Quando se pensa em literatura brasileira, nomes como Machado de Assis, Castro Alves, José de Alencar, Mario de Andrade e mais contemporâneos como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Vinícius de Morais, Moacyr Scliar e tantos outros, imediatamente nos surgem na memória. Todos indiscutivelmente grandes em sua arte, mas nem todos foram honrados com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Não é à toa que os membros da ABL são conhecidos como “Imortais”. Scliar é um deles.
Entusiasma a oportunidade de poder escrever sobre um conterrâneo admirável, que, através de suas crônicas e livros, influenciou toda uma geração de escritores e continua influenciando até hoje.
Embora tenha nascido na capital gaúcha, a tradição judaica russa permaneceu viva em sua casa, mas, como seria de se esperar, o chá do Samovar, depois de algum tempo, começou a dividir o espaço com o chimarrão, assim como as lembranças que seus pais tinham do shtetl, na Rússia, começaram a ceder ou compartilhar o espaço com lembranças já adquiridas aqui, passando a dar espaço para o escritor que, com olhar multicultural, escrevia sobre temas brasileiros e judaicos com a mesma desenvoltura.
Um admirável porto-alegrense que, sem perder o sabor de suas raízes mais profundas, conseguiu escrever sobre nosso povo e nossa gente, como o fez em seus livros O Exército de Um Homem Só, O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes e O Centauro no Jardim, sendo o último sobre o tema de suas raízes judaicas.
Escreveu com tal propriedade sobre os dois povos, suas alegrias e suas mazelas, que foi merecedor de se tornar o sétimo escritor a ocupar a cadeira de número 31 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo o mineiro Geraldo França. Tornou-se um “Imortal” (maneira com que nos referimos aos membros da Academia), mas talvez não seja esse um adjetivo que se acomode ao inquieto Scliar. “Saudoso” talvez defina melhor o sentimento que a ausência dele nos causa.
No entanto, que dizer sobre ele que de alguma forma ainda não tenha sido dito? Nas duas atividades que escolheu exercer durante a vida (medicina e literatura), foi mestre e faltam adjetivos para fazer justiça à dedicação com que se entregou a ambas.
Na medicina formou-se médico sanitarista e fez pós-graduação em Israel. Foi Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública e professor do curso de Medicina e Comunidade da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Na literatura teve publicados mais de 70 livros traduzidos para 12 idiomas.
Entre as obras traduzidas está O Centauro no Jardim, livro que foi considerado pelo National Yiddish Book Center, nos Estados Unidos, um dos 100 melhores livros de temática judaica nos últimos 200 anos.
No Brasil fez jus a três Prêmios Jabuti, em 1988, 1993 e 2009. Nesse mesmo ano (2009) recebeu os prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Casa das Américas. Pensei, então, em apresentá-lo aos que, por desventura, não conheçam sua obra literária, usando suas próprias palavras: “Há um momento na vida de quem escreve em que os livros começam a correr atrás dos autores”. Esta frase foi dita por ele em um contexto muito diferente do qual a estou emprestando nesse artigo. Se levarmos em conta uma declaração de Judith Scliar (sua mulher) — “Moacyr escrevia muito, e escrevia rápido”.
Originais e recordações que cobrem o período de 1937 a 2011 poderão brevemente ser consultados pela internet. Mais de 8.600 páginas de manuscritos e datiloscritos do escritor que estão sob os cuidados da PUCRS, para serem adicionados ao arquivo. Na coleção de documentos que estão sendo digitalizados encontram-se bilhetes de aeroporto, recibos de postos de gasolina, folhas pautadas e blocos de nota. Qualquer papel servia como suporte para grafar o que vinha da imaginação do autor.
Esses documentos de seu dia a dia nos dão uma visão de um cérebro em constante ebulição e explicam a voracidade com que escrevia. Eram tantas histórias a serem contadas e tão pouco tempo para fazê-lo. Daí minha interpretação pessoal do texto sobre a história procurar o autor, que, no caso original, fora usada referindo-se a escritores que nos encontros de literatura o procuravam para presentear seus novos livros. Moacyr era um para-raios atingido constantemente por descargas de ideias e histórias. Era necessário escrevê-las antes que se perdessem entre tantas outras.
Minha intenção com este artigo é mostrar o homem por trás das letras, mas, até para isso, Scliar foi especial, pois podemos desvendá-lo em suas próprias palavras. De seu conto “Ai, Rússia, Rússia. Ai, Rússia”, tomo a liberdade de transcrever um trecho que seria impossível ter sido posto no papel, não fosse a veneração pela palavra escrita que condiciona os rumos do judaísmo.
Como não viveu os acontecimentos narrados, eles devem ter-lhe chegado ao conhecimento através de histórias contadas em casa e livros que ajudaram a manter vivas as tradições:
“Para nós, ocidentais, o russo é um idioma difícil; poucas são as palavras que nesta língua conhecemos. Mas há um termo – ai, Rússia! – que foi incorporado ao vocabulário universal. Pogrom: a palavra evoca cossacos bêbados, enlouquecidos, invadindo aldeias, nos seus cavalos – e matando, violando, queimando, destruindo. Balta, 1882; Restov, 1883; Ekaterinoslav, 1883; Gomel, 1903…”. As terríveis notícias que nos chegam da Rússia, a espada suspensa sobre a cabeça de nosso povo…”, escreveu, em 1906, aquele que viria a ser o primeiro presidente de Israel, Chaim Weizmann. A espada suspensa sobre a cabeça do povo, que espada era essa? Não só a do bandido, era, também, a espada de czar: pois, para descarregar a crescente revolta popular, o governo não apenas tolerava os pogroms, como até os fomentava.
“Numa clara manhã de abril do ano de 19…quando a estepe começara a reverdecer a entrada alegre da primavera, apareceram espalhados em Zagradowka, pequena e risonha aldeia russa, da província de Kersan, lindíssimos prospectos, com ilustrações coloridas, descrevendo a excelência do clima, a fertilidade da terra, a riqueza e a variedade da fauna, a beleza e exuberância da flora, dum vasto e longínquo país da América, denominado Brasil, onde uma empresa colonizadora israelita, intitulada “Jewish Colonization Association”, mais conhecida por JCA, proprietária duma grande área de terras duma fazenda chamada “Quatro Irmãos”, situada no município de Boa Vista do Erechim, Estado do Rio Grande do Sul, oferecia colônias, mediante vantajosas propostas, a quem se quisesse tornar lavrador.
Papai tinha pouca instrução; contudo, não duvidou do que diziam os anúncios.
Possuía uma crença ilimitada na boa fé dos homens. Daí porque leu e releu, com crescente interesse, os folhetos de propaganda. E acabou entusiasmando-se vivamente com a descrição da nova terra. Sobretudo, com a ilustração colorida da capa.
A capa dos prospectos ostentava uma singela paisagem da vida rural brasileira. Sob um céu límpido e distante, dum azul muito doce, um lavrador, chapéu de abas 12 largas, camisa branca arremangada, empunhava, encurvado, as rabiças dum arado, puxado por uma junta de bois, revolvendo a terra virgem. Um pouco mais longe, no fundo, o ouro vegetal de extensos trigais maduros. Mais além, azulados pela distância, coqueiros, palmeiras e florestas misteriosas, e, no primeiro plano, destacando-se em cores vivas e fortes, um enorme pomar em que predominavam laranjeiras, a cuja sombra, porcos comiam lindas laranjas caídas no chão”.
À eficiência dessa peça de propaganda que caiu na mão de algumas pessoas na Rússia, a literatura brasileira deve a existência de um de seus maiores representantes. Essa é uma curiosidade que descobri quando de minhas pesquisas para esse texto, que achei não faria mal compartilhar com os leitores. Minha família é de Boa Vista do Erechim (que na língua dos índios Caingangue da região significa campo pequeno porque ficava na cordilheira da Serra Geral num espaço cercado de árvores). Talvez alguém que desconheço de meu passado tenha visto o mesmo folheto e vindo para Quatro Irmãos, na época uma próspera comunidade judaica quase bairro de Erechim, e, posteriormente, se estabelecido na cidade, na qual vivem até os dias de hoje. Os Scliar se estabeleceram em Porto Alegre, capital do estado daquela cidade onde os porcos comiam laranjas caídas do pé.
Em outra passagem do mesmo conto, ainda falando sobre a Rússia e os judeus, mostra a intimidade que tinha com o tema e com as letras para poder escrevê-lo com segurança, mesmo tendo nascido na capital gaúcha em um bairro de classe média onde a maior parte da comunidade judaica da cidade fora residir: o Bomfim.
