A democracia e o Estado de Israel perderam, com a morte de Ernst Cramer, em janeiro deste ano, um incansável paladino. Jornalista prolífico e eloqüente testemunha dos horrores do regime nazista, teve um papel decisivo na história do jornalismo na Alemanha pós-guerra e na Editora Axel Springer – o maior conglomerado de mídia da Europa.

Foi uma das vozes mais fortes da República Federal da Alemanha na luta pelo fortalecimento das relações entre a Alemanha e Israel e um dos primeiros a alertar o mundo livre sobre as questões de segurança global e, em especial, judaica.

Nascido na cidade alemã de Augsburgo, na Bavária, Cramer deixou seu país em 1938, refugiando-se nos Estados Unidos. Voltou à sua terra natal em 1945, vestindo a farda do exército americano, e resolveu lá permanecer como membro do Escritório Americano do Governo Militar na Alemanha criado logo após o término das hostilidades. Queria assistir a reconstrução moral e física da terra onde nascera.

Sua vida e carreira

Um dos três filhos de Martin e Clare Cramer, Ernest nasceu em 1913. Os Cramer eram uma família judia tradicional e abastada, amante das artes e da música. No meio cultural no qual o futuro jornalista cresceu, a palavra escrita era uma arte. Seu pai chegou a fundar, com Bertold Brecht, renomado dramaturgo e poeta, uma associação literária. Em artigo publicado em 1 de agosto de 2009, no jornalalemão Die Welt,Cramer recorda sua infância: “Cresci e fui educado para ser alemão, por meus pais e pelo ambiente que me cercava. Foi meu professor de religião, um rabino, não um professor de alemão, quem despertou meu interesso pelo poeta Johann Wolfgang Goethe… Para mim, ser alemão era algo óbvio; era parte de meu ser, apesar de alguns episódios anti-semitas em meus anos escolares”.

Quando, em 1929, a Alemanha foi duramente atingida pela Grande Depressão, Ernst, na época com 16 anos, deixa a casa paterna e passa a trabalhar em uma grande loja. Em 1933, ano em que o Partido Nacional Socialista chega ao poder, Cramer funda a Aliança da Juventude Judaico-alemã. Para os judeus, a vida na Alemanha nazista se tornava cada vez mais difícil. “Havia os inúmeros amigos que, da noite para o dia, deixavam de ser meus camaradas. E havia os eruditos, os acadêmicos, que prontamente aceitavam as políticas raciais de Hitler, até mesmo as endossando. Em resumo, praticamente todos se tinham tornado inimigos dos judeus, meus inimigos”.

Ernst decide deixar o país e recomeçar a vida nos Estados Unidos, mas ele ainda está na Alemanha quando, em novembro de 1938, os nazistas orquestram a “Noite dos Cristais”. Detido, como milhares de outros judeus, é enviado para Buchenwald, o campo de concentração onde permaneceria durante seis semanas. Os nazistas o libertam na condição de que deixasse o país. Ele e sua irmã, Helene, conseguem os documentos e o dinheiro necessário para sair da Alemanha, mas seus pais e o irmão menor, Erwin, ficam para trás.

Até seus últimos dias de vida, Ernst se lembraria daquele 4 de agosto de 1939, quando subiu no trem que partia para a Holanda, na estação ferroviária de Berlim. Ia atrás do visto americano, que já o aguardava, e a passagem de navio para os Estados Unidos que recebera de uma das organizações de auxílio aos judeus. Como todos os imigrantes, tinha permissão de levar consigo apenas 10 reichsmarks (equivalente, à época, a US$ 2,50).

Cramer relembra: “Duas almas habitavam meu coração. Por um lado, estava feliz de escapar das garras daqueles perversos que tinham humilhado e vilipendiado os judeus da Alemanha, privando-os de sua subsistência. Estava feliz de escapar dos canalhas que tinham roubado nossos direitos civis (...) conduzindo-nos para uma ‘custódia protegida’ e nos maltrataram e torturaram em campos de concentração. Mas, por  outro lado, estava preocupado, transtornado mesmo, com a sorte dos meus pais e do meu irmãozinho. Eles não puderam emigrar comigo. Posteriormente, foram deportados para a Polônia Oriental, onde simplesmente desapareceram. Mas, no verão de 1939, não sabia do destino deles, não podia sequer suspeitar (...) Nesse momento, também pensava nos livros queimados em 10 de maio de 1933, nos atos indecentes dos estudantes e mesmo dos professores universitários. Na época, felizmente, não me ocorreram as palavras do poeta Heinrich Heine: ‘Onde as pessoas queimam livros, alguém vai acabar queimando seres humanos, também’ ”.

