Kassel abrigou durante séculos uma ativa comunidade judaica. Desde a Idade Média até os tempos modernos, os judeus alemães observaram uma vida intensa norteada pela religiosidade na Sinagoga “Untere Köenigsstrasse”. Através das gravuras de Wilhelm Thielmann, produzidas entre 1896-1899 e cedidas pelo artista José de Quadros, estudamos a presença judaica nesta cidade. 

A chegada dos judeus à Kassel só aparece em documentos de 1293, porém a existência da Judegasse (rua dos judeus) consta em fontes de 1262. Durante a Peste Negra de 1348 os judeus sofreram grandes perseguições. Em 1398 Kassel possuía uma comunidade organizada e ativa, com sinagoga e cemitério. A “Rua dos Judeus” é mencionada em textos de 1455 e 1486. Sempre existiram restrições aos judeus que habitavam Kassel, mas, estas foram mais tolerantes que as doutrinas antijudaicas disseminadas por Martinho Lutero em 1517.

Durante a “Guerra dos Trinta Anos” (1618 - 1648), os judeus foram obrigados a abandonar Kassel. Porém, achamos exceções, como o nobre Benedito Goldschmidt, um “judeu da Corte” que, entre 1635 e 1647, recebeu privilégios reais para residir na cidade, com seus dois filhos. Ganhou regalias, chegando a usufruir os serviços de um rabino de Brettenhausen.

Os primeiros documentos hebraicos da comunidade judaica de Kassel datam de 1633. São traduções ao alemão de pinkassim ou atas e registros de decisões. Entre 1656-1772 o distrito judaico de Kassel pertencia ao Rabinato de Witzenhausen.

Em 1715 uma sinagoga foi construída em Kassel, sendo posteriormente ampliada. Nessa época, a comunidade contava com 200 judeus, aproximadamente. Em 1720,  o Memorbuch (Livro de Registros) começou a mencionar membros da kehilá e, em 1773, surgiria a Chevrá Kadishá para dar sepultura aos falecidos.

Entre 1807-1813, Kassel se torna a capital da Westfália.  Leis emancipatórias garantiram direitos aos judeus e também possibilitaram uma maior influência em outras áreas da sociedade. A liderança de Israel Jacobson, filantropo tido como “Pai do Movimento Reformista  do Judaísmo”, na Alemanha, trouxe para a comunidade de Kassel reformas religiosas e educacionais significativas.

Durante a primeira metade do século 19, já sob domínio prussiano, as leis emancipatórias regiam a vida da comunidade judaica. Em 1839, os judeus construíram uma sinagoga com capacidade para 1.000 pessoas.

SINAGOGA DA “UNTERE KÖENIGSSTRASSE”

A sinagoga de Kassel, localizada na parte inferior da Rua Real, foi obra do arquiteto Albrecht Rosengarten, primeiro judeu a exercer esta profissão na Alemanha.  Foi inaugurada em 8 de agosto de 1839. Nesta data o jornal local, “Kasselsche Allemeine Zeitung”,registrava o acontecimento da seguinte forma: “A fachada, com suas três entradas, e sua bonita variedade de janelas, dá uma impressão de imponência, assim como seus estilosos arcos redondos, que fazem com que seus ornamentos externos apresentem uma beleza despojada. Toda a edificação transmite, ao mesmo tempo, a mais completa calma e simplicidade. Cada elemento que compõe o prédio faz parte de uma estética e de um sentimento básico do belo”. Nas sextas-feiras à noite, a sinagoga ficava toda iluminada. Desde o púlpito, o chazan, recitava o kidush anunciando a chegada do Shabat. Dois jovens, atrás do chazan, recitavam o kadish em homenagem a um dos genitores falecidos. Ao finalizar a oração, os presentes degustavam um gole do vinho.

