Um símbolo, uma lenda, um tesouro nacional. Estas são algumas das inúmeras maneiras pelas quais os fãs e admiradores do norte-americano Al Hirschfeld se referem ao artista que se tornou célebre nos Estados Unidos pelas caricaturas que fazia dos artistas da Broadway.
Publicadas por mais de 75 anos na seção de teatro da edição dominical do jornal The New York Times, suas caricaturas passaram a ser esperadas ansiosamente pelos leitores não apenas pelo humor, mas por trazerem uma charada que se tornou uma das principais características do trabalho de Hirschfeld: o costume de misturar aos traços dos desenhos, várias vezes, o nome de sua filha Nina. Ao lado de sua assinatura, o artista agregava um número que indicava quantas vezes o nome aparecia. Ao leitor atento, cabia a tarefa de localizá-lo. Mais do que um hábito, isto se tornou um prazer e um passatempo não apenas para os nova-iorquinos, mas para os norte-americanos em geral pois, ao longo das décadas, as obras de Hirschfeld foram publicadas em centenas de jornais de todo o país.
Nascido em 1903, em St. Louis, Missouri, Hirschfeld era considerado pela crítica como uma criança prodígio que cresceu, mas jamais envelheceu. Sua visão de mundo e principalmente do teatro norte-americano era carregada de uma alegria que transpôs a suas obras e que se refletia na leveza de seus traços e na expressão dos personagens. Irônico sem ser malicioso, repassava com muita sensibilidade para seus desenhos o que captava da interpretação dos artistas durante os ensaios e nas noites de estréia. Consagrou-se desde o início de sua carreira como um caricaturista que transmitia o espírito das obras e dos seus personagens sem jamais ser caricato. Segundo seus amigos e os próprios artistas a quem retratou, jamais usou sua pena e seu talento para ridicularizar o trabalho dos outros.
Dono de um senso de humor permanentemente alerta, Hirschfeld dava sempre a mesma resposta quando lhe perguntavam qual o seu trabalho favorito: O último. Da mesma maneira, sempre se definia como um judeu cultural, demonstrando jamais esquecer as suas origens familiares. Sempre disposto a compartilhar sua história de vida, o caricaturista gostava de contar como um garoto nascido no Missouri se tornara um dos mais famosos artistas do país. E, nesta trajetória, jamais deixou de mencionar seus pais, os quais dizia terem feito inúmeros sacrifícios por ele, sendo os principais responsáveis pelo seu sucesso. Seu pai, Isaac, nasceu em Albany, no estado de N.Y., e a mãe, Rebeca Rothberg, na Ucrânia e falava ídiche.
Meus pais tinham fé em mim. E, quando o professor de Arte disse a eles que eu não teria futuro como artista se permanecesse em St. Louis, não tiveram dúvida quanto ao que fazer. Assim, com meus dois irmãos, mudamo-nos para Nova York. Minha mãe logo conseguiu emprego em uma loja e meu pai ficava a maior parte do tempo em casa, tomando conta de nós. Ele era maravilhoso, lembrou o artista em uma entrevista concedida à jornalista Alice Burdick Schweiger, da publicação The Jewish Times.
Nova York mostrou ser o local certo para a família Hirschfeld. Foi nessa cidade que o jovem Al, além de aprofundar seus estudos de arte, entrou em contato com o mundo teatral. Depois de, aos 14 anos, assistir a apresentação de uma peça pela primeira vez, sua paixão pelo desenho misturou-se ao amor pelo palco. Depois de terminar o segundo grau, conseguiu seu primeiro emprego na Goldwyn Pictures, ganhando US$ 4 por semana. Um dia, seu chefe, Howard Dietz, viu um de seus desenhos e lhe pediu que fizesse um anúncio para a empresa. A partir desse dia, ele começou a fazer cada vez mais anúncios.
Com 18 anos, Hirschfeld conseguiu outra colocação como diretor de Arte da Szelznick Pictures, onde aperfeiçoou ainda vez mais o seu traço. Aos 21 anos, já conseguira fazer algumas economias e foi para Paris. Foi na capital francesa que ele estudou pintura. Esta, no entanto, logo foi esquecida e ele voltou a se dedicar apenas ao desenho.