Em 18 de agosto de 1939, quando seu navio entrou no porto de Nova York e Cramer viu a Estátua da Liberdade, sentiu que uma nova vida se descortinava diante dele. Foi levado, a princípio, para trabalhar numa fazenda de tabaco, na Virgínia, que fora comprada por um filantropo de Richmond para ajudar na adaptação de refugiados judeus. Sua irmã estava em Houston, onde viviam parentes de seu pai, mas foram em vão as tentativas de conseguir ajuda para que eles conseguissem um visto para o restante da família, na Alemanha.

Logo após a eclosão da 2ª Guerra, Ernst entra na faculdade, em Mississipi. Suas idéias sobre justiça e direitos humanos, totalmente contrárias à perseguição racial, não eram bem vistas em um Estado onde era intensa a segregação racial contra a população negra. 

Ele ainda estava na faculdade quando os japoneses atacaram a base americana de Pearl Harbor. Imediatamente se alista no exército dos Estados Unidos, decidido a combater as forças de Hitler na Europa. Em 1944, desembarca com as tropas aliadas na Normandia, e, em abril de 1945, logo após o campo de concentração de Buchenwald ter sido libertado pelo exército americano, Cramer é despachado para lá, onde ele próprio havia sido prisioneiro apenas cinco anos e 
meio antes. Ficou chocado com o que ele viu e decidiu ficar na Alemanha, “para ajudar a reconstruir e fazer a minha parte para trazer a Alemanha de volta à razão, decência e justiça”, como escreveu em um artigo publicado em 2005 (ver páginas 42 e 43).

Vencida, a Alemanha foi dividida em setores pelos países aliados. No setor americano, logo após o fim das hostilidades, foi estabelecido o OMGUS – sigla para o Escritório Americano do Governo Militar na Alemanha. Em outubro de 1945, o OMGUS fundou um jornal, em Munique, o Neue Zeitung. Desde sua fundação, Cramer foi seu vice-editor dedicando ao cargo todo o seu amor e talento pela palavra escrita. Ele vai se tornar um dos mais respeitados jornalistas da Alemanha do pós-guerra. Considerado pelos americanos como o órgão oficial do governo militar, o Neue Zeitung tinha por função básica servir de instrumento para a reeducação dos alemães, no sentido de erradicar a cultura nazista e promover a democracia e a liberdade. O jornal tornou-se “um instrumento de extrema influência para a opinião pública”, um meio de comunicação trans-cultural. Seus editores e redatores tinham formação européia e eram aptos a servir de “mediadores” entre as sociedades americana e alemã.

Na Alemanha do pós-guerra, Cramer foi uma eloqüente testemunha dos horrores do regime nazista. Nunca se conformou com o fato de sua família ter ficado para trás, na Alemanha, e de não ter conseguido ajuda para retirá-los de lá, com vida. Foi um peso que carregou dentro de si, por toda a vida. Ele costumava dizer: “A lembrança dos assassinatos de meus pais, meu irmão e de milhões de outros permanece uma ferida aberta, inflamada e necrosada”. Certa vez, disse a um repórter que nunca entendera “por que as pessoas tinham-se comportado daquela maneira, e por que tantos tinham virado o rosto, durante o Holocausto.”

Ernst casou-se, em 1948, com Marianne Untermayer, sobrevivente de uma família judaica também de Augsburgo, com quem teve dois filhos que, hoje, vivem na Noruega e nos EUA.

