, cada informe sobre o preço em vidas humanas que estávamos pagando, era como uma faca sendo encravada no meu coração e jamais esquecerei o dia em que ouvi a previsãomais pessimista até então ouvida”.

A guerra causou um impacto tão traumático em Israel que o judiciário do país decidiu instalar uma comissão incumbida de apurar as responsabilidades dos comandantes militares e de todos os membros do gabinete referentes aos erros de avaliação às vésperas das hostilidades. Assim, em novembro de 1973, foi instituída a Comissão Agranat, o sobrenome do juiz presidente do inquérito. A Comissão trabalhou a portas fechadas, tendo cumprido 140 sessões nas quais ouviu 58 depoimentos. Concluiu que as Forças de Defesa de Israel tinham sido responsáveis pelas falhas que permitiram o ataque-surpresa pelas forças do Egito e da Síria.

O relatório Agranat responsabilizou também o Serviço de Inteligência Nacional por não ter previsto o ataque e afirmou que o então chefe da Inteligência militar, Eli Zaira, havia falhado em sua missão. Para finalizar, o documento asseverou que tanto a primeira-ministra Golda Meir, quanto o ministro da Defesa, Moshe Dayan, haviam cumprido a contento seus respectivos deveres. Mesmo assim, depois da publicação do relatório final e 31 dias após formar um novo governo, Golda Meir renunciou ao seu cargo na chefia do governo.

Golda e o rei Abdullah

No dia 12 de maio de 1948, estava reunido numa escola em Tel Aviv o Conselho que abrigava representantes de todas as correntes do Movimento Sionista. As resoluções que o Conselho deveria tomar eram vitais: declarar ou não a independência dois dias depois, assim que terminasse o Mandato Britânico; empreender uma ofensiva diplomática para obter uma trégua com os países árabes; avaliar o poderio militar do yishuv; casoa opção fosse pela independência, formular a forma e o conteúdo de sua declaração e, principalmente, avaliar o poderio militar dos inimigos a partir da temida Legião Árabe, constituída na então Transjordânia, que vinha sendo treinada por instrutores ingleses. Havia, ainda, grande expectativa em torno da viagem secreta que Golda Meir, então Chefe do Departamento Político da Agência Judaica, fizera a Amã.

Lá ela se encontraria com Sua Majestade, o rei Abdullah, da Transjordânia. Seria a segunda reunião entre os dois, tendo a primeira ocorrido no início de novembro de 1947, em Naharayim, às margens do Rio Jordão, na central da Israel Electric Company. Golda estava acompanhada por Eliahu Sasson, especialista em assuntos árabes. Ela escreveu em suas memórias: “Tomamos as habituais xícaras de café, conforme manda o ritual, e então começamos a conversar. Abdullah era um homem de baixa estatura, muito calmo e muito majestoso. Ele rapidamente deixou claro: não permitiria nenhum ataque árabe contra nós. Assegurou que sempre seria nosso amigo e que, como nós, também pretendia a paz mais do que qualquer outra coisa”. Abdullah disse a Golda que ambos tinham um inimigo comum, o Mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husseini. Ao ouvir tão inesperada afirmação, Golda sugeriu que os dois voltassem a se encontrar após a votação na ONU referente a uma possível partilha da Palestina Britânica.

Desde aquela reunião, a comunicação entre o rei e a liderança judaica tornou-se cada vez mais preocupante. Tudo indicava que o rei não iria cumprir a sua promessa de amizade e se juntaria à coligação da Liga Árabe contra um Estado Judeu. 

O segundo encontro com Abdullah, dois dias antes do encerramento do Mandato Britânico foi em Amã. Golda estava acompanhada por Ezra Danin, um especialista em inteligência da Haganá (organização paramilitar do yishuv). Danin e Golda haviam se disfarçado como um casal árabe para atravessar linhas inimigas até chegar à capital da Transjordânia. Ela escreveu: “Era a primeira semana de maio e nós não tínhamos muitas dúvidas quanto à posição de Abdullah. Apesar de todas promessas, o monarca atrelaria seu destino ao contexto da Liga Árabe. Estávamos conscientes das razões a favor e contra uma nova reunião com o rei, mas talvez pudéssemos persuadi-loa mudar de ideia, no último momento. Tínhamos precisas informações de que a Legião Árabe era o melhor exército da região e talvez ocorresse um milagre que o mantivesse fora da guerra”.

Golda e Ezra correram o risco de viajar até Amã porque Abdullah se havia recusado a ir a Naharayim, por julgar ser muito perigoso, ao mesmo tempo em que se eximira de qualquer responsabilidade se, no meio do caminho, algo acontesse com seus aguardados visitantes.

