O pintor transcende o momentâneo para dar a seus quadros um valor permanente e universal. Não são mais judeus massacrados, não são mais europeus à procura de um outro habitat. É a nossa humanidade, somos nós mesmos postos a nu na tela. (Roger Bastide)

Ao chegar ao Brasil, Lasar Segall, trazia na bagagem as memórias da sua infância vivida na Lituânia, no Leste europeu. Eram as memórias arraigadas na sua família e em milhares de famílias judias que, na sua diáspora milenar, habitavam os diversos países situados entre a Alemanha e a Rússia.

Essas memórias, dos shtetls e dos guetos, misturavam o mundo mágico da vida de criança na comunidade com as lembranças de séculos de perseguições, sofrimentos e discriminação racial. Os símbolos alegres, a música, a dança, as brincadeiras e os bichos, por um lado; por outro, o preconceito, a pobreza, as difíceis condições materiais e as perseguições raciais.

Muito embora o Brasil pouco tenha em comum com o ambiente do Leste europeu, lugar de origem de Segall, foi justamente através dessa bagagem, ligada ao mundo mágico da infância no judaísmo e dos sofrimentos decorrentes da vida judaica nessa região, que Segall pôde apropriar-se de maneira tão natural e competente dos temas caros à vida brasileira. As desigualdades de um país com um enorme contingente de cidadãos miseráveis, recém-saídos da escravidão, condensaram-se na pintura de Segall como se o gueto e o pogrom encontrassem no Brasil seus paralelos em essência, a favela e a escravidão - ou a memória da escravidão. A temática da escravidão, tão cara ao povo judeu, presente no imaginário religioso: Moisés e a fuga do Egito.

Por outro lado, foi também aquilo que há de universalista e cosmopolita na sua formação de judeu da diáspora o que possibilitou que ele rapidamente incorporasse em seu trabalho a temática do modernismo brasileiro, que buscava resgatar e recriar os símbolos nacionais. A esse respeito, escreve Gilberto Freyre: "De muitos pintores só nos fica a lembrança do regalo que seus quadros nos dão aos olhos. De Lasar Segall, não: ele se torna um companheiro de nossas pesquisas e, principalmente, de nossos silêncios. Ele enriquece de tal modo nosso contato com o mundo já visto que, às vezes, parece um contato novo. Ele nos acompanha sempre. Ele, propriamente, não: seus judeus, seus negros, seus bois, suas multidões de sofredores".

Mas a tarefa de unir os símbolos ancestrais da vida judaica ao repertório artístico do modernismo brasileiro, que eclodiu de forma definitiva na Semana de Arte Moderna de 1922, não teria sido possível sem um terceiro elemento. As desigualdades e sofrimentos que Segall retratou ao longo de sua vida encontraram seu meio de amplificação no expressionismo. A passagem de Segall pela Alemanha e sua ligação com a "Secessão de Dresden"1, movimento artístico expressionista do pós -1ª Guerra Mundial, influenciado pelo expressionismo do grupo Die Brücke, que fora reunido antes da Guerra, fez com que ele encontrasse no expressionismo alemão seu léxico de trabalho na pintura e na gravura. O manifesto de fundação da "Secessão de Dresden" dizia: "A fundação do grupo representa um ímpeto natural de re-acordar, um anseio íntimo de se afastar para sempre dos métodos antigos e, preservando a liberdade absoluta de personalidade, encontrar novas expressões para o mundo que nos rodeia".

Esses artistas alemães redescobriram a gravura como uma valiosa forma de expressão artística. E essa foi outra contribuição importante que Segall trouxe ao Brasil. Justamente no mesmo período em que o artista se instalou de maneira definitiva no País, no início dos anos de 1920, Oswaldo Goeldi, absorvendo à distância os ventos do expressionismo alemão, começou a trabalhar com a xilogravura. Juntos, Segall, Goeldi e Lívio Abramo remanescem como os grandes expoentes da Gravura Modernista do Brasil.

Segall nasceu em Vilna, capital da Lituânia, no ano de 1891, onde ficou até os 15 anos de idade. Em 1906 mudou-se para a Alemanha, Berlim e depois Dresden, onde sofreu forte influência do grupo Die Brücke. Em 1913 veio ao Brasil pela primeira vez; retornou no início da década de 1920, estabelecendo, então, sua residência definitiva no País. No fim da década de 1920 teve passagem importante pela cidade de Paris, mas logo retornou ao Brasil, sua pátria por afinidade. Sobre a escolha de Segall pela brasilidade, o pintor Guignard comentou certa vez, "Graças a D'us, esse homem é, pelo menos, naturalizado brasileiro!"

No périplo que percorre até se estabelecer definitivamente no Brasil, Lasar Segall traduz em sua obra as influências advindas das diversas experiências e contatos que tem com os novos mundos artísticos nesse caminho. Ao deixar a Lituânia, em 1906, a obra de Segall traduz ainda um excesso acadêmico, influência da Escola de Belas Artes de Vilna, muito escorado em seu desenho preciso das formas humanas. Diz Pietro Maria Bardi, "Ainda menino, Segall desenhava com segurança, tão logo segurava um lápis na mão: é surpreendente ver como passava por cima do exercício que se afigura necessário para conseguir manejar o instrumento gráfico, resolvendo as formas como se já tivessem nascido com ele. Em meio século de trabalho, o pintor mudou seu traço, mas nunca o espírito deste; despojado, essencial, seguro e que nunca transige".

A chegada a Berlim faz com que ele descubra a obra de Cézanne, as cores, a geometria das paisagens e das figuras; é marcante, também, o acréscimo significativo no seu repertório técnico no campo da pintura. Mas a descoberta do mestre francês não coloca Segall na linhagem direta do pós-impressionismo de Cézanne; sua mudança para Dresden faz com que ele tome contato com um movimento que estabelece uma linguagem - na pintura e na gravura - que se caracterizará como eminentemente alemã. A influência deste grupo, chamado de Die Brücke2, foi definitiva na obra de Segall. Nessa época ele opta pela gravura como maneira de expressão paralela à pintura, realiza dezenas de xilogravuras e litogravuras - muitas das quais rememoram temas de sua infância e símbolos do judaísmo. Na pintura surgem as cores mais escuras e fortes, as pinceladas demarcando a intensidade, sem que isso signifique excesso de matéria sobre a tela e, principalmente, uma liberdade na representação da forma humana.

Sobre sua mudança para Dresden, Lasar Segall diz: "Na procura dessa libertação definitiva, resolvi pelos fins de 1910 me transferir para Dresden. A aspiração de uma nova linguagem artística encontrava ali um solo fecundo e um clima favorável à sua realização".

O Homem é o tema central na obra de Segall. Mesmo que certas vezes ele abandone a representação do homem ao retratar uma floresta e um boi, ou apenas troncos de árvore, é a alma humana, suas idiossincrasias e seus sofrimentos que permeiam cada traço ou pincelada na obra.

Segall se instala no Brasil em dezembro de 1923, pouco mais de um ano após a Semana de Arte Moderna de 22. Recém-estabelecido, entra em contato com o grupo modernista brasileiro. O arquiteto Gregori Warchavchik converte-se em grande amigo de Lasar Segall. Logo em 1925 este último faz as pinturas murais do Pavilhão de Arte Moderna Olívia Guedes Penteado, em São Paulo, inserindo-se de vez no ambiente modernista brasileiro. Nesse primeiro período no Brasil suas pinturas revelarão uma constante preocupação social, especialmente com a questão negra: há muitos retratos de negros - chegando inclusive o próprio Segall a se retratar como negro. Ele absorve as cores mais vibrantes, características do movimento modernista brasileiro, adicionando um novo colorido à sua paleta.

Sobre o artista, Mário de Andrade diz: "Segall é realmente um dos mais interessantes modernistas que conheço. Trabalha indiferentemente pintura e gravura. Admirável técnica de gravador, principalmente na litografia e na água-forte. Mas, ainda o que mais atrai é o espírito. Para ele, o mundo exterior existe, mas converge para o interior do ser racional, onde se recria como um motivo de expressão. Sua obra é uma cristalização maravilhosa da vida. É vibrante. Clama. Geme, chora, ri".