Seis anos mais tarde, quando começa a trabalhar para a agência de notícias United Press, já era um renomado jornalista. Foi lá que conheceu Axel Springer, dono de uma editora que levava seu nome, fundada em 1946. Springer era um filo-semita que acreditava na necessidade de reconciliação entre os judeus e alemães e tinha um íntimo relacionamento com o Estado de Israel e o Povo Judeu. Costumava dizer que “não havia como compensar o Holocausto, mas se a Alemanha quisesse encontrar uma nova auto-definição, devia apoiar, a partir de então, o Estado de Israel e seu povo”. As idéias de Springer se tornaram manifestas nos Princípios Básicos de sua editora. 

Até hoje, o etos jornalístico da Editora Axel Springer é regido por um conjunto de princípios que constam do contrato de trabalho de cada um dos jornalistas da empresa, no qual reza, entre outros, “o apoio ao Estado de Israel e sua existência e a reconciliação entre os alemães e os judeus”.

Em 1958, Springer convidou o amigo Cramer, com quem compartilhava ideais e crenças, para ser editor-assistente de seu jornal, Die WeltAmbos acreditavam na necessidade da Alemanha manter estreitos laços com os Estados Unidos e com o Estado de Israel. Ambos acreditavam na democracia, liberdade de imprensa e, sobretudo, eram contra qualquer tipo de totalitarismo.

Cramer se tornou um assessor muito próximo de Springer e Presidente do Conselho e CEO da Axel Springer Corporation. Posteriormente, foi membro do Conselho da empresa e, desde 1981, passou a ocupar a presidência da Fundação Axel Springer. Após a morte de Axel, em 1985, ele foi o seu testamentário.

Durante muitos anos, Ernst Cramer foi também editor-geral do semanárioWelt am Sonntag. Mesmo já com mais de 90 anos, ainda contribuía à publicação com seus comentários e perspicazes análises. Considerado mestre e inspiração por aqueles que com ele trabalharam, o jornalista era a força motriz da editora. De seu escritório, no 18º andar da sede, em Berlim, contagiava a todos com suas idéias, energia e dinamismo. Ali escreveu centenas de colunas e comentários que lhe valeram inúmeros prêmios ao longo de 40 anos de vibrante carreira. Das teclas de sua velha máquina de escrever Triumph, muito antes que as redações fossem totalmente computadorizadas, saíram textos que sensibilizaram profundamente milhares de leitores.

As revistas e jornais diários do império das publicações Axel Springer cobrem a Europa de ponta a ponta, e, dentro da Alemanha, seu diário Bildde circulação de massa, atinge mais de3 milhões de leitores. No cenário europeu da mídia, recheado muitas vezes com uma cobertura barata e unilateral sobre Israel, a Axel Springer sempre foi contra a maré, apresentando uma visão equilibrada e objetiva da situação.

Cramer mantinha estreitos vínculos com a Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan, que lhe concedeu um doutorado honorário. Ele recebeu também um doutorado honoris causa da Universidade Bar Ilan, em Tel Aviv, e era membro do Conselho do Instituto Leo Baeck, em Nova York, além de professor da cidade de Berlim e cidadão honorário de Augsburgo.

Mantendo vivo o Holocausto

Ele tinha o dom da palavra oral, não apenas da escrita, tendo sido considerado um dos conferencistas mais destacados e vibrantes da Alemanha. Eloqüente sobrevivente e testemunha da Shoá, Cramer lutava para que a memória dos seis milhões de judeus assassinados fosse mantida viva e servisse de alerta para o mundo.

No 60o aniversário da libertação de Auschwitz, em 27 de janeiro de 2005, Cramer discursou no Parlamento Estatal da Turíngia. “Tais lembranças servem não apenas para recordar e homenagear os mortos, se é que tal coisa é possível, mas também para nos preparar para nosso Hoje e nosso Amanhã. Conhecendo o que houve – e, quiçá, como chegou a acontecer – possamos ter forças para enfrentar o futuro. O que sabemos sobre o passado não pode ser esquecido (...). O filósofo inglês, Edmund Burke, disse certa vez: ‘Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem não façam nada’. (...). Não podemos nos dar ao luxo de ficar em silêncio quando o mal ocorre à nossa volta. E é importante compreender que, quando confrontados pelo mal, não podemos hesitar nem olhar para o lado, apenas porque aparentemente não estamos sendo diretamente afetados(...). O Holocausto – a Shoá, em hebraico – esse perverso genocídio cujo símbolo, sem ambivalências, veio a ser Auschwitz, é considerado como o pior desastre, entre todas as calamidades e sofrimentos que os judeus jamais tiveram que suportar. A ruptura com a civilização que os nazistas realizaram, e na qual muitos alemães colaboraram de tantas formas, foi o maior desastre na história alemã. Nunca antes a Alemanha afundara tão baixo”.

