Dentro de três anos, no mês de dezembro, David Ben-Gurion estará completando 120 anos. Isto não quer dizer que ele vá desaparecer, mesmo porque já morreu quando tinha 87 anos de idade e, a rigor, continua vivo.
Sim, Ben-Gurion está vivo para todos os judeus, tanto em Israel como na diáspora, que se mantêm fiéis à sua visão de que uma vez constituído um Israel soberano, este seria um estado judaico e não somente um estado para os judeus. De acordo com a autêntica visão messiânica que permeou toda a sua existência, Ben-Gurion avistou no horizonte da história um estado judaico que, conforme registrou em suas memórias, não se destacaria no mundo por sua riqueza material ou conquistas tecnológicas, mas através de sua consistência espiritual, a partir de inamovíveis valores éticos e morais. Essa visão de Ben-Gurion, que pode até parecer utópica, está presente até os dias atuais quando a sociedade israelense se debruça em autocrítica, sobretudo no que diz respeito à manutenção de territórios ocupados. A par das condições políticas e de segurança estratégica que sustentam tal ocupação, há vozes importantes em Israel que a vêem como uma agressão aos princípios éticos que devem pautar a existência de um estado judaico, segundo o postulado de Ben-Gurion. É difícil avaliar como ele reagiria, hoje, diante dessa questão. Em 1967, logo depois da Guerra dos Seis Dias, declarou que o país deveria eliminar qualquer anseio no tocante a ganhos de territórios e que deveria abandoná-los em troca da paz. Mas, na verdade, Ben-Gurion era cético quanto às perspectivas de paz com os países árabes. Disso sou testemunha pessoal.
Em janeiro de 1972, estava eu visitando o doutor Albert Sabin, então presidente do Instituto Weizmann, quando ele me disse que tinha um encontro com Ben-Gurion no dia seguinte, a quem apresentaria um projeto educacional cujo conteúdo já não me lembro. A entrevista seria em Sde Boker, no Neguev, e ele indagou se eu gostaria de acompanhá-lo. Ora, que pergunta. Graças ao meu amigo Sabin, pude viver momentos inesquecíveis, talvez os mais significativos em meus anos de profissão. Ben-Gurion chegou ao meio-dia, exatamente na hora marcada, vestindo terno e um casaco de lã pretos, seguido por dois guarda-costas. Apesar de seus 86 anos, vinha com passos determinados. Antes da reunião, falando em inglês, disse que estava com fome. Fomos a um refeitório, acompanhados por um judeu residente na Califórnia, que tinha feito a viagem até o deserto só para tirar uma fotografia ao lado de Ben-Gurion. À mesa, sentou-se ao lado do grande líder, eu mesmo bati a foto e, em seguida, ocupei seu lugar. Serviram-lhe uma sopa de cenouras sobre a qual se concentrou, quase sem falar durante a refeição. Dispensou a sobremesa e, ato contínuo, nos encaminhamos para uma sala onde ele examinaria os papéis levados pelo doutor Sabin. Quando me vi ali fechado, junto aos dois, mal acreditei. Antes de entrar no assunto, o cientista tirou uma fotografia de Ben-Gurion da pasta e pediu que ele a autografasse. O velho, como sempre foi chamado em Israel apesar de ter sido primeiro-ministro com apenas 62 anos de idade, começou a escrever uma dedicatória na margem branca da foto. Parou, virou-se para mim e perguntou: Affection se escreve com um ou dois efes? Respondi os dois efes, mal conseguindo conter a emoção. Parecia incrível, mas numa dedicatória do grande patriarca moderno do povo judeu, endereçada a outro judeu, nascido na Rússia e naturalizado norte-americano, consagrado benfeitor da humanidade, havia uma interferência minha de uma letra, somente uma letra, mas que me significava uma imensidão.
Depois dos assuntos objetivos, passei a entrevistar Ben-Gurion, sem fazer qualquer anotação, para extrair o caráter de uma entrevista formal e de modo a deixá-lo à vontade. Primeiro, falou sobre a China, argumentando que um país tão importante, daquela dimensão e com tamanha população, não poderia continuar à margem do contexto internacional. Acreditava que Mao Tse Tung teria que se abrir para o Ocidente, o que acabou acontecendo, naquele mesmo ano, com a histórica viagem de Richard Nixon a Pequim. Abordou a questão dos territórios ocupados. Insistiu que se tratava do único trunfo de Israel para alcançar a paz. Disse-lhe, a propósito, que havia uma notícia no Herald Tribune daquele dia, na qual lhe atribuíam uma declaração segundo a qual ele considerava a viabilidade de ser alcançada a paz. Ben-Gurion respondeu: "A notícia está incorreta. Omitiram minha formulação de paz completa. Eu considero como paz aquilo que a Alemanha e a França, ou os Estados Unidos e o Japão, fizeram depois da guerra. Uma paz que inclua confiança mútua e francas relações comerciais e culturais. Nós até poderemos ter convivência com nossos vizinhos, mas nossas estruturas sociais e políticas são tão diferentes das deles, que dificilmente teremos uma paz completa". Foram palavras proféticas quando se constata o nível de paz que Israel hoje mantém com a Jordânia e com o Egito, na medida que esses dois países emitem, com relação a Israel, um tipo de declaração convencional em inglês e outra, inamistosa, em árabe.
