É a mais antiga memorialista e cronista mulher em língua iídiche. Em sua obra, “A Vida de Glückel de Hameln”, retrata a história,a vida e a cultura dos judeus da Europa Central entre os séculos XVII e XVIII.
Glückel nasceu em Hamburgo, em 1646, numa abastada família, filha de Leib e Bela Pinkerle. O pai era comerciante de jóias e por vários anos foi Parnás, presidente da comunidade judaica. Quando ela tinha três anos de idade, os judeus foram expulsos da cidade de Hamburgo e sua família se refugiou na vizinha Altona, então parte da Dinamarca. Em 1657, o pai, que continuava com os negócios em Hamburgo, obteve a permissão de lá voltar a viver.
Quando criança, Glückel adorava ouvir as histórias contadas pela avó materna sobre a Guerra dos Trinta Anos e sobre as epidemias e a miséria que a acompanharam. À diferença da maioria das mulheres de seu tempo, Glückel recebeu educação formal secular e também religiosa.
Aos doze anos, ficou noiva de Haim, da cidade de Hameln, que tinha treze anos. Dois anos mais tarde casaram. De acordo com os costumes judaicos da época, era um “casamento contratado”, mas foi uma união muito amorosa e feliz. Tanto que, quando Haim morreu, trinta anos depois, Glückel escrevia: “Acredito que nunca conseguirei parar de chorar a perda do meu querido amigo”.
Após alguns anos em Hameln, o casal se mudou para Hamburgo para viver com a família dela, em busca de melhores perspectivas econômicas. Haim comprava ouro trabalhado, de segunda mão, e o vendia a joalheiros e comerciantes. Ajudado pela esposa, seus negócios prosperaram. Trabalhavam em sociedade, comercializando ouro, prata, pérolas, jóias e emprestando dinheiro. Haim viajava à Inglaterra e pela Europa vendendo suas mercadorias, enquanto Glückel administrava os negócios, aconselhava-o, fazia os contratos e ajudava com a contabilidade. No entanto, nunca deixou de cuidar da casa e dos filhos. Glückel teve treze filhos, dos quais um só morreu em tenra idade, um verdadeiro recorde para o século XVII. Enérgica e de forte personalidade, criou seus doze filhos de forma exemplar e se empenhou em lhes arranjar bons casamentos.
Depois ocorreu a grande tragédia de sua vida, que fez com que sentisse a necessidade de escrever suas memórias. Em 1689, em viagem de negócios, Haim sofreu um acidente e faleceu. Suas últimas palavras foram: “Minha mulher está a par de tudo”. Glückel ficou devastada e o expressou com estas palavras: “Eu era uma mulher muito estimada por seu piedoso marido e era-lhe tão querida quanto as pupilas de seus olhos. Com sua morte, perdi minha riqueza e minha felicidade. Continuarei a chorar por ele todos os dias da minha vida”.
Após o luto, teve de lidar sozinha com as grandes dívidas e seis filhos ainda para casar. Manifestando sensibilidade para os negócios, leiloou os bens do marido e pagou todos os credores. Ainda sobrou dinheiro para abrir uma loja onde negociava com pérolas.
Para vencer a depressão, buscou consolo para as dificuldades, a solidão e as noites insones escrevendo. Revelou-se uma escritora talentosa. Assim começam suas memórias:
“ Em meu grande luto e para consolar meu coração, dou início a este livro no ano da criação de 5451 (1690-91). Que D´us nos alegre e mande logo seu Redentor! Escrevo, caros filhos, depois da morte de seu bom pai, na esperança que isso possa aliviar a minha alma do peso da tristeza que a envolve e da dor pela perda do nosso dedicado mentor. Desta forma, tenho tentado vencer incontáveis noites insones...”.
Glückel começou a redigir suas memórias com 44 anos, em 1690, e completou os primeiros cinco volumes em 1699. Parou de escrever durante quinze anos e completou os últimos dois volumes entre 1715 e 1719. Embora sua intenção fosse deixar um livro de memórias pes-soais a seus filhos e netos, para que conhecessem sua história familiar, sua obra se tornou de extrema importância, não somente por ser o único documento da época escrito por uma mulher, como por ser uma rica fonte de informações sobre a história, a vida cotidiana e a cultura dos judeus da Europa Central. A obra é muito valiosa para os estudiosos do iídiche arcaico. Inicialmente uma crônica familiar, não destinada à publicação, essas memórias, simples e íntimas, desvendam um amplo panorama da vida judaica em cidades como Hamburgo, Altona, Hameln, Hanover, Metz, Berlim e Amsterdã. Glückel era dotada de excelente memória, temperamento sensível, expressão poética, educação e cultura tradicionais e grande religiosidade. Conhecia bem as histórias talmúdicas e os livros sobre a ética judaica. Fazia freqüente uso de parábolas, histórias e fábulas para ilustrar o conteúdo moral que queria transmitir. Descrevia a vida precária dos judeus da época em iídiche, obviamente em letras hebraicas.
Talvez para garantir sua velhice, dez anos depois de enviuvar Glückel casou-se com Hirsch Levy, de Metz, rico homem de negócios e presidente da comunidade judaica local. Esta união não lhe trouxe felicidade alguma e ela a descreveu como um dos maiores erros de sua vida. No primeiro ano do casamento, Hirsch Levy faliu, perdendo todo o dinheiro que possuía e boa parte do da mulher. Após a morte do segundo marido, Glückel passou por dificuldades financeiras, até ir morar na casa acolhedora da filha Ester, em Metz. Lá ela viveu durante nove anos, bem cuidada, amada e respeitada, até sua morte, ocorrida aos 78 anos, em 1724, cinco anos após completar suas memórias.
