O festival de Cannes premiou neste ano de 2002, com a Palma de Ouro, um filme dirigido por Roman Polanski, O Pianista, adaptado do livro autobiográfico de Wladyslaw Szpilman.
Sua narrativa é de uma força excepcional. Ver um dos maiores cineastas, aplaudido de pé pelo público, balbuciando, com lágrimas nos olhos, algumas palavras de agradecimento à sua equipe e aos milhares de figurantes do filme, foi um dos momentos mais emocionantes do festival de Cannes.
Sinopse: do livro para o filme
Durante a II Guerra Mundial, o famoso pianista judeu polonês, Wladyslaw Szpilman, vê sua família ser deportada em 1942. Ele consegue salvar-se, por puro acaso, do comboio da morte. Um policial, músico também, o arranca do vagão. Mas é enclausurado junto com outros milhares de judeus no Gueto de Varsóvia, errando às escondidas durante mais de dois anos e passando por sofrimentos, humilhações e lutas impossíveis numa Varsóvia dominada pelos nazistas. Doente, solitário e faminto, deve sua vida a um outro oficial alemão, católico, Wilm Hosenfeld, que tem uma paixão exagerada pela música. Abalado pelos crimes nazistas, decide ajudá-lo a sobreviver.
Três etapas dividem o filme: a opressão sufocante da sucessão de leis anti-semitas, que os judeus da época queriam acreditar, a cada novo decreto, que aquele seria o último. O medo, frente ao nazismo, presença estranha e desumana, que ameaçava pessoas e famílias inteiras. Enfim, o inexplicável dos crimes imprevisíveis e frios, que não deixam margem para esperanças. Polanski consegue fazer esta reconstituição com rara autenticidade. No filme "O Pianista", não se chora, mas um sentimento de revolta e de raiva se apodera do espectador diante da maldade dos carrascos.
Neste filme, o diretor Roman Polanski quis reatar seus laços com sua origem judeu-polonesa, com infância passada no gueto de Cracóvia. Sua mãe morreu no campo de concentração e, embora seu pai tivesse sobrevivido, o mais terrível de tudo é que uma criança resiste a tudo, mas fica marcada para sempre quando é separada dos pais, diz Polanski em entrevista a "O Estado de São Paulo", em 9 de outubro de 2002. Sempre soube que um dia faria um filme sobre o Gueto de Varsóvia, sobre esse período doloroso da história da Polônia, mas não queria que fosse autobiográfico. Desde a leitura dos primeiros capítulos das memórias de Szpilman, soube que "O Pianista" seria objeto de meu próximo filme. Era a história que eu precisava: apesar do horror, positiva e cheia de esperança. Sobrevivi ao bombardeio de Varsóvia e ao gueto de Cracóvia e quis recriar as lembranças de minha infância. Quis ficar o mais perto possível da realidade e não filmar à moda de Hollywood. A história de Spzilman permite a Polanski reviver sua própria história e o tema do isolamento humano, tão caro a ele, reaparece no filme através de janelas: quando Spzilman é obrigado a pular de abrigo em abrigo, de um apartamento de amigos poloneses para outro, vemos o Gueto de Varsóvia através de seus olhos. Vemos o que ele vê e, mais importante ainda, da forma como ele vê. Esses fatos estão inscritos na sua consciência e vão moldar sua memória para o resto da vida.
No livro que escreveu, Szpilman nunca se coloca como herói, mas como um sobrevivente acidental, um homem que por ironia do destino deve sua vida ao inimigo.
Da vida para o livro
Wladyslaw Szpilman nasce em 1911 em Sosnowiec, na Polônia. Ainda jovem, estuda piano com Joseph Smidowicz e Alexander Michalowski, antigos alunos de Liszt. Em 1931, parte para Berlim para continuar seus estudos na Academia de Música. Durante esses anos compõe um Concerto para violino, a suite Zycie Maszyn (A vida das máquinas), e várias outras peças para piano e orquestra, para violão e também muitas canções populares que lhe valeriam uma bela reputação em seu país. Rapidamente é considerado um compositor promissor e um pianista virtuoso.
Em 1935, Szpilman é contratado pela Rádio Estatal polonesa, em Varsóvia. Em 1939, enquanto interpreta um noturno de Chopin, uma bomba jogada por um avião da Luftwaffe destrói o transmissor da estação de rádio. É o início da agonia do pianista, que duraria seis anos.
