'Sou Modigliani, judeu'. É assim que o pintor italiano se apresentava. Orgulhava-se de sua herança cultural e, apesar de não ser praticante, jamais negou a identidade judaica. tornou-se símbolo de pintor boêmio criando-se, após sua morte um verdadeiro mito em torno de sua vida, trágica e curta.
A história de vida do artista se sobrepôs a seu trabalho, afastando-o de idéias e tradições culturais que poderiam revelar muitos significados. A força do mito é responsável pelo fato de que um dos primeiros e mais conhecidos artistas modernistas, autor de mais de 500 obras de arte, tenha sido também um dos menos compreendidos.
Foi para desvendar esse mito e mostrar ao mundo outra faceta do grande artista que o Museu Judaico de Nova York decidiu realizar a primeira grande retrospectiva do artista, na cidade, nos últimos 50 anos. Até setembro próximo, estarão expostos cerca de cem trabalhos de Modigliani. O que se pretende é desvincular as obras do mito de artista boêmio, que viveu sob o efeito da pobreza e de uma saúde cronicamente frágil. Ao mesmo tempo, passar a analisá-las tendo em mente o fato de Modigliani ser um judeu italiano sefaradita, que viveu em Paris no início do século XX, e considerar em que medida sua herança cultural teria influenciado sua arte e o anti-semitismo - da Paris pós-Caso Dreyfus - teria impactado sua arte e sua atitude.
Um livro sobre a retrospectiva, "Modigliani beyond the Myth", editado por Mason Klein, famoso historiador de arte e curador do Museu Judaico de Nova York, responsável pela mostra, explora com mais detalhes a vida e obra do grande pintor.
Assim começou
Nascido em Livorno, em 1884, Amedeo Modigliani (cujo nome significa "amado por D'us") é o quarto filho do italiano Flaminio Modigliani e da francesa Eugénie Gársin. Nasceu justamente no momento em que seu pai enfrentava graves problemas financeiros e decretava falência. Depois de perderem toda a fortuna, os pais do pintor abriram um pequeno negócio e a família foi obrigada a recomeçar a vida em nível bem mais modesto.
Na metade do século XIX, Livorno era considerada um paraíso político e religioso. Amedeo passou a maior parte de sua infância sob a orientação da mãe e da família desta. Eugénie descendia de judeus sefaraditas de Marselha e, criada em um lar liberal, era muito culta, dominando fluentemente o inglês e o francês. Sentia uma ternura toda especial por esse filho e, a partir de 1886, começou a escrever um diário que, de fato, é uma das poucas fontes de informações confiáveis sobre a infância do artista. Neste, se perguntava: "Será ele um artista?" Em suas páginas conta parte do dia-a-dia de Amedeo - cujo apelido era Dedo. Era o avô Isaac quem tomava conta dele. Intelectualizado, apaixonado por história e filosofia além de exímio jogador de xadrez, o avô levou Dedo em suas primeiras visitas a museus. Foi quando entrou em contato com as obras dos grandes artistas.
Amedeo tinha apenas dez anos quando o avô faleceu, em 1894. Abalado por essa perda, o menino fechou-se em si mesmo, adoecendo algum tempo depois e não sendo aprovado nos exames escolares. Preocupada e esperando que a arte conseguisse tirá-lo da apatia em que se encontrava, sua mãe permite que ele tenha aulas de desenho. No liceu onde estudava, os professores percebiam sua forte inclinação para essa área.
Um ano após seu bar mitzvá, em 1898, Amedeo novamente adoece e os médicos diagnosticam febre tifóide. Por causa da saúde frágil, passou grande parte da infância e adolescência em casa e, sem poder fazer grandes esforços físicos, dedica-se à leitura.
Quando se curou, teve permissão para abandonar a escola e freqüentar diariamente um ateliê. Era o ano de 1899. Mas adoeceu novamente, no ano seguinte, e os médicos descobriram que sua doença era mais grave do que supunham - aos 16 anos foi diagnosticado como tuberculoso. Para tentar combater o mal, sua mãe organizou uma viagem para regiões mais quentes, no sul da Itália. O roteiro incluiu visitas a museus e galerias de artes, que despertaram a imaginação e sensibilidade do jovem, fortalecendo o desejo que já manifestara de sair de Livorno para se aprimorar nesse campo.
Assim, com o apoio financeiro do tio materno, em 1901 Modigliani mudou-se para Florença, onde se matricula na Escola de Belas Artes. Lá decide dedicar-se à escultura, mas esculpir o mármore era uma arte que exigia muito esforço físico, principalmente para alguém com problemas de saúde, como ele. Em 1903, Modigliani mudou-se para Veneza, onde continua os estudos no Instituto de Belas Artes local. Mas ao invés de se dedicar a aperfeiçoar sua arte, passava o tempo em bares e festas. Começava a boemia.