De mais de uma forma Axel Springer e seu império jornalístico ajudaram a manter viva a memória da Shoá. Em 2008, a Editora Axel Springer na Alemanha adquiriu 29 desenhos originais, já amarelados, encontrados em um apartamento abandonando em Berlim, entre os quais havia 15 planos originais do complexo de Auschwitz.  Foram ofertados ao Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que fossem salvaguardados no Instituto Yad Vashem, Museu de Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto, em Jerusalém. Em 26 de janeiro de 2010, a exposição “Arquitetura do Assassinato – as Plantas de Auschwitz-Birkenau” foi inaugurada no Hall da sede das Nações Unidas, em Nova York, com as plantas feitas pelos nazistas enquanto planejavam a construção do campo de morte de Auschwitz-Birkenau.
 
No dia 19 de janeiro de 2010, um infarto tirou a vida de Ernest Cramer que, uma semana depois, completaria 97 anos de idade.

Poucos dias antes, em 12 de janeiro, ele criou um programa de bolsas de estudos na área de jornalismo entre Alemanha e Israel. Cramer informou a Fundação Jerusalém que a Axel Springer iria patrocinar, durante 10 anos, um programa de bolsas de estudos para jornalistas alemães e israelenses. “Um intercâmbio desses ajuda a levar adiante a amizade israelo-alemã à próxima geração dos dois países. Isto é da maior importância”, ele escreveu em sua carta à Fundação. 

O Conselho Central de Judeus da Alemanha fez uma declaração oficial na qual lamentava a perda de “personalidade tão destacada”. Lala Süsskind, presidente da comunidade judaica de Berlim, que conta com 12.000 membros, declarou: “Aqueles que tiveram a sorte de conhecer Ernst Cramer reconheceram seu enorme potencial e tiveram a felicidade de ser recarregados por sua inesgotável energia, força e inspiração”.

Dr. Morton Scheinberg é médico clínico e reumatologista do Hospital Israelita Albert Einstein, pesquisador e diretor científico Hospital Abreu Sodré-AACD (especializado em doenças 
músculo-esqueléticas), PhD Boston University, Livre Docente USP.

Bibliografia: 
Artigo de Ernst Cramer, Two souls live in one heart. Grateful memories of a German Jew who fled the Nazis and made it to the United States, publicado no Die Welt, em agosto de 2009
Bild remembers a great man, Ernst Cramer - His Life, His Work, His Friendships http://www.bild.de/BILD/ 
Artigo de Benjamin Weinthal, Alex Springer: German media firm fights for Israel’s security, publicado no The Jerusalem Post, 20 de outubro de 2009 
Artigo de Benjamin Weinthal, Key German Jewish supporter of Israel dies at 96, publicado no The Jerusalem Post, 20 de janeiro de 2010

Meu retorno a Buchenwald. 
Primeiro, como prisioneiro; depois, como libertador

por Ernst Cramer

Foi há 60 anos, na auto-estrada próxima à cidade de Gotha, na Alemanha. Nós três estávamos sentados em um jipe, sem capota: Coronel H., diretor da Unidade de Guerra Psicológica do Quartel General do 3º Exército dos EUA; nosso motorista, Henry, e eu.

Não estávamos fazendo muito progresso, principalmente por conta dos inúmeros buracos na estrada (…) Tanques e caminhões queimados perfilavam-se ao lado da estrada. Repetidamente, tínhamos que deixar passar os caminhões de suprimentos, comboios com tropas, veículos de combate e munições a caminho do front. Ambulâncias também vinham em nossa direção, transportando os feridos para a segurança. Por duas vezes passamos por grupos de alemães capturados sob guarda armada, aguardando para serem levados para alguma outra parte.