Por causa da idade avançada, Ben-Gurion já não falava com absoluta desenvoltura. Perguntou meu nome pelos menos umas cinco vezes e, a cada resposta minha, dizia: "Vem para Israel! Vem para Israel!" Recordou-se vagamente de sua visita ao Brasil, três anos antes, quando o vi de perto pela primeira vez, durante uma recepção na embaixada de Israel, no Rio de Janeiro. Ao ser a ele apresentado pelo então embaixador Itzhak Harkavi, certificou-se do meu nome e disse: "Vem para Israel". Fui, sim, diversas vezes, mas sem me radicar, como "o velho" queria, ou melhor, exigia - não somente de mim, mas de todo o povo judeu na diáspora.
David Ben-Gurion, Gruen de família, nasceu em Plonsk, Polônia, no dia 16 de outubro de 1886. Sua mãe, Sheindel, morreu quando ele tinha onze anos de idade, exatamente no ano em que Theodor Herzl promovia, na Basiléia, o Primeiro Congresso Sionista Mundial. Para aquele menino judeu do interior polonês, a Suíça estava mais longe do que a lua e o sionismo, com este rótulo específico, apenas começava a existir. Mas seu pai, Avigdor, advogado e comerciante, já era um sionista. A casa dos Gruen era o centro, em Plonsk, do movimento Chovevei Tsion, Amantes de Sion, precursor do sionismo político. Em vez de estudar numa ieshivá, o jovem David teve uma educação secular, que manteve pelo resto da vida, e foi o fundador do movimento juvenil sionista Ezra, cujos membros renegavam o idioma ídiche, falando apenas hebraico entre si. O restante de sua biografia oficial é mais do que conhecida. Com 18 anos de idade, passou a lecionar numa escola judaica de Varsóvia e aderiu ao movimento sionista socialista Poalei Tsion. Aportou em Jaffa, na antiga Palestina, em 1906, trabalhando a terra em sucessivos agrupamentos coletivos, quando enfrentou toda a sorte de dificuldades e doenças. Como a Palestina estava sob domínio otomano, entendeu que deveria dominar as leis otomanas para defender a causa judaica. Foi estudar direito na Turquia com seu amigo Itzhak Ben Zvi, que viria a ser presidente de Israel. Por causa da primeira guerra mundial, ambos foram considerados suspeitos e expulsos do país.
David Gruen, já com o nome hebraizado para Ben-Gurion, rumou em 1915 para os Estados Unidos, onde permaneceu durante três anos. Dedicou-se a aprender inglês e fortaleceu em Nova York o movimento sionista socialista. Ali conheceu a jovem Paula Monbesz, com quem se casou. Se, por um lado, sentiu-se mobilizado pela revolução russa e com o estilo de liderança exercido por Lênin, por outro lado ficou impactado com a democracia norte-americana, que sempre o inspirou. Voltou para a Palestina e deslanchou uma carreira de ativista que o levaria à liderança da comunidade judaica ali existente e a uma posição proe-minente no sionismo internacional. Foi no decorrer desses anos que desenvolveu e solidificou as características de sua personalidade, ímpar em muitos sentidos. Apesar das inúmeras tarefas políticas e sindicais que acumulou e, além dos embates enfrentados tanto dentro como fora do âmbito judaico, encontrou tempo para se tornar um intelectual erudito. Devorou livros de filosofia; leu e escreveu comentários sobre a Bíblia, concluindo que não era somente D’us que havia escolhido os judeus, os judeus também O haviam escolhido; aprendeu o idioma grego para ler Platão no original (já primeiro-ministro estudou espanhol para melhor aproveitar o Dom Quixote, de Cervantes); aprofundou-se no budismo e na obra de Spinoza. Conforme assinalou o escritor israelense Amos Oz, sua forma habitual de comunicação se voltava para a batalha verbal em vez do diálogo; mais do que um filósofo era um ponto de exclamação com temperamento vulcânico; um judeu secular nacionalista que combinava visões messiânicas judaicas com ideais socialistas; um homem com feroz ambição de liderança, extraordinária habilidade política e um senso mais chegado ao sarcasmo do que ao humor. Tinha curiosidade pelas ciências naturais e ignorava obras de ficção, exceto os clássicos. Acima de tudo, era um trabalhador infatigável. Certa ocasião, quando primeiro-ministro, segurou sua equipe no trabalho até tarde da noite. Uma secretária tomou coragem e lhe perguntou: "O senhor nunca descansa?" - "Como descansar, você quer dizer dormir?", respondeu. - "Não, primeiro-ministro, eu me refiro a repousar". - "Eu não entendo. Como é possível alguém ficar sentado olhando para a parede?"