E é em 1945, quando a rádio polonesa volta a funcionar, que ele recomeça, interpretando o final do "Noturno em C menor", de Chopin, que fora obrigado a interromper brutalmente, seis anos antes. Por coincidência, esse mesmo "Noturno" salva sua vida quando, quase no final da guerra, é descoberto no seu último esconderijo por um oficial alemão, que o faz tocar em um piano no meio de uma Varsóvia em ruínas.
Em 1946, com o título "Morte da cidade", publica o livro em que relata o seu incrível destino. O tom da obra é autêntico, rejeitando a emoção fácil ao reconstituir a vida do gueto, dos algozes e das vítimas que o povoam. O livro é prontamente interditado pelas autoridades comunistas.
Szpilman é então nomeado diretor musical da estação de rádio e dá grandes concertos na Europa e na América. Em seguida, continua a compor músicas que se tornam sucessos e hoje fazem parte do patrimônio cultural polonês. Na década de 1950, escreve canções para crianças, que lhe valeram o prêmio da União dos Compositores Poloneses, em 1955. Em 1961, funda o Festival Internacional da Canção, em Sopot, e a União dos Autores de Música Popular da Polônia. Em 1964, é eleito membro da Academia dos Compositores Poloneses.
Seu filho, Andrejsz Szpilman, descobriu em 1998 o manuscrito de suas memórias e graças a isto é lançada uma nova edição na Alemanha.
A obra obtém sucesso imediato. É traduzida no mundo inteiro, com destaque especial na França, sob o título "O Pianista", onde conquista o Prêmio de Melhor Livro de 2001, da redação de "Lire". Wladyslaw Szpilman morreu em Varsóvia, a 6 de julho de 2000, aos 88 anos.
Polanski e Spzilman, um passado em comum
Vários filmes, como "A lista de Schindler", de Spielberg, ou "A vida é bela", de Roberto Begnini, tentaram mostrar a dimensão do que foi o Holocausto. Algumas das cenas do filme "O Pianista" impressionam por seu realismo. A cena final, em que Szpilman se encontra na Varsóvia do fim da guerra, parece uma arena de sobreviventes de um pesadelo.
Foi difícil achar os lugares em ruí-nas que a história exigia. Portanto, foi necessário reconstruir a cidade a partir de vários elementos. Algumas ruas foram inteiramente reproduzidas em um estúdio de Berlim.
Polanski sabe que o cinema é incapaz de recriar o passado. Mas a história de Szpilman está aí para servir à visão de Polanski. Numa das mais emo-cionantes cenas do filme, o oficial que o salva da morte ordena ao pianista que toque, a fim de provar que é mesmo talentoso e famoso. Szpilman obedece, mesmo sem ter tocado desde o início da guerra. A cena é um tributo ao significado da sobrevivência.
Em outra cena inesquecível, antes de embarcar nos trens para os campos que matariam seus pais, duas irmãs e um irmão, o autor divide com eles uma barra de caramelo cortada em seis, sua última refeição juntos. Em nenhum momento do livro, Szpilman mostra desejo de vingança. No fim da guerra tenta encontrar e salvar da prisão russa o oficial alemão que o tinha ajudado.
No filme, Polanski processa sua própria biografia e faz seu auto-retrato com a ajuda de um outro auto-retrato. Mesmo sendo tocado diretamente pelo tema, rejeita a emoção fácil e faz o espectador descobrir mais um surpreendente testemunho do heroísmo do Gueto de Varsóvia. Tanto no livro como no filme, "O Pianista" toca fundo em nossa alma. Sua lucidez e coragem, em condições onde uma migalha de pão fazia a diferença entre a vida e a morte, conseguem transmitir uma lição de vida. Como documento, "O Pianista" nos dá a oportunidade de acompanhar a trajetória de um homem determinado a viver, a qualquer preço. O lirismo do músico, aliado a uma inteligência crítica, faz o espectador querer ir cada vez mais fundo em seu passado. E assim como Polanski se identificou e se emocionou com esse vigoroso relato, nós, também, revivemos através do filme, uma vez mais, um dos mais dramáticos episódios da História Judaica a destruição em massa dos judeus de Varsóvia.
Bibliografia
The Pianist - Wladislaw Szpilman