Conheci Ariel Sharon, ou simplesmente Arik, como prefere ser chamado, em 1971, no Rio de Janeiro, quando ele visitou a cidade pela primeira vez.
Emitia conceitos com a mesma contundência de hoje e, assim como ainda o faz, insistia em esgotar qualquer desacordo que por acaso surgisse no meio de uma conversa. Dizia ser um bom conhecedor de assuntos militares enquanto se declarava péssimo entendedor de política.
Tornei a ver Arik pessoalmente, em circunstâncias únicas, logo depois do cessar-fogo da guerra do Yom Kipur, em outubro de 1973. Eu fazia a cobertura jornalística do conflito e não podia deixar de entrevistá-lo do outro lado do canal de Suez, ou seja, em parte do território egípcio por onde ele havia irrompido com seus blindados e tropas, numa audaciosa travessia que havia mudado radicalmente, a favor de Israel, o destino da guerra. Ir até lá significava uma extenuante viagem de automóvel de pelo menos sete horas por uma estreita faixa de asfalto, através do deserto do Sinai. Contando com a ajuda de Amos Ettinger, bom amigo, bom jornalista e bom poeta, consegui lugar num avião militar Hércules, aqueles enormes, que mais parecem garagens voadoras. Sentado na cabine, atrás do piloto, a bolha de vidro que corresponde à frente do avião, proporcionava uma paisagem fantástica. À direita, o azul do Mediterrâneo; embaixo, a costa de El Arish com areia branca e coqueirais que lembravam a Bahia; à esquerda, ao longe, um cintilante ponto dourado Jerusalém. Quando aterrisamos junto à base militar comandada por Sharon, uma decepção: ele tinha-se ausentado para outra missão e só voltaria no dia seguinte. Eu, Amos e mais um amigo passamos a noite numa casinhola abandonada no meio do deserto. Fui encontrá-lo às seis da manhã, fazendo a barba junto ao espelho de um jipe. Bati a primeira foto. Depois, a conversa não mais parou. De início, na base. Em seguida, a bordo de um monomotor, rumo a Beersheva. Do alto e apontando para o solo, ele me explicava como havia cercado o Terceiro Exército egípcio, os locais das batalhas de tanques e sua trajetória para atravessar o canal. Era tudo como se ele fosse o narrador de um impressionante documentário que se descortinava perante meus olhos. Continuamos a entrevista por mais horas em sua casa em Beersheva, forrada no chão e nas paredes com belos tapetes orientais.
Se me estendo nesses pormenores, é porque naquele dia pude entender quem era de fato Arik Sharon. Tudo que dele ouvi, serviu como introdução para o que veio a ser a carreira que empreendeu na política que dizia desprezar. Até então, era inamovível sua afinidade com o establishment do Partido Trabalhista, no poder desde a fundação do Estado. Sharon havia deixado o comando da Região Sul seis meses antes do início da guerra do Yom Kipur. Em face do inicial insucesso israelense, Moshe Dayan, responsável pelo Ministério da Defesa, decidiu reconvocá-lo. Aí começaram os problemas. O substituto de Arik, naquele comando, era o general Goren. Coube a Sharon expor-lhe um plano que havia traçado tempos atrás: onde e como, em determinados pontos do canal de Suez, as forças armadas de Israel deveriam atravessar para o outro lado, considerando a hipótese de que os egípcios viessem a ser bem sucedidos numa semelhante operação de travessia e fincassem pé em território israelense, tal como aconteceu. Em suma, sua tese era no sentido de que a melhor defesa seria o ataque. Goren ignorou o que ouviu e consta ter dito: Esta guerra vai levar o meu selo e não o de Sharon.
O fato é que enquanto a posição israelense cada vez mais se tornava vulnerável no Sinai, Arik insistia junto ao general Bar Lev, também reconvocado em hierarquia supe-rior, que lhe desse luz verde para a travessia. Bar Lev discordava. Num dos dramáticos dias da guerra do Yom Kipur, houve uma discussão tão áspera entre os dois que, conforme Sharon me revelou, ele teve que se conter para não agredi-lo fisicamente. Por fim, David Elazar, chefe do Estado-Maior, e Dayan deram um basta e permitiram que Arik fizesse o que julgasse melhor. O resto da história todos conhecem. Entretanto, a cicatriz da rusga não chegou a ser fechada. Quando a guerra terminou, Sharon ambicionava e, com razão, a partir de seu impecável currículo militar, o posto que Elazar deixaria no ano seguinte. Influenciado por Bar Lev e outros, o establishment vetou-o para a função. Foi quando Arik, amargurado, deu adeus às armas e se embrenhou na política, costurando com Menachem Begin, do Herut, a formação de um novo partido, o Likud, que chegaria ao poder em 1977.
Desde então venho mantendo com Arik Sharon contatos intermitentes e sempre gratificantes, apesar de algumas divergências factuais e ideológicas. Certa ocasião, levou-me para conhecer um punhado de novos assentamentos na Cisjordânia. Discordei da existência deles e, até hoje, as explicações que deu para a sua implantação não me convenceram. Ao longo de tudo que dele tenho visto, lido e ouvido, resta-me uma certeza absoluta: em nenhum momento de sua atuação de trinta anos na política, Ariel Sharon colocou o seu interesse pessoal acima do que julgou ser melhor para os interesses do país. Porém, o que mais me fez admirá-lo, todo esse tempo, é a maneira pela qual se sente judeu. Antes judeu, depois israelense. Na última semana de fevereiro, disse ele num discurso pronunciado perante a assembléia geral da Agência Judaica:
Em primeiro lugar, sou um judeu. E, para mim, ser judeu é o mais importante. Em todos os meus encontros diplomáticos ao redor do mundo, como ministro das relações exteriores e como primeiro-ministro, venho repetindo aos meus interlocutores que sou um judeu, que venho do país do povo judeu, que venho de Jerusalém, a capital do povo judeu por mais de três mil anos e que será a capital unida e indivísivel do Estado de Israel para sempre.
Nos últimos anos, a esquerda israelense ficou tão empenhada em ter ódio de Ariel Sharon, que não percebeu sua estratégia de mudança política e que o levou a ser o vencedor, com larga margem de votos, de duas eleições sucessivas. Assim como Tony Blair seduziu os ingleses migrando da esquerda para o centro, Sharon migrou da direita para a mesma direção. Ao contrário do que afirma a mídia internacional, ele amaciou a linha dura que o caracterizava e fixou-se numa plataforma que prometeu inflexibilidade em matéria de segurança e flexibilidade em negociações com os palestinos quando existirem condições favoráveis. Após seu triunfo eleitoral de janeiro, Sharon propôs inutilmente que o Partido Trabalhista viesse ao seu encontro para formar um governo de coalizão. Imagino que tenha feito isso como quem toma um remédio amargo, mas insistiu nisso por julgar que seria melhor para os interesses do país.
Assim como Golda Meir tomava importantes decisões na cozinha, Arik costuma decidir-se depois de reuniões em torno da mesa de jantar de sua fazenda perto de Ashkelon, vizinha do kibutz brasileiro Bror Chail. É uma bela e produtiva propriedade. Em seu quarto de dormir há na parede uma fotografia em que aparece fazendo a barba no espelho de um jipe. Foi a que eu tirei no deserto do Sinai.n
Zevi Ghivelder
Jornalista e escritor