No final do século 19, o chazan de Kassel era Ludwig Horwitz, judeu originário de Vandsburg, antiga Prússia Oriental. Ele cursou o seminário de estudos judaicos em Hannover, sendo cantor litúrgico e professor em Dessau. Os temas de maior interesse em suas aulas eram: a “Emancipação dos Judeus na Alemanha” e a “História do Movimento da Reforma do Judaísmo”. Após sua saída de Dessau, em 1898, foi homenageado pela comunidade. 

Horwitz morou em Kassel atuando como funcionário da kehilá até sua aposentadoria. Lá fez pesquisas, escrevendo a obra Die Kasseler Synagoge und ihr Erbauer (A Sinagoga de Kassel e suas construções).

Como em outras sinagogas alemãs, a leitura da Torá no Shabat representava a parte central do culto matinal e vinha acompanhada de um sermão (drashá). O rabino, o chazan e o shamash vão até o Aron Hakodesh (Arca Sagrada), abrem suas portas e observam os numerosos rolos da Torá ali guardados. Na parte  superior da Arca, há uma frase extraída do Salmo 16, 8: “Saiba diante de quem tu estás presente”, uma síntese do comportamento de respeito e modéstia que deve nortear os presentes dentro da sinagoga. Diante da Arca, pendurada no teto da sinagoga, há uma lâmpada conhecida como Ner Tamid  (Chama Eterna); e na parte inferior da Arca há degraus que conduzem até a Bimá (púlpito), lugar do rabino e do chazan.

Mesmo que cinco judeus participem na abertura da Arca, o rabino é o responsável por retirar os rolos da Torá. Esta é toda envolvida num manto bordado e adornado com um escudo, uma coroa e um dedo indicador, todos de prata.  A Arca era fechada enquanto os fieis entoavam uma melodia festiva; a voz do chazan ia-se alternando com o coral comunitário. O próprio cantor acompanhava o rabino com a Torá até a Bimá, para dar início à leitura da porção semanal. O rabino-mor Isaac Prager, o chazan Konrad Kaminski e o shamash Levi Süssholz eram os três principais funcionários da sinagoga de Kassel no século 19.

LEITURA DA TORÁ  E DRASHÁ

Sobre o púlpito da sinagoga,  o chazan Kaminski segura o dedo indicador de prata (iad) e começa a leitura da Torá. À sua esquerda, com cartola, está o presidente da comunidade, a seu lado o shamash Levi Süssholz. Chama cada um dos membros da congregação para acompanhar a leitura, faz comentários e dá assistência ao chazan. Um deles se aproxima ao púlpito, honrado com a leitura da Torá. Ser chamado à Torá é uma das maiores honrarias que a sinagoga oferece.

Encerrada a leitura, os rolos da  Torá são elevados e exibidos ao público. Este momento é conhecido como hagbahá. A comunidade reverencia a elevação levantando-se de seus respectivos lugares e recitando a melodia: “Esta é a  Torá que Moisés entregou aos filhos de Israel”. Com esta saudação encerra-se a parte principal do serviço religioso de Shabat. Os rolos da Torá são devolvidos à Arca Sagrada. Alguns membros da comunidade de Kassel participantes desse serviço são: o conselheiro e comerciante Gustav Plaut (proprietário da Casa Bancária Mauer & Plaut, conhecida também como Banco de Dresden), o chazan Konrad Kaminski, o shamash Levi Süssholz e o Sr. Sigmund Mondschein.

O Dr. Isaac Prager atuou como rabino-mor de Kassel entre 1885 e 1905. Sua jurisdição era abrangente e totalizava 107 comunidades judaicas na província prussiana de Kurhessen. Ele era tido como exímio orador, ao ponto de vários não judeus fazerem parte do público que vinha ouvir suas prédicas. O Rabino Prager doou sua biblioteca, com ampla coleção sobre Judaísmo à Biblioteca Murhard, em Kassel.