Aos 22 anos, decide morar em Paris, então centro da vanguarda artística. Acreditava que somente na França seria capaz de desenvolver uma linguagem artística própria e realizar suas ambições. Seu primeiro lar foi o Hotel Madeleine e sua primeira escola, a Academia Colarossi, famosa por seus ex-alunos, entre os quais Paul Gauguin e Auguste Rodin. Era um jovem bonito, de estatura pouco abaixo da média, que usava todos os dias o mesmo paletó de veludo cotelê. De personalidade volátil, vivia no bairro de Montmartre às custas da mesada que o tio regularmente enviava. Era o mesmo ambiente freqüentado por Picasso, Guillaume, Apolinaire, André Derain e Diego Rivera. Tornou-se amigo de artistas e intelectuais judeus, passando a fazer parte do famoso Círculo de Montparnasse, o grupo de artistas judeus que emigrou para Paris antes da Primeira Guerra Mundial.
A vida na "Cidade-Luz" foi um período de buscas, principalmente por um estilo e tipo de arte definido. No Bâteau-Lavoir, centro do Cubismo, ele se encontrava com os pintores Picasso e André Derain, o carismático poeta e pintor Max Jacob, o escritor André Salmón e outros. Sentia estar no lugar certo. Desistindo da escultura, dedicou-se de corpo e alma à pintura, escolhendo como tema crianças e mulheres. Em tudo o que pinta ou desenha, entre 1906 e 1909, Modigliani continuava em busca de um estilo próprio, que combinasse o antigo e o novo. Apenas o tema permanece idêntico ao longo de toda a sua obra: a figura humana. É desta época a obra "A judia", que mostra a influência de Cézanne e dos expressionistas. Começou a beber, prejudicando a saúde, já tão debilitada pela tuberculose. Nesse período conheceu Paul Alexandre, médico apreciador de arte, que o incentivou e apoiou nos sete anos seguintes, comprando muitas de suas obras.
Em 1910, Modigliani expôs seis trabalhos no 26º Salão de Artistas Independentes, dos quais quatro são postos à venda: "O violoncelista", "Lunaire" e dois estudos para o retrato da amiga Bice Boralevi. Nenhuma obra foi vendida; as galerias de arte geralmente consideravam seus trabalhos muito individuais e difíceis de serem comercializados. Começa, então, uma das fases mais frustrantes e improdutivas da vida do artista. Mas apesar de todas as dificuldades, Modigliani jamais deixou de acreditar em si mesmo e em seu talento. Em 1912, expõe sete esculturas no Salão de Outono. No inverno desse ano adoece gravemente, ficando internado por um tempo. Em abril seguinte retorna a Livorno para um período de convalescença.
Alguns meses depois volta à França, aparentemente recuperado, atirando-se novamente à vida desregrada. Ainda freqüentava seu círculo de amigos de Montparnasse, entre os quais, o escultor russo Ossip Zadkine, Moise Kisling, judeu polonês que se tornara muito próximo do artista, e o pintor Chaim Soutine, judeu russo por quem nutria afeto paternal. Soutine foi um dos primeiros a apreciar o seu talento. Em 1914, o amigo e artista Max Jacob intermedia um encontro entre Modigliani e o marchand Paul Guillaume, intelectual que iniciava suas atividades no mundo das artes. Impressionado com os desenhos de Modigliani, ele compra algumas pinturas e passa a promover seus trabalhos.
No verão de 1914, eclode a Primeira Guerra Mundial na Europa. Em agosto, Paris é bombardeada e ele se muda para Montparnasse. Sua saúde continua piorando e, mais uma vez, é ajudado por amigos. Quando se restabelece, em 1916, volta a pintar, pressionado por Paul Guillaume. Nessa mesma época foi apresentado a Leopold Zborowski que, além de amigo, tornou-se também seu patrono e marchand. Foi um ano muito produtivo no qual fez muitos retratos, recebendo um salário semanal. Foi também nesse período que conheceu Jeanne Hébuterne, a mulher com quem viveria até morrer. Sua arte torna-se mais clara e tranqüila, aparentemente como resultado da presença de Jeanne em sua vida. Seu trabalho começa a ser notado e o crítico Francis Carco compra-lhe alguns quadros, seguindo de perto sua carreira.
Em março de 1918, Paris é novamente bombardeada e o mercado de arte entra em colapso. Juntamente com Zborowski e Jeanne, Modigliani parte para uma vila na Côte D'Azur, onde o clima é mais adequado à sua saúde. Em novembro do mesmo ano, o casal tem uma filha. A partir de 1919, assume seriamente o papel de pai e artista, entregando-se de corpo e alma ao trabalho, mandando quatro trabalhos por mês a Zborowski. São desse período as únicas quatro paisagens de toda a sua obra, como também um retrato de crianças da cidade e o de Jeanne.