“Uma luta que, diga-se de passagem, não envolveu violência. Não por parte dos judeus. Protesto, sim; mas não violência. A nostalgia do shtetl pesa, não é mesmo? E o resultado é uma forma de resistência à qual não falta o sentimento, e até mesmo o humor. O humor que satiriza um governo que não resolveu os problemas de seu povo, mas dá-se ao luxo de ser antissemita; como naquela história que conta da longa fila formada à porta de um supermercado, à espera da carne. Aparece o gerente e diz: ‘A carne vem vindo, mas não será suficiente para todos, de modo que os judeus podem ir embora’. Os judeus se vão. Meia hora depois, volta o gerente anunciando que a carne está chegando, mas não haverá para todos, de modo que os que não são membros do Partido podem se retirar. Vai-se um grande grupo. Finalmente, depois de meia hora, o gerente aparece, confessa que não há carne alguma e que os camaradas também podem ir. Ao que diz um membro do Partido a outro: ‘Você viu? Viu como os judeus têm privilégios?’
Este humor chegou a criar um personagem típico: Abram Rabinovich, sempre às voltas com o serviço secreto soviético. Que o encontra nos lugares mais imprevistos: por exemplo, no parque, onde ele está estudando hebraico num manual de bolso. O agente lhe diz que tal é proibido, porque faz supor que a pessoa quer ir para Israel. Eu não quero ir para Israel, diz Rabinovich, estou-me preparando para ir para o céu, onde, como é sabido, só se fala hebraico. E se você for para o inferno, pergunta o agente. “Aí não tem problema, replica Rabinovich, porque russo eu já sei”.
Herdeiro desse humor judaico que até hoje faz sucesso em Hollywood e
na TV, é dele a seguinte frase maravilhosamente iconoclasta: “Eu sou aquele cujo verdadeiro nome não pode ser pronunciado. Admito, contudo, ser chamado de Jeová”.
Em seu livro A Face Oculta, o humor vem envolto em seus conhecimentos médicos:“Esquecimento é quando a gente não sabe onde deixou a chave do carro. Alzheimer é quando a gente encontra a chave, mas não sabe para que serve”.
Certa ocasião, em Porto Alegre, em uma reunião de pais e mestres, foi interrogado durante uma palestra para a qual fora convidado por um dos participantes, se seu filho, na época com dois anos, viria a frequentar a mesma escola judaica que ele frequentara, respondeu:
“Eu gostaria que o meu filho tivesse acesso à cultura judaica, tanto por ela ser judaica como por ser cultura. Gostaria que ele tivesse o mesmo prazer e a emoção que eu sinto ao ler os contos de Scholem Aleichem, Mendele e Peretz; as histórias de Isaac Babel e Michael Gold; os livros de Bellow, Malamud, Bashevis Singer e Philip Roth. Gostaria que ele ficasse extasiado diante dos quadros de Chagall, que gostasse de música iídiche, das canções hebraicas, da dança de Israel. Gostaria, modestamente, que ele lesse o que eu escrevi e que sentisse o judaísmo nos meus próprios livros: gostaria disto, como pai e como judeu. Gostaria que o meu filho tivesse bagagem intelectual sem ser pedante; que compreendesse que literatura, música e pintura devem tornar as pessoas melhores – não superiores – que sentir é tão importante como saber. Gostaria que ele aprendesse a chorar como só os judeus sabem chorar, e a rir como nós: aquele nosso meio sorriso, meio amargo, meio filosófico.
Gostaria que o meu filho não fosse um sectário: que não colocasse, em polos irremediavelmente opostos, judeus e árabes, israelitas e palestinos. Que soubesse que neste mundo há lugar para todos, é só uma questão de ajuste. Que soubesse que, de cada vez que há uma guerra, alguém lucra com isso.
Não sei se é pedir demais em troca da mensalidade escolar. Mas, afinal, a educação tem uma componente de sonho enxertado na dura realidade quotidiana. E sonhar não é proibido”.
No lugar de me limitar a tecer loas a Moacyr Scliar, optei por deixar que o leitor o conhecesse através de pequenos trechos de milhares que poderia haver selecionado de sua própria obra e, assim, despertar a curiosidade sobre o resto. Além dos óbvios livros, de suas crônicas, contos, peças teatrais e adaptações para o cinema, tanto de longa quanto de curta metragem.
Como diria um gaúcho verdadeiro: agora que puxei bastante brasa pro meu assado, não custa nada cuidar do assado dos outros.
Seria injusto não mencionar aqui outros judeus que influenciaram a nossa literatura de modo definitivo como:
Arnaldo Niskier, titular da cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras (a qual presidiu), com vasta obra dedicada à educação, ensaios históricos, literatura infanto-juvenil e obras didáticas. Seria um crime deixar de citar aqui uma parte de um ensaio seu que demonstra essa simbiose que sempre existiu entre escritores judeus e os grandes da literatura de nosso País.
Em Machado de Assis e os judeus, afirma, com orgulho: “Quem se debruça sobre a Torá, onde se concentra a doutrina judaica, adquire conhecimentos que representam verdadeiras pérolas de sabedoria”. Niskier é outro escritor que nunca esqueceu suas raízes judaicas e, através de sua obra, difundiu suas tradições e estreitou laços culturais entre o Brasil e Israel.
Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, naturalizada brasileira. Nome do mais alto respeito na literatura brasileira e mundial que inspirou muitas jovens de nosso País a se dedicarem à literatura. Chegou ao Brasil com um ano e dois meses para se tornar romancista, escritora, contista, colunista, cronista e jornalista. Amiga de nomes como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Rubem Braga, Santiago Dantas e Samuel Wainer, acabou conhecida como “a grande bruxa da literatura brasileira” por seu costume de se vestir de preto. Referindo-se a ela e à importância de sua obra para a literatura brasileira, seu amigo Otto Lara Resende disse em tom de elogio: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria”.
Teve nove romances publicados, entre eles, A Hora da Estrela, que narra a história de uma moça cheia de esperanças, recém-chegada ao Rio de Janeiro, vinda do Nordeste (como ela própria, que veio do Recife). Depois de a personagem perder o namorada para uma amiga, filha de um açougueiro, que aos olhos do moço poderia lhe dar uma oportunidade de ascensão social, na sequência, Macabéa (esse era o nome da personagem principal) descobre estar com tuberculose (na época, uma quase sentença de morte)e procura uma cartomante para lhe ler a sorte.
Tal cartomante lhe assegura um futuro feliz, que viria através de um estrangeiro loiro que ela encontraria ao sair de sua casa. Homem com quem casaria.
Não seria um romance de Clarice Lispector se assim acontecesse. Na verdade, a pobre Macabéa, ao sair da cartomante, é atropelada por uma Mercedes amarela guiada por um homem loiro, e cai morta no asfalto.
Puro Clarice.
Dizia-se brasileira. De acordo com suas próprias palavras e referindo-se à sua terra Natal (Ucrânia): “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”. Não podemos esquecer também de Elisa Lispector, irmã de Clarice, autora que garantiu seu lugar na literatura de nosso País com uma escrita intimista, que explorava mais as dúvidas existenciais de seus personagens, desnudando suas fraquezas e agruras. Seu primeiro romance foi Além da Fronteira, de 1945, e abriu as portas para uma série de outros livros recheados de lembranças de perseguições e fugas de um passado que se recusava (embora não inteiramente vivido ) a ser esquecido. O exílio é um tema recorrente em sua obra.
O Muro de Pedras, onde discorre sobre o existêncialismo é seu livro mais conhecido e louvado pela crítica. Foi merecedora dos prêmios José Lins do Rego (1963) e Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras (1964).
Seus primeiros contos foram publicados apenas em 1970 com o livro Sangue no Sol; voltou em 1977 com Inventário e O Tigre de Bengala, em 1985. Sua última coletânea de contos ganhou o prêmio Pen Clube, em 1986. Morreu em 1989, no Rio de Janeiro, onde vivia.
Para finalizar, outro grande que também brotou para o mundo na distante Ucrânia: Pedro Bloch.
Ele se criou no Brasil, onde mais tarde se naturalizou. Aqui se formou médico foniatra para depois exercer o jornalismo, ser compositor, poeta, dramaturgo e, ainda, encontrar tempo nos intervalos para escrever mais de cem livros.
Da mesma forma que Scliar, são todos expoentes das letras deste País, e orgulho tanto para a comunidade judaica, como para homens e mulheres interessados em cultura na nossa terra. Pessoas que influenciaram mentes, enriqueceram nossa literatura e ajudaram a erigir com letras a história de nossa nação e de seus antepassados.
H. James Kutscka é publicitário, pintor e autor de inúmeros artigos e livros.
Meus agradecimentos à minha filha, a historiadora Kim Kutscka, pela revisão deste artigo.