O jipe sacudia para frente e para trás. Tinha que me segurar com as duas mãos e tinha tempo de sobra. As lembranças voltavam, amontoadas, uma tentando tirar o lugar da outra. Lá estava eu, um soldado do exército dos EUA, nascido na Alemanha, a caminho do recém-libertado campo de concentração de Buchenwald, onde eu tinha sido mantido preso cinco anos e meio antes. Àquela época, durante os pogroms de novembro, cerca de 30.000 judeus alemães foram presos.

Agora era 12 de abril de 1945. Acabamos de ouvir que o Presidente Franklin D. Roosevelt falecera, e, na véspera desta viagem de jipe, o coronel de nosso acampamento, que se situava em uma antiga olaria em Eisenach, me chamara à sua presença. Primeiro, ele leu um relatório que viera da Unidade de Inteligência. “O campo de concentração de Buchenwald está ocupado por 21.400 prisioneiros políticos... 3.000 estão doentes, em situação crítica... sem medicamentos; não há suprimentos médicos nem desinfetantes… a situação é desesperadora...” Depois ele disse, secamente, que iria de jipe até lá, no dia seguinte, para, entre outros, preparar o campo para a visita do General George Patton. Ele perguntou se eu gostaria de acompanhá-lo. Naturalmente, eu disse que sim. Como estaria Buchenwald, agora? Eu só conseguia pensar naquele outono de 1938. A noite inteira eu não consegui parar de pensar naquilo.

Mas a visão dos campos da Turíngia me ajudou a clarear os pensamentos, um pouco. Apesar de nunca ter estado lá, antes, me senti em casa. Afinal, não era essa área de florestas pela qual cortávamos, o coração espiritual da Alemanha, a região onde nascera Bach? Não era essa a paisagem de onde Goethe, Schiller, Wieland e Herder escreviam? Aquela viagem acidentada pelas montanhas da Floresta da Turíngia me fez recordar quão profundamente arraigada a cultura germânica estava em mim, a despeito do meu uniforme militar americano.

Como era que eu, agora um sargento do exército americano, podia estar dirigindo através deste país que se tornara território inimigo? Durante a década de 1930, os nazistas me forçaram e a muitos outros da “raça” judia a emigrar. Eu tive a sorte de ter sido aceito pelos Estados Unidos. Tivesse eu ficado na Alemanha, provavelmente teria tido o mesmo destino que coube aos meus pais, que foram assassinados.

Após o aliado da Alemanha – o Japão – ter atacado Pearl Harbor e a Alemanha ter declarado guerra aos EUA, eu me alistei no exército. Queria a todo custo estar lá quando Hitler e seus capangas assassinos fossem derrotados, quando a justiça e a decência encontrassem o caminho de volta à Alemanha.

Porque eu falava alemão, aterrissei no Centro de Divulgação ou Divisão de Guerra Psicológica do 3o Exército dos EUA. Foi precisamente em um desses dias de abril que novamente me perguntaram se eu gostaria de ficar no governo militar ao invés de voltar imediatamente aos Estados Unidos após a guerra. No entanto, isso interferiria com meu desejo de voltar à faculdade o mais cedo possível.

Contudo, enquanto rodava naquele jipe, aquilo era a última coisa que passava pela minha cabeça. Quanto mais perto chegávamos de Weimar, mais vívida e, sim, mais vivas se tornavam as imagens na minha mente do que ocorrera no outono de 1938. Todo o horrível episódio começara na estação de trem, em um túnel sob os trilhos. Nós – várias centenas de judeus da Silésia – tínhamos sido transportados em um trem especial para Weimar. Com gritos ensurdecedores, guardas uniformizados nos atiraram em compartimentos e nos guiaram pela passagem sob os trilhos, espancando-nos indiscriminadamente com bastões, cassetetes e objetos pontiagudos.