Em 1926, com 23 anos, Hirschfeld retornou a Nova York , onde começou a criar desenhos sobre o teatro. Juntamente com seu agente, Richard Mancy, foi assistir ao espetáculo de um ator francês, Sacha Guitry, sobre o qual fez uma caricatura. Bastante impressionado com o trabalho do jovem artista, Mancy o mostrou ao editor do New York Herald Tribune, que o publicou na edição dominical. Esta primeira publicação abriu novas perspectivas para a carreira de Hirschfeld, levando-o a fazer desenhos para outros veículos. No ano seguinte, recebeu um telegrama do The New York Times pedindo-lhe um trabalho sobre o artista escocês Harry Lauder. Fiz um desenho que acabou sendo publicado. A partir de então, durante dois anos, eu mandava obras para o jornal, sem jamais ter ido até lá e sem conhecer pessoalmente ninguém do veículo, contou o caricaturista a Alice Sch-weiger. Uma noite, no entanto, no intervalo do espetáculo, ele conheceu o editor do Times, que lhe disse: Al, você é o homem mais misterioso do jornal. Desde então, ele passou a levar pessoalmente seus desenhos.
Mais de 70 anos se passaram desde a publicação do primeiro trabalho de Hirschfeld no The New York Times. Ao longo de sua carreira, ele assistiu a tantos espetáculos e fez tantas caricaturas que é praticamente impossível precisar-se o número exato de suas obras. Assistindo aos ensaios, estando presente às pré-estréias e repetidas vezes aos mesmos shows da Broadway e também de outros palcos, ele conseguiu capturar com sensibilidade a essência dos artistas e de seus personagens, estudando seus gestos, a expressão de seus rostos e sua linguagem corporal. Criador de um estilo singular, retratava com traços simples e bem definidos o mundo artístico. Seu acervo inclui rostos famosos do passado, como Charlie Chaplin, Al Johnson e Louis Amstrong e sucessos mais recentes como o violinista Yitzhak Perlman e o apresentador de televisão David Letterman, apenas para citar alguns.
O traço de Hirschfeld foi inicialmente influenciado por Charles Dana Gibson, criador do personagem Gibson Girl, e John Held, ilustrador do Jazz Age. Mas segundo o próprio caricaturista, sua maior influência veio de uma viagem que fez ao Extremo Oriente, em 1932. Sobre esse período, conta: Quando visitei Bali, fiquei intrigado pelos relevos japoneses. Aprendi muito com a arte asiática, que elimina as cores em função do traço. O artista norte-americano seguiu esta inspiração para criar seu estilo. Em 1945, acrescentou o toque especial mencionado acima de diluir o nome de sua filha Nina em meio aos seus trabalhos escondidos em cabelos, sobrancelhas, dobras ou como fundo. Segundo o próprio artista, ele incluiu 40 vezes a palavra Nina em um desenho da atriz Whoopi Goldberg um recorde não superado até a sua morte.
A história do teatro nova-iorquino pode ser acompanhada pelos trabalhos de Hirschfeld. Durante a década de 1930, o caricaturista viu o surgimento de uma nova geração de autores, entre os quais, Orson Welles, bem como de atores, como Alfred Lunt e Lynn Fointaine. A década de 1940 trouxer à tona o talento de Tennessee William e as montagens de Oklahoma e South Pacific. São desse período, também, as litografias coloridas, como Lindy Hop, e uma presença maior de texturas. Entre a década de 1950 e 1960, ganham força o traço e as brincadeiras com o nome de sua filha, com o aumento do número das caricaturas sobre a Broadway. Nas décadas seguintes, o preto e o branco tornam-se predominantes em seus trabalhos.
Personalidade das mais marcantes de seu tempo, Hirschfeld é tema de cursos nas faculdades de Artes dos Estados Unidos. Sua obra é comparada pelos críticos aos trabalhos de Daumier e Toulouse-Lautrec, tendo sido publicada em livros e em coleções de inúmeros museus, inclusive no Metropolitan, no Museu de Arte Moderna e no Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York, e no de St. Louis, sua cidade natal.
No prefácio do livro O Mundo de Hirschfeld, publicado em 1970, ele afirmava: Não é meu objetivo destruir a peça ou o ator, ridicularizando-os. A paixão da convicção pessoal pertence ao escritor; a interpretação física dos personagens, ao ator; e o traço, a mim. Minha contribuição é pegar o personagem criado pelo escritor e tornado vivo pelo ator e reinventá-los para o leitor. Estas palavras, ainda que escritas há mais de 30 anos, permanecem atuais quando se analisa o acervo criado pelo artista, que inclui livros como Manhattan Oasis, de 1932, sobre os bares e barmen da cidade; a edição limitada de Harlem; Westward Ha!, entre outros. Em 1996, foi exibido pela televisão o documentário The Line King (O Rei do Traço), sobre sua vida, indicado para o Oscar. Hirschfeld morreu aos 99 anos, em 20 de janeiro de 2003.