Imre Kertész, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, é o primeiro húngaro a receber o Nobel de Literatura. O prêmio foi anunciado na quinta-feira, 10 de outubro.
Nascido em Budapeste, em 1929, Kertész, hoje com 72 anos, foi deportado em 1944, aos 15 anos, primeiro para Auschwitz e, em seguida, para Buchenwald, de onde foi libertado em 1945. Toda sua obra literária está calcada na experiência traumática vivida nos campos de concentração.
Escritor, jornalista e ensaísta desde 1953, traduziu para o húngaro os filósofos Wittgenstein e Nietzche, o psicanalista Sigmund Freud e o autor Elias Canetti (ganhador do Nobel em 1981).
Desde 1960 se dedica a transmitir sua experiência pessoal através da literatura. Sua obra não se encaixava no tipo de literatura vista com bons olhos pelo regime comunista, imposto à Hungria pela União Soviética. Portanto, foi ignorado em seu país até a queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989. Seu primeiro romance, "Sorstalanság" (Sem destino), foi pouco apreciado na Hungria, mas produziu forte impacto ao ser traduzido e publicado na Alemanha. A publicação dos romances seguintes, "A Kuolark" ("O fiasco - 1988) e "Kadis a Meg nem Születelt Gyermekért" ("Kadish por uma criança não nascida" - 1990), confirmavam suas qualidades e a força de sua mensagem. Esta última obra foi publicada no Brasil em 1995 pela Editora Imago.
Ao anunciar o prêmio, a Academia Sueca declarou: "Para o autor, Auschwitz não é uma experiência excepcional - é a verdade sobre a degradação do ser humano na história moderna". E também: "... a obra de Imre Kertész analisa se a vida e o pensamento individual podem existir em uma época em que os homens são subordinados totalmente ao poder político" e "... sua escrita leva adiante a frágil experiência do indivíduo contra a bárbara arbitrariedade da história".
Peter Lazlo Zent, diretor do Festival Internacional do Livro de Budapeste, observa que o que faz Imre Kertész "genial" é que sua obra não é marcada pela experiência "sob o ponto de vista da vítima", mas "pela procura do humano no que há de mais desumano".
Isto pode ser sentido no seguinte trecho da sua obra "Sem destino": "Lá também, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento, havia alguma coisa que parecia ser a felicidade... Sim, é isso, é da felicidade dos campos de concentração que devo falar da próxima vez que me fizerem perguntas, se um dia as fizerem".
"É um momento de surpresa e alegria", afirmou Kertész ao receber o anúncio do prêmio, em sua casa em Berlim, onde está vivendo com a mulher por um ano, para trabalhar em sua próxima obra.
Em uma recente entrevista ao jornal espanhol "El País", Kertész afirmou quão essencial à sua literatura é sua condição de judeu e observa alguns paradoxos inerentes à sua obra: o Holocausto não tem língua. Cada sobrevivente o lembra em seu próprio idioma. Então, para o Holocausto ser integrado em uma experiência humana mais geral, dependerá da cultura em cujo idioma as memórias foram relatadas. Na Hungria, o Holocausto não faz parte da cultura ou da memória do país. Kertész acredita que, com este reconhecimento, o genocídio dos judeus será finalmente olhado de frente na Hungria.
Outro paradoxo que Kertész frisa durante a entrevista é se tem sentido perguntar-se de que maneira a cultura européia se aproximou dessa existência ameaçada, que se manifestou em seu grau mais absoluto em Auschwitz, já que foi esta esta mesma cultura européia o que provocou tal ameaça.
Vê com perplexidade os protestos contra a globalização, que entende como um medo irracional que leva as nações a se fecharem. Os slogans usados nessas manifestações parecem-lhe ter sido retomados do "velho poder soviético". "Primeiro se atacava a globalização, depois se ou-viam críticas aos Estados Unidos, depois se tomavam posições contra Israel".
À pergunta se acredita que existe na Europa um novo sentimento anti-semita, responde que em alguns casos a crítica contra Israel é a nova linguagem do anti-semitismo, "mas não porque não se possa criticar o que Israel faz. Há que analisar com precaução o que existe por trás das críticas contra Israel e o que significaria o seu desaparecimento. O problema é que poucos são os que dirigem suas críticas somente à ação política, geralmente estendendo-as a toda uma nação. As grandes tragédias se produziram quando as decisões foram adotadas a partir de um juízo coletivo. O Holocausto começa assim, a partir de um julgamento coletivo". Recentemente Kertész foi criticado pela imprensa húngara por sua posição a favor de Israel.
A gigante editora espanhola Planeta, que está montando uma filial brasileira, adquiriu, para o lançamento no País, os direitos de quatro romances de Imre Kertész. Entre estes, o grande sucesso de 1975, "Sem destino", ainda sem data para sair no Brasil. A proprietária dos direitos mundiais de Kertész é a editora alemã Rowohlt. Siv Bublitz, responsável pela publicação do húngaro na Alemanha, que convenceu a Rowohlt a comprar todo o trabalho do romancista, afirmou que este Nobel não é só de Literatura, mas também de Paz, porque "ele viveu o pior que a humanidade já experimentou e eu, pessoalmente, nunca encontrei alguém que transmitisse tanta paz quanto Kertész".
Como afirmou Nelson Ascher, na "Folha de S. Paulo", no ano em que um laureado anterior (José Saramago) comparou a situação em Ramallah a Auschwitz, o Nobel de Literatura concedido a Kertész constitui um corretivo absolutamente necessário: o autor premiado é alguém que lá esteve, não num lugar comum metafórico, mas no verdadeiro campo de extermínio.
Obras publicadas pelo autor:
"Sem destino", Budapeste 1975; "O rastreador", Budapeste 1977; "O Fiasco", Budapeste 1988; "Kadish por uma criança não nascida", Budapeste 1990; "A bandeira inglesa", Budapeste 1991; " Diário Gallery", Budapeste 1992; "O Holocausto como cultura"; "Eu - Outro"; "Momentos de silêncio"; "A linguagem exilada".