Sua obra
Glückel não tinha idéia da importância que sua obra teria para o conhecimento da vida judaica na Alemanha do século XVII e XVIII. Mas como há muito poucos documentos desse tipo e dessa época, suas memórias se tornaram uma das grandes obras da literatura iídiche. São agradáveis de ler como um romance e acabam cativando seus leitores.
Retratam um mundo repleto de guerras, insegurança, pogroms, mortalidade infantil, alistamento militar de crianças, seqüestros e conversões forçadas. Naquela época, era difícil sobreviver como judeu. Mesmo assim, Glückel possuía uma fé inabalável, como atestam seus escritos: “Este, caros filhos, não é um livro de moral... Nós temos nossa sagrada Torá. O melhor que há para vocês, meus filhos, é servir a D’us do fundo do coração, sem falsidade ou engano, para que não sejam de uma forma nas aparên-cias e de outra, D’us não o permita, em seu coração.” Glückel escreve a seus filhos para lhes ensinar a vida de acordo com seus princípios. Aspira a deixar uma herança moral e espiritual que torne seus descendentes parte da corrente das gerações do povo de Israel. Encarna a “Eshet hail”, a mulher judia completa. Seus escritos se inspiram na literatura moral tradicional. Ao mesmo tempo, Glückel fala de sua genealogia e dos eventos de sua vida familiar e da comunidade da época. Transparece em sua obra sua personalidade de esposa e mãe amorosa, forte e atenciosa.
Por meio de contos morais e histórias edificantes, ou de experiências vividas ou ouvidas, exprime opiniões claras e decididas sobre como devem ser honrados os pais e amados os filhos e o marido. Por exemplo, afirma que a melhor forma de honrar os pais seria transmitir a nossos filhos o que recebemos de nossos pais. Acredita que a ajuda dos pais a seus filhos faz parte da ordem da natureza, porque até seres irracionais cuidam de seus filhotes. Encara seu papel de mãe como o de uma guia que deve dar a seus filhos as ferramentas para enfrentar a vida.
Parte de sua obra é dedicada à descrição de como escolhia os “partidos” para eles. Em um mundo em que os pais decidem por seus filhos, o casamento torna-se uma tarefa delicada, especialmente quando é a mãe sozinha a fazer a escolha e a se informar sobre as qualidades e os defeitos dos pretendentes. E aconselhava: “Assim, meus filhos, suportem suas provações com pa-ciência e sirvam a D’us do fundo do coração, sejam felizes ou sofrendo: saibam que Ele nunca impõe fardos impossíveis de serem carregados”.
Glückel é uma mulher religiosa com uma visão tradicional do mundo. Aceita com resignação a infelicidade e o sofrimento, com a esperança de que um dia tenham seu fim. Educa seus filhos para que se mantenham fiéis aos princípios que ela herdou de seus pais e que, por sua vez, os transmitam a seus filhos.
Suas memórias contêm também algumas passagens engraçadas, como quando, aos quatorze anos, Glückel foi com seus pais e uma comitiva de vinte pessoas a Hameln, para se casar. Quando chegaram a Hanover, escreveram para Hameln pedindo que lhe fossem enviadas umas carruagens. A mãe imaginava que aquela fosse uma cidade grande e com recursos, como Hamburgo, e que ao menos mandariam uma carruagem para a noiva e seus pais. Vários dias depois chegaram quatro precárias carroças, conduzidas por cavalos que mal conseguiam andar e que pareciam eles mesmos precisar ser transportados! A mãe ficou muito ofendida, mas como não havia outro jeito, acomodaram-se nas carroças e chegaram a Hameln. Um outro episódio divertido é quando ela conta como na casa dos Hameln-Pickerle, como era comum nas famílias patriarcais e nas famílias judias da Alemanha do século XVII, havia tantas crianças pequenas que um dia a mãe de Glückel não conseguiu distinguir seu próprio bebê do bebê de sua filha!
Em certos aspectos, Glückel poderia ser comparada à mulher de hoje. Cria sozinha os filhos. Enfrenta a vida com independência. Cuida do bem-estar material de sua família, tornando-se uma mulher de negócios. Ao mesmo tempo, é uma mãe judia como manda a tradição: terna, forte e sábia. Inteligente e sensível, prepara para seus filhos uma base de princípios e ensinamentos que garantam a perenidade da transmissão do judaísmo e sua sobrevivência num mundo hostil.
Seu manuscrito original se perdeu, mas se preservaram cópias feitas por seus descendentes. Baseado numa cópia feita por um de seus filhos, Rabi Moses Hameln de Baiersdorf, o erudito David Kaufmann publicou pela primeira vez as “Memórias de Glückel de Hameln” no iídiche original, em 1896. Seguiram-se traduções para outros idiomas que tornaram a leitura desse documento mais acessível e sempre agradável.
Bibliografia:
• Great Jewish Women, Elinor Slater & Robert Slater;
• The Memoirs of Glückel of Hameln, Robert Rosen, Marvin Lowenthal;
• Photos de Famille, Ariel Sion;
• Jewish Heritage, Glückel of Hameln;
• Remarkable Jewish Women, Emily Taitz and Sondra Henry.