Golda escreveu em sua autobiografia: “Saí de carro para Haifa, onde me encontraria com Ezra. Ele falava árabe fluentemente, era bom conhecedor dos costumes árabes e poderia facilmente ser considerado um árabe. Quanto a mim, vesti um daqueles tradicionais vestidos escuros e largos das mulheres árabes. Eu não sabia nada de árabe, mas, como mulher muçulmana que acompanhava o marido, era improvável que me obrigassem a dizer qualquer coisa para alguém. O vestido de noite e os lenços que eu precisava já estavam encomendados e Ezra Danin explicou-me o caminho e a estratégia. Deveríamos substituir os carros diversas vezes para garantir que não estávamos sendo seguidos”.

Quando finalmente se encontrou com o rei em Amã, Golda disse a Abdullah que estava decepcionada por ele ter quebrado a promessa de amizade e paz feita em novembro de 1947. O rei explicou que não teria a possibilidade de agir de forma independente já que era um entre cinco, se referindo à Síria, Egito, Líbano e Iraque. Ele insistiu na tese de que a liderança sionista deveria adiar a criação de um estado judaico no território definido na Partilha. Disse que esta seria a única forma de evitar a guerra. Reiterou seu desejo de expandir o território da Transjordânia, ou seja, anexaria o território que, conforme a Partilha, caberia aos judeus. E disse para Golda: “Mas por que vocês não esperam alguns anos? Esqueçam suas demandas por mais imigração. Eu assumirei o controle de todo o país e vocês estarão representados no meu parlamento. Vou tratá-los muito bem e não haverá guerra”.

Golda Meir relatou ao Conselho reunido em Tel Aviv o teor de sua árida conversa com o rei Abdullah. Apesar de ter voltado de Amã com as mãos vazias, restava-lhe a gratificante sensação do dever cumprido.

MISSÃO EM MOSCOU

Um mês depois de proclamada a soberania de Israel e na hora mais incerta da Guerra da Independência, Golda Meir viajou para os Estados Unidos, onde percorreria diversos estados para arrecadar fundos. Estava em plena atividade nessa tarefa quando, para sua supresa foi chamada de volta a Israel. O primeiro-ministro  Ben-Gurion e o ministro das Relações Exteriores, Moshe Sharett, haviam decidido que ela deveria embarcar de imediato para a União Soviética na qualidade de embaixadora. Era importante que um posto tão sensível fosse confiado a uma pessoa de sua estatura, principalmente porque Stalin havia permitido que a Checoslováquia, sob seu domínio, concretizasse a venda para Israel de aviões de combate remanescentes da 2ª Guerra.

Em sua autobiografia, ela admite que quando regressasse a Israel tentaria persuadir Sharett e  Ben-Gurion a mudarem a sua decisão. Mas sua nomeação foi anunciada na primeira semana de junho. No entanto, no seu último dia em Nova York, ela se feriu em um acidente de trânsito: quebrou a perna e ficou hospitalizada por várias semanas, até estar em condições para viajar.

Golda só chegou a Moscou no dia 2 de setembro. Seu desembarque levou ao aeroporto e às ruas, para saudá-la, uma multidão de judeus russos calculada em cerca de nada menos do que 50 mil pessoas, algo nunca visto numa capital comunista, onde manifestações e passeatas eram inexistentes. Stalin ficou furioso ao constatar que 30 anos depois da vitória da Revolução Bolchevique os judeus conservaram intactas sua lealdade a suas raízes. Ele se convenceu de que os judeus jamais se assimilariam ao estado soviético. Deduziu que deveria dominar a comunidade judaica através da força, o que significava reforçar o antissemitismo. Mandou pedir as fotografias da multidão presente à chegada de Golda e todos aqueles que puderam ser identificados nas imagens foram presos e conduzidos a interrogatórios. Em seguida, o escritor Ilya Ehrenburg, um judeu submisso ao Kremlin, que se empenhava em não ser tido como judeu, escreveu um violento artigo contra Israel no jornal oficial do regime, o Pravda. A pretexto de falsa moderação, atacou o antissemitismo. Porém se valeu da mesma retórica que até hoje perdura: ser antissionista não implicava em ser antissemita.

Ilya Ehrenburg se encontrou numa recepção diplomática com a embaixadora Golda Meir, pouco depois de sua chegada a Moscou. Ele se dirigiu a ela no idioma russo. Golda respondeu: “Desculpe, eu não falo russo”. De forma agressiva, Ehrenburg continuou: “Mas a senhora fala inglês, não fala? Eu detesto os judeus nascidos na Rússia que não falam russo”. Ela retrucou: “Pois eu detesto e até sinto pena dos judeus russos que não falam iídiche ou hebraico”.

Àquela altura, o prédio que abrigaria a embaixada de Israel ainda estava em obras. Golda e sua pequena equipe foram alojados num hotel. Ela registrou na autobiografia: “Mulheres com aparências sombrias ficavam posicionadas em todos os andares do hotel, com a função de montar guarda e entregar as chaves dos quartos. Mas tínhamos certeza de que elas também relatavam tudo o que fazíamos à KGB”.