Em maio de 1919, Modigliani retorna a Paris. Alguns meses mais tarde, Zborowski o inclui em uma mostra na Mansard Gallery, em Londres, da qual participavam também Picasso, Matisse, Derain, Soutine, Kisling e outros. A exposição é um sucesso e suas obras, elogiadas pela crítica local, são vendidas a bons preços. Mas, no inverno, sua saúde piora. Bem doente, permite apenas que Jeanne cuide dele, recusando-se a ser internado.
Em 22 de janeiro de 1920 é levado inconsciente para o Hospital da Caridade, morrendo no dia 24 de meningite tubercular. Jeanne, grávida de nove meses, retorna à casa de seus pais no mesmo dia e, no meio da noite, atira-se do quinto andar do prédio, não agüentando a dor da perda. O italiano Modigliani construiu sua reputação internacional na França. Sua arte foi praticamente desconhecida, durante sua breve vida, na terra onde nasceu. Somente após sua morte, Modigliani foi reconhecido como "filho da terra", através de duas retrospectivas na Bienal de Veneza - a primeira em 1922, poucos meses depois que Mussolini assumiu o poder; e a segunda em 1930, no auge da ditadura e da popularidade do "Duce". Por ironia do destino, Modigliani, judeu, liberal, conhecido por sua visão cosmopolita e internacional e que acreditava no ideal socialista de que todos os homens são iguais, acabou sendo usado como símbolo da Itália fascista.
Além do mito
Conhecido por ser boêmio e levar uma vida dissoluta, Modigliani fazia parte dos chamados "Artistas Malditos" da capital francesa. Recusava-se a definir um estilo para sua arte, buscando uma forma ideal que mesclasse classicismo, expressionismo e modernismo. Seu traço era sublinhado, constantemente visível, e organizava a superfície de suas telas em ritmo de grandes curvas melodiosas. Segundo seus contemporâneos, buscava uma impossível reconciliação entre tradição e audácia. É possível dizer que a vida breve de Modigliani foi uma sucessão de misérias e tristezas, fracassos e doenças. Mas, apesar disso, não se encontra em seus retratos nada de "doentio" ou deprimente.
No final de 1919, poucos meses antes de morrer, aos 35 anos, pintou seu auto-retrato, um óleo sobre tela que pode ser visto no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Na obra, ele se retrata com a paleta e um pincel na mão, como que se recusando a sucumbir às suas próprias condições. Segundo Manson Klein, esse auto-retrato coloca em xeque a imagem do artista apenas como boêmio, amargurado e fracassado. O artista se referia a si mesmo como "un juif du patriciat", um judeu nobre. Nesse romântico, mas incisivo auto-retrato, ele se revela como um indivíduo que reconcilia sua saúde debilitada com a dignidade e o intelectualismo aristocrático com a compaixão. E é dessa forma que se auto-retrata, como alguém que apesar de tudo se mantém elegante e nobre, imbuído pela vocação de dignificar a condição humana.
Sua carreira será toda uma longa reflexão sobre o rosto de homens e mulheres. Segundo Klein, por trás da opção pela arte dos retratos estava sua crença de que todas as pessoas eram iguais, independente de seu status. Modigliani as pintava com traços semelhantes: olhos e faces amendoados e pescoços longilíneos. Sua arte de retratos revela o equilíbrio entre a linguagem universal das formas geométricas e as características pessoais, emocionais e políticas do indivíduo.
Dois mundos estavam sempre presentes em Modigliani: a Itália e o judaísmo. Ele confronta o tema da identidade e do individualismo considerando a sua condição de judeu sefaradita italiano. Mais do que enraizadas em conceitos da história da arte, sua expressão artística e sua obra se originam de diversas fontes sócio-culturais. De um lado, o ideal igualitário socialista e o suposto fim das diferenças raciais, durante o Risorgimento italiano e do período da reunificação da Itália (1848 a 1870), quando em toda a Itália os judeus foram legal e civilmente emancipados. Do outro, sua rica herança sefaradita, sua compreensão do indelével caráter do judaísmo, independentemente de qualquer tipo de assimilação ou aculturação.
Aportando em Paris em 1906, mais como jovem e filosófico idealista e menos como judeu praticante, Modigliani confrontou-se com uma sociedade menos pluralista e tolerante, do ponto de vista religioso e cultural, do que de Livorno. Entre os imigrantes de Paris, muitos dos quais judeus, seu cosmopolitanismo personificava a diversidade cultural própria do famoso grupo de artistas de Montparnasse, do qual fazia parte. Porém, suas raízes diferiam profundamente das de seus colegas, principalmente os oriundos da Europa oriental. E ele introduz nesse meio não apenas o judaísmo sefaradita, mas também a cultura latina.