Pouco depois, fomos forçados a ir para a praça deserta em frente à estação, e enfiados em caminhões que nos aguardavam. Após uma viagem curta, eles nos espancaram e perseguiram, de novo, com zombarias, desta vez através de uma porta muito estreita, espremendo-nos entre pilhas de pedras lá colocadas a propósito, até entrar no campo. Depois de termos ficado perfilados durante horas, em posição de sentido, no terreno barrento e encharcado onde nos reuniram, os guardas nos distribuíram entre cinco barracões de madeira recentemente construídos, através dos quais o vento soprava, forte. No total, 2.000 pessoas viviam em cada barracão, nenhum dos quais tinha janelas nem portas, apenas uma abertura no meio. Em seu interior, camas beliches de 45 cm de largura cada, empilhadas de cinco em cinco. A única maneira de alcançar esses catres de madeira era engatinhando.

Não havia cobertores, pias, instalações sanitárias. As latrinas ainda estavam sendo cavadas. Ninguém recebeu água. Algumas pessoas enlouqueceram logo naquela primeira noite. Me lembrei do estrado onde colocavam as pessoas para espancá-las. Vi diante de mim a forca, de onde um prisioneiro balançava. Dormitando na traseira do jipe, achei que tinha ouvido a voz do corajoso rabino, cujas palavras de oração saíram do confinamento do campo e chegaram até D’us. Uma vez mais, senti os golpes na minha cabeça raspada, dados por um oficial SS com um bastão de madeira.

Subitamente, no entanto, quase que ao mesmo tempo, eu estava bem desperto. Estávamos bem em frente ao campo, numa estrada através da qual eu tinha, com freqüência, sido perseguido. Os primeiros prisioneiros se aproximaram de nós, muitos deles tropeçando. No portão principal, onde os soldados americanos estavam tendo certa dificuldade de conter as massas de prisioneiros, um tenente nos fez continência. 

A seguir, iniciamos uma “visita” pelos barracões com prisioneiros tão fracos que não conseguiam ficar de pé. No caminho, o oficial nos disse que tinha realizado a primeira “assembléia de voluntários” naquela manhã, dedicada à memória do Presidente Roosevelt. A assembléia terminara com um voto de todos os presentes de usar a trágica vivência do campo de concentração para fazer justiça, não vingança. O que vimos naquele pequeno caminho entre o portão e os barracões fez tudo o que eu tinha vivenciado naquele outono de 1938 se recolher à insignificância.

Figuras marcadas pela morte achegaram-se até nós. Algumas desmaiaram pelo simples esforço de falar. Outras jaziam no chão, as juntas deslocadas. Quando nosso motorista, Henry, tentou dar algo de comer a alguns daqueles infelizes, o tenente o impediu, dizendo: “Se esse homem engolir um pouco dessa comida, ele já era”. Corpos emaciados estavam empilhados como lenha. Outros jaziam pelos cantos, aparentemente despercebidos. Pessoas em farrapos, pele e ossos, tentavam falar conosco. Alguns morreram bem na nossa frente. O fedor dos corpos misturava-se com o cheiro de cal antisséptico. Era aterradora, a visão. O pensamento de que as condições devem ter sido bem piores em Auschwitz e nos outros campos de morte era quase que insuportável.

Naquela tarde, voltamos para Eisenach em silêncio. Henry chorava tanto e tão alto que estava praticamente em convulsão; todo o seu corpo ainda se sacudia. Ele voltou no banco de trás. Eu voltei dirigindo o jipe. Ninguém falou uma palavra durante muito tempo. Finalmente, o coronel se inclinou para mim e disse, com voz rouca: “Depois do que vimos hoje, em Buchenwald, entendo por que você quer sair daqui o mais rapidamente possível e voltar para sua faculdade; e que não estará disponível para o governo militar”.

Minha resposta o surpreendeu. “Esta vivência, hoje, me mostrou qual o meu caminho para o futuro próximo”, disse. “Depois de todo o horror que vimos, sinto que é meu dever ficar aqui, ajudar a reconstruir e fazer a minha parte para trazer a Alemanha de volta à razão, decência e justiça”. Sem responder, o Coronel H. passou a mão na minha cabeça, num gesto de afeto paternal.

Esse artigo foi publicado em maio de 2005 na revista alemã The Atlantic Times