Depois de apresentar as suas credenciais a Molotov, ministro das Relações Exteriores, Golda se empenhou em sua missão mais importante: renovar os laços com os judeus soviéticos, cortados desde o início da 2ª Guerra Mundial.

Ela fez com que o acesso à embaixada se fizesse sem aparato ou burocracia, esperando que os judeus locais fossem a seu encontro, mas o pavor por represálias era tão grande que isso não aconteceu. Assinalou em suas memórias: “Fomos visitados por repórteres, judeus e não-judeus vinculados a outras embaixadas, empresários judeus de outros países – mas jamais por um único cidadão soviético, fosse judeu ou não”.

No seu primeiro Shabat na União Soviética, todo o pessoal da embaixada israelense se encaminhou para a Grande Sinagoga em Moscou. Foi a primeira vez, em muitos anos, que pessoas usando um talit (xale de orações) e carregando um livro de orações puderam ser vistas andando pelas ruas da cidade. Dentro da sinagoga, cerca de 150 pessoas, todas idosas, ficaram surpresas ao ver os israelenses. Além do tradicional serviço religioso houve o acréscimo de uma bênção para o governo soviético. O rabino também recitou uma bênção para a saúde de Golda Meir. Mas, o que ocorreu no caminho de volta para o hotel fez Golda chorar. Um idoso que passou por ela, tocou seu braço, como que por acaso e sussurrou: “Eu vou na frente e você segue”. Quando chegaram ao hotel, ele se virou para ela e citou calmamente a bênção de Shehecheyanu: “Bendito sejas Tu, nosso D’us, Rei do universo, que nos concedeste a vida, nos sustentaste e nos permitiste chegar até este dia”.

Naquele ano, o Rosh Hashaná (ano novo judaico) caiu no dia 3 de outubro de 1948, exatamente um mês após a chegada de Golda a Moscou. Escreveu: “Vestimos nossas melhores roupas e seguimos para a sinagoga. Fomos informados de que, ao contrário dos sábados normais, era esperada uma multidão maior do que o usual. Mas, quanto mais nos aproximávamos, mais difícil era reconhecer o lugar. A rua estava cheia de pessoas de todas as idades: oficiais do Exército Vermelho, idosos, adolescentes, bebês nos braços dos pais. Dezenas de milhares de pessoas estavam lá. No início, não consegui entender o que havia acontecido ou mesmo quem eles eram. E então me dei conta de que aqueles bons e corajosos judeus vieram demonstrar o seu sentido de pertinência e celebrar o estabelecimento do Estado de Israel juntamente conosco. Eles me cercaram, quase me pisoteando, e quase me carregando em suas mãos”.

Golda Meir completou o seu serviço como embaixadora sete meses depois, quando foi convidada por  Ben-Gurion para ingressar em seu governo como ministra do Trabalho. De sua temporada em Moscou, restou uma semente que viria a florescer ao longo de décadas na dissidência rebelde dos judeus soviéticos em sua fidelidade ao ideal sionista.

PRESENÇA NO BRASIL

Em 1959, quando era ministra das Relações Exteriores, Golda Meir comandou um vasto programa de ajuda técnica, sobretudo na área de irrigação agrícola, para países africanos que há pouco tinham conquistado sua independência. No verão daquele ano, empreendeu uma viagem à América Latina. Anotou em suas memórias: “Foi quando conheci o Brasil, então presidido por Juscelino Kubitschek. Era um país pelo qual sentia especial carinho, já que entre outras afinidades foi o ilustre brasileiro Oswaldo Aranha quem presidiu a sessão de 29 de novembro de 1947, da Assembleia Geral das Nações Unidas, que decidiu pela partilha da antiga Palestina. Foi ele quem, a despeito de todo tipo de empecilhos, levou à votação final a proposta da partilha”.

No Rio de Janeiro, então capital do país, a presença de Golda foi alvo de protestos por parte de diplomatas árabes e de grupos contrários a Israel. Apesar dessas manifestações, o presidente Juscelino recebeu Golda para um almoço de estado no Palácio do Catete, sede do governo. Na entrevista coletiva que concedeu, antes de seguir para outras capitais do continente, disse ter ficado emocionada pela calorosa forma com que havia sido recebida no Brasil e ter ficado impressionada com as obras da construção de Brasília e o que chamou de “poderosa energia” da cidade de São Paulo.

Assim concluiu na autobiografia sua impressão da viagem: “Um dos pontos mais significativos da visita foi a assinatura de um acordo de intercâmbio cultural e outro de assistência técnica, que nos permitiu colaborar com o Brasil na conquista de suas grandes áreas áridas ou semiáridas. Mas, um acontecimento permanece indelével em minha memória: ao assistir a uma sessão do Congresso Brasileiro ouvi encantada o senador Hamilton Nogueira saudar-me, não em português, mas no mais genuíno e fluente hebraico”.

Bibliografia

Meir, Golda, Minha Vida, Bloch Editores 1976, Brasil.

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.