A comunidade judaica que moldara a personalidade de Modigliani diferia das demais espalhadas pela Europa, que na maior parte dos casos, mesmo no século XIX, permaneciam isoladas e oprimidas. Além dos judeus da Itália terem sido emancipados e gozarem de igualdades civis, foi na Livorno do século XIX que a história da intelectualidade sefaradita italiana atingiu seu ápice. Além do mais, a identidade singular de Modigliani é decorrente da habilidade do judeu italiano de aceitar a diversidade justamente em função do pluralismo cultural que existia no país.
É fácil perceber por que em Paris, enquanto Modigliani era identificado primeiro como italiano ou apenas como europeu ocidental, graças à sua fluência em francês, e só depois como judeu, artistas como Marc Chagall e Chaim Soutine eram identificados como judeus - e não como russos ou lituanos. A arte de Modigliani não pode ser entendida totalmente sem considerarmos as maneiras complexas pelas quais reagiu à nova realidade e à xenofobia e hegemonia cultural que encontrou em Paris.
Foi na França pós-Dreyfus que ele, pela primeira vez, sentiu na pele o anti-semitismo. De fato, antes de viver no enclave artístico de Montparnasse nunca imaginaria ter que reafirmar sua identidade judaica. O anti-semitismo, de certa maneira um choque para o artista, influenciou não somente a forma como interagia com os outros, mas também sua arte. Este fato motivou, em grande parte, sua maneira singular de se apresentar como "Modigliani, judeu".
Durante a vida na França, sempre criticou a maioria dos artistas judeus que optava por se assimilar, por dissimular sua verdadeira identidade, abraçando totalmente a liberdade trazida pela emancipação européia. Para ele, esta característica era resultado da falta de identidade judaica de muitos artistas que viviam na capital francesa antes da Primeira Guerra Mundial.Ao invés de se assimilar, Modigliani assumiu totalmente o judaísmo, investindo-se da posição ideológica de "pária". Quanto mais percebia que o tema "raça" se tornava importante, mais focado e simbólico se tornava seu método de trabalho.
Ao invés de ampliar suas manifestações artísticas, restringiu-se cada vez mais aos retratos, que compõem a vasta maioria de suas obras. A auto-identificação era extremamente importante para ele, que optara por ser "o outro", que preferia não ser entendido a ser percebido como burguês assimilado. Declarava sua identidade ao cumprimentar estranhos dizendo, "Sou Modigliani, judeu". Seu marco de diferença era o judaísmo.
A manifestação da identidade judaica em sua obra é abstrata, filosófica e ocidental, bem diferente, por exemplo, da maneira como aparece nas obras de Chagall, que utiliza símbolos e ícones do folclore russo. Apesar de ambos abordarem em suas obras temas como migração e mudanças, enquanto Chagall sintetiza o modernismo e o misticismo chassídico, Modigliani retrata a perda, o deslocamento e a falta de uma referência cultural específica. De certa maneira, Chagall fez parte de um esforço coletivo para desenvolver um estilo "nacional judaico" nas artes, baseado principalmente na necessidade de compensação pela desintegração da tradicional comunidade judaica. Modigliani, pelo contrário, estava determinado a permanecer independente. Para ele, a expressão artística, cultural e espiritual não podia ser determinada por nenhum tipo de dogma externo. Emergia do mais íntimo do ser.
Conclusão
Ao analisar quem foi Modigliani, o que representa sua arte, qual a sua mensagem, deve-se ir além do mito e aprofundar-se no pano-de-fundo histórico-religioso, assim como nos acontecimentos de sua curta e sofrida vida. Sua arte foi um reflexo daquilo em que acreditava e vivenciava. Seu universalismo estava sempre aliado a um respeito profundo pelo indivíduo, os traços semelhantes de seus retratos estão sempre aliados a características pessoais de cada indivíduo. A Itália e o judaísmo foram, para ele, dois grandes marcos. Suas raízes judaicas e a cultura que havia absorvido na infância, em Livorno, estavam presentes em sua vida e arte.
E ao refletir sobre o tema "raça", assunto crucial em Paris e na Europa da época - seu trabalho se tornava cada vez mais simbólico. Seus retratos, cada vez mais geométricos, estilizados. A crescente estilização de sua arte refletia a saudade que sentia de sua terra natal, a Itália, além de uma sensação de exílio. Este sentimento cresceu durante os anos de guerra. Declarava-se universalista, mas, para o pintor, ser judeu tornara-se essencial: fazia toda a diferença.
Bibliografia:
· Klein, Mason - "Modigliani Beyond the Myth", Museu Judaico de N. York, Yale University Press