Ao longo da trajetória política e humana que percorreu, Ben-Gurion viveu, no meu entender, três acontecimentos absolutamente cruciais e em todos foi bem- sucedido. Se apenas um deles tivesse falhado, a corrente se romperia e é impossível imaginar qual teria sido, em função disso, o destino judaico. O primeiro grande momento deu-se durante e logo depois da Segunda Guerra Mundial. Assim como encorajou milhares de jovens da comunidade judaica da Palestina a se engajarem no exército inglês na luta contra o nazismo, após o conflito passou a combater o poder mandatário britânico, trazendo levas de imigrantes ilegais para a futura nação em embrião. As interceptações efetuadas pelos ingleses, colocando os refugiados do Holocausto novamente atrás de cercas de arame farpado, levantaram a opinião pública mundial a favor do sionismo e culminaram com a votação da partilha da Palestina, nas Nações Unidas, em 1947. Enquanto isso acontecia às claras, Ben-Gurion criou um exército nas sombras, encarregado de comprar armas para a futura guerra pela independência, que ele estava certo que viria. O quartel-general, disfarçado como empresa comercial, ficava em Nova York, num andar do prédio onde se situava a boate Copacabana, comandado com notável eficiência por Teddy Kollek, o hoje legendário prefeito de Jerusalém. O trabalho desenvolvido por Kollek, envolvendo inclusive a compra de navios e aviões, vai além da imaginação, antecipando uma frase que Ben-Gurion diria anos mais tarde: "O difícil a gente faz imediatamente. O impossível leva um pouco mais de tempo"
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O segundo grande momento correspondeu ao da declaração da independência de Israel. No dia 13 de maio de 1948, véspera da data marcada, a liderança sionista foi notificada de que os Estados Unidos, mais precisamente o secretário de estado, general George Marshall, opunham-se à independência, temerosos das conseqüências que tal ação unilateral poderia causar em todo o Oriente Médio. Parte considerável dos líderes sionistas também se opunha à independência imediata com base em previsões sinistras de derrota. Entretanto, mesmo ciente de que o novo país sofreria um forte e imprevisível ataque armado por parte dos países árabes, Ben-Gurion sabia que, se aquela oportunidade fosse perdida, era impossível dizer quando haveria outra, se é que haveria. Na manhã do dia 14, os membros do futuro gabinete ainda discutiam os termos da declaração de independência. Uns queriam que o texto fizesse menção às fronteiras, tais como definidas pela partilha. Ben-Gurion se opôs: a declaração norte-americana não falava em fronteiras. Na verdade, ele pressentia que estas poderiam vir a ser alteradas em função das batalhas, tal como aconteceu após a celebração do armistício, em Rodes. Os ortodoxos insistiam na inserção do termo "D’us, Todo Poderoso". Os seculares rejeitavam. Prevaleceu a opinião de Ben-Gurion: constaria o termo Rocha de Israel (Tsur Israel), equivalente a D’us. E o nome do país? Uns disseram Judéia, outros Sion. Mais uma vez, Ben-Gurion bateu o martelo: Israel.
A cerimônia estava marcada para as quatro da tarde. Enquanto o texto era polido, um artista plástico, Otto Wallisch, percorria a cidade em busca de adereços que ornassem condignamente o salão do Museu de Tel Aviv, onde seria realizada a cerimônia oficial. Depois de muita procura, acabou encontrando um retrato de Theodor Herzl, cujo tamanho insatisfatório foi aumentado com uma larga moldura. Achou duas bandeiras com as estrelas de David, mas estavam tão sujas que tiveram que passar por uma lavanderia rápida antes de serem levadas para o museu. Ben-Gurion tinha corrido até sua casa na rua Keren Kayemet, número 5, para trocar de roupa. O texto final lhe seria entregue na entrada do salão. Seu assistente direto, Zeev Sharef, de posse do documento final, providenciou conduções para os líderes e ele mesmo acabou ficando a pé. Nem sombra de um táxi. Pediu ajuda a um policial que parou o primeiro carro, pedindo ao motorista que levasse Zeev. O homem respondeu: "Não posso. Estou indo para casa. Quero ouvir pelo rádio a declaração da independência". Ao que Zeev atalhou:"Pois se você não me levar, não haverá declaração a ser ouvida". Ele chegou ao museu quando faltava exatamente um minuto para as quatro horas e entregou a declaração a Ben-Gurion.