Encerrado o sermão, o público iniciava a oração de mussaf, a prece que finaliza o serviço matinal. Os enlutados recitam o kadish em recordação dos entes queridos, o olhar dos jovens é de nostalgia e compaixão, ao passo que o dos idosos é de comoção. Durante onze meses esses jovens frequentarão a sinagoga para recitar o kadish rendendo tributo e gratidão a seus familiares queridos.

O kadish é uma prece em que se glorifica o Santo Nome de D’us, implorando para que Ele possa trazer a tão almejada paz universal. Afinal, aquele que louva a D’us, testemunha que seus pais o educaram para os mais elevados ideais éticos. Portanto, essa santificação do Nome Divino aumenta a felicidade dos falecidos.

Na hora do kadish estão presentes o comerciante Kaufmann Rosenthal, o Sr. Daniel Holzapfel, o mestre serralheiro Sally Grünthal (presidente do corpo de serralheiros de Kassel), um rapaz órfão desconhecido e um atacadista de papel de sobrenome Abt, nome registrado no censo dos judeus de Kassel em 1883.

ROSH HASHANÁ,  YOM KIPUR E SUCOT

Em Kassel, as festividades de Rosh Hashaná, Yom Kipur e Sucot eram realizadas em clima de solenidade e respeito. Vejamos a relação entre estas três comemorações judaicas. O destino de cada judeu para o ano que se inicia é decidido por D´us em Rosh Hashaná, revisto em Yom Kipur e finalmente selado em Hoshana Rabá, o sétimo dia de Sucot. SegundoNossos Sábios, em Hoshana Rabá se encerra o Julgamento Divino iniciado em Rosh Hashaná.

No entanto, os judeus de Kassel, como tantos outros judeus, se questionavam: Por que D’us escolheu três datas diferentes para realizar nosso julgamento? O principal mandamento de Rosh Hashaná é ouvir o shofar; em Yom Kipur, jejuar e se abster de prazeres mundanos; e em Hoshaná Rabá é costume ficar durante a noite toda estudando Torá e recitando Salmos.

Nos dias austeros – os dez dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur – os judeus de Kassel costumam vestir roupas especiais. Envoltos em seus xales de oração (talitot), elevam preces ao Todo Poderoso, dedicando parte do tempo a pensamentos de reflexão. Sabem ser impossível uma imediata inscrição no “Livro da Vida” em Rosh Hashaná.  Nenhum homem conhece como funciona a “contabilidade” Divina.

No mês de Elul, os judeus de Kassel analisam seus atos e erros. Nos “Dez Dias de Arrependimento”, refletem sobre suas fraquezas. Nesses dias de introspecção é essencial a observância das Leis Divinas, pois isto servirá como prova cabal de arrependimento dos erros pelos quais estamos sendo julgados. Ao esforçar-se em cumprir os Mandamentos Divinos, os judeus pedem ao Todo Poderoso que se apiede e atenue o veredito que será decretado na segunda fase do julgamento. Em Kassel, as rezas do mês de Tishrei eram conduzidas pelo chazan Eliezer Gutkind e pelo Sr. Siegmund Mondschein.

A comunidade de Kassel se reúne  na sinagoga durante a festa de Sucot, chamada pela Torá de “Época de nossa Alegria”, lembrando os milagres que D’us fez a favor dos filhos de Israel durante os 40 anos em que peregrinaram pelo deserto do Sinai. A oração Halel (prece laudatória) e as Quatro Espécies (Arbaat ha-Minim) se converteram na marca registrada de Sucot. O mandamento fala de Quatro Espécies: o etrog (fruta cítrica), o lulav (palma de tamareira), o hadáss (ramo de murta) e o aravá (ramo de salgueiro). Durante toda a festa, (exceto no Shabat), inclusive em Hoshaná Rabá, diariamente deve-se cumprir o preceito das Quatro Espécies. Nossos Sábios afirmam que são reservadas bênçãos especiais para aqueles que juntam os quatro tipos de espécies e oram sobre as mesmas. Com exceção do etrog, as três outras espécies (ramos de plantas) são colocadas em um ramalhete por anéis feitos de fibra de palma trançada.

A alegria de Sucot se expressa na agitação do ramalhete que representa as dádivas da natureza. A alta tamareira nos alegra com a suntuosidade de seus frutos, a murta com seu agradável cheiro, a fruta cítrica suculenta e aromática se une a um pobre salgueiro também criação da natureza. Segurando os ramos diversos na mão direita e o etrog na mão esquerda os judeus de Kassel recitam as preces das Quatro Espécies, agitando-as para as seis direções espaciais, para cima e para baixo. Assim, estes judeus alemães reconhecem que D’us é Onipresente e seu reinado é Eterno.

CORAL DIVIDE A COMUNIDADE

Até meados do século 19, tocar um órgão e cantar num coral não fazia parte dos costumes tradicionais do culto judaico alemão. Portanto, sua introdução nos serviços da sinagoga “Untere Köenigsstrasse” dividiu a comunidade de Kassel em dois: aqueles que queriam o acompanhamento musical junto à liturgia e aqueles que achavam uma transgressão incluir música durante o serviço. Este segundo grupo não concordou em frequentar uma sinagoga com música e migrou para um novo templo, situado na Grosse Rosenstrasse.

O coral da “Untere Köenigsstrasse” estava composto por crianças de um orfanato judaico, localizado na Giessbergstrasse No. 7, em Kassel. Seu regente era o emérito chazan Sr. Eliezer Gutkind, e continuou com a regência do coral após seu afastamento da função de chazan.

O NAZISMO E A SINAGOGA KÖENIGSSTRASSE

A chegada do Nacional Socialismo alemão ao poder, em janeiro de 1933, prejudicou os judeus de Kassel. Numa foto de abril desse ano, publicada no jornal Hessische Volkwacht, da cidade, é possível distinguir um soldado das SS  (Shutz Staffel), as forças de choque de Hitler, com um burro cercado por arame farpado e rodeado pela população local. A cena registra ainda a frase: “Campo de Concentração para cidadãos teimosos” e, em sua legenda, “Umademonstração da necessidade de se evitar comprar em comércios judaicos”. Isso é o que acontecerá àqueles que desrespeitarem as regras.

A mensagem não vem dirigida  apenas aos alemães que continuam a comprar em lojas de judeus (ignorando o boicote ao comércio judaico de abril de 1933), mas também a todos aqueles que persistem em ignorar as determinações legais do Terceiro Reich e seu idolatrado Führer.

Na foto vemos a existência de uma forte crítica ao regime Nacional Socialista dos Trabalhadores. Nela, confirma-se uma preconceituosa ideia disseminada na sociedade alemã de que os burros são animais estúpidos e teimosos. Em suma, criaturas miseráveis que não merecem respeito.

Nos dias 9 e 10 de novembro de 1938, durante a Kristallnacht, a sinagoga da “Untere Köenigsstrasse” foi totalmente destruída As sinagogas liberal e ortodoxa foram depredadas pelos nazistas, que queimaram os manuscritos do segundo volume da “História dos Judeus de Kassel”.

Em 11/11/1938, as autoridades da cidade demoliram a sinagoga. Hoje, no lugar em que se localizava o prédio, há uma placa com a seguinte inscrição: “Aqui ficava a sinagoga da comunidade judaica de Kassel, concluída no ano de 1839, que contava com 2.301 membros no ano de 1933. Muitos já tinham fugido quando ativistas do “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” (NSDAP) invadiram a sinagoga e arrombaram  a Arca da Torá, ateando fogo nos rolos sagrados e demais objetos  de culto. A administração  municipal mandou demolir por completo o edifício para fazer do local um estacionamento.  A comunidade foi desmantelada”.

Em 1938, durante a Kristallnacht, 300 