Nesse período e, em toda a fase posterior de sua obra, a gravura será sempre o seu meio de expressão, fundamentalmente preocupado com a denúncia das desigualdades: o ápice dessa preocupação é o álbum Mangue, publicado em 1943, com textos de Jorge de Lima, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Segundo Fannina Halle,"Não é de admirar que Segall, padroeiro artístico de todos os oprimidos e humilhados, tenha acrescido também esse mundo aos temas de sua criação artística".3

Nos anos seguintes à chegada ao País, Segall irá cada vez mais reduzir a amplidão cromática de sua paleta, concentrando-se em um espectro repleto de tons ocres, marrons e verdes-musgo: nesse contexto será marcante em sua obra a observação da paisagem de Campos do Jordão, cidade incrustada na Serra da Mantiqueira. Nesse período ele realizará experiências com a mistura de areia à tinta óleo. As árvores, os animais, o clima temperado - Segall condensa todo o seu trajeto do Leste europeu ao Brasil e suas influências, encontrando em solo brasileiro uma paisagem que possa representar um Brasil de clima temperado.

Durante sua passagem por Paris, no final da década de 1920, Segall incorpora ao seu repertório o trabalho com a escultura, que ele continuará a desenvolver paralelamente à gravura e à pintura, até o final de sua vida.

Segall não perde seu vínculo com a Europa e a Alemanha, continuando antenado ao que se passa no Velho Continente. Em 1937 tem dez pinturas incluídas na mostra de "Arte Degenerada", organizada por Hitler na Alemanha como forma de ridicularizar a Arte Moderna - em especial o Expressionismo alemão. Dentre essas pinturas está a obra Eternos Caminhantes, resgatada após a Segunda Guerra por sua mulher, Dona Jenny Klabin. Segall casara-se com Jenny em 1925 - ela era de uma proeminente família de judeus residentes no Brasil -, e foi ela que, dez anos após a morte do pintor, fundou o Museu Lasar Segall.

Durante a 2ª Guerra Mundial, Segall pinta o épico A Guerra, que hoje está no Masp (Museu de Arte de São Paulo), retratando as barbáries da guerra. Pinta, também, outro quadro épico, o Campo de Concentração, em 1945. Essas duas grandes obras - em formato gigante - juntam-se a duas outras, chamadas O Navio de Imigrantes, que ele pintara entre 1939 e 1945, e Pogrom. Nessas obras está contida a essência da melancolia e da preocupação humana de Segall.

Por fim, em seus últimos trabalhos, Segall explora ainda mais a temática da floresta, que começara a trabalhar em Campos do Jordão. Nesse período, porém, abandona a figura humana ou os animais e se concentra apenas nos troncos das árvores e nas variações cromáticas desses troncos, do chão e da luz. Aqui Segall abandona quase que por completo a figuração, transformando os elementos da paisagem em algo predominantemente abstrato.

Lasar Segall falece em 1957, vítima do coração. Deixa uma obra marcada pela temática humana e pela preocupação com os menos favorecidos, não de modo panfletário ou político, mas através do sofrimento e da tristeza. A melancolia que marca sua obra traduz em português do Brasil o sofrimento dos povos desterrados, sejam estes judeus da diáspora ou negros Iorubá. Traduzem, também, em termos estéticos, o que havia de mais sofisticado na arte moderna do início do século 20 - incorporando ao Movimento Modernista brasileiro influências diretas do que havia de mais avançado no Modernismo europeu. Por fim, Segall remanesce, com o que há de mais significativo na arte, brasileiro - como quem, sem excessos, traduz a melancolia universal da alma humana no âmago do povo brasileiro.

Notas:

(1) Grupo de artistas formado por Conrad Felixmüller, Will Heckrott, Laser Segall, Otto Dix, Otto Schubert, Constantin von Mitschke-Collande e Hugo Zehder.

(2) Em alemão, A Ponte. Movimento fundado em 1905, em Dresden, por Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff. Contou também com a participação de Otto Mueller; foi encerrado em 1913.

(3) HALLE, Fannina W. "Bubü de Montparnasse". In: BARDI, P. M. Lasar Segall. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. p. 116

João Grinspum Ferraz - Mestrando em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (FFLCH - USP)