O terceiro momento crucial vivido por Ben-Gurion corresponde ao episódio do navio "Altalena". No dia 12 de junho, Menachem Begin, líder da organização Irgun, que havia cometido ações armadas contra militares ingleses, anunciou que dali a cinco dias chegaria a Israel um navio com mil imigrantes e armas e munições que dariam para abastecer dez batalhões. Begin queria que seus homens, lutando em Jerusalém, ficassem com vinte por cento da preciosa carga. Ben-Gurion respondeu que tudo deveria ser entregue aos combatentes da nova nação, inclusive as armas que a Irgun ainda mantinha em seu poder. Era imprescindível, naquela quadra dos acontecimentos, a união nacional. Begin não se conformou e ameaçou ficar com tudo. "O Altalena" deitou âncora em frente a Kfar Vitkin e os caixotes começaram a ser descarregados. Um oficial daHaganá (ainda não havia o exército regular israelense) entregou a Begin um ultimato: ou as armas eram entregues, ou tudo seria confiscado. Diante da recusa, Ben-Gurion decidiu usar a força. O navio deslocou-se até a costa de Tel Aviv e encalhou sobre os destroços de um velho navio afundado pelos ingleses. Na manhã do dia 22, Ben-Gurion reuniu o gabinete. Seus olhos flamejavam enquanto dizia: "O que está acontecendo coloca em perigo nosso esforço de guerra e, mais importante ainda, ameaça a existência do país. Um estado não pode sobreviver sem que o seu exército seja controlado pelo próprio estado". E enquanto Ben-Gurion se dirigia ao gabinete, Menachem Begin falava de um alto-falante no navio: "Povo de Tel Aviv! Nós, da Irgun, trouxemos armas para combater o inimigo, mas o governo está negando o acesso a elas. Ajude-nos a descarregar. Se há diferenças entre nós, vamos resolvê-las depois". Ao mesmo tempo, no quartel-general da Palmach, corporação ligada à Haganá de Ben-Gurion, seus comandantes, Ygal Allon e Itzhak Rabin, começaram a distribuir granadas a seus homens. Uma lancha passou a trazer a carga para a praia e Ben-Gurion estava perfeitamente calmo quando disse: "Não há jeito. Vamos ter que bombardear o navio". Em seguida, o "Altalena" foi atingido por um petardo e pegou fogo. Mais de cem pessoas morreram. Outras se jogaram ao mar e foram recolhidas por botes, inclusive Begin que, naquela noite, voltou a falar através de sua estação de rádio secreta: "Os soldados da Irgun não vão entrar numa guerra fratricida, mas também não vão aceitar a disciplina de Ben-Gurion". Mas a história demonstrou que a disciplina de Ben-Gurion acabou mesmo prevalecendo. A rigor, ele não conferia ao Exército de Defesa de Israel apenas um valor militar, mas encarava-o como um poderoso centro de integração social, como uma instituição que traria homogeneidade nacional aos jovens judeus que tinham chegado ao país provenientes de todos os cantos do mundo.
Foi no trágico episódio do "Altalena", até hoje encravado no âmago dos entrechoques políticos israelenses, que Ben-Gurion promoveu a união do povo de Israel. Ele fez dessa inabalável necessidade de união a sua prática e teoria, partindo do princípio segundo o qual a nova e emergente sociedade judaica, que estivera dividida por dois mil anos, desconhecia qualquer forma de se governar e sequer possuía uma autoridade espiritual centralizada. Na biografia Ben-Gurion, Prophet of Fire, o autor Dan Kurzman escreve que Ben-Gurion era, ao mesmo tempo, humilde e arrogante, tímido e agressivo, alerta e ausente, generoso e mesquinho, comiserado e cruel, sentimental e frio. Muitas vezes tratou aliados com desprezo e admirou adversários, justamente porque estes se atreviam a desafiá-lo. Manobrava o Parlamento como um ditador, mas obedecia cegamente às regras da democracia. Quanto aos seus sentimentos religiosos, confidenciou a um amigo; "Depois de muito ler e de muito meditar, acho impossível provar que D’us não exista".
Zevi Ghivelder
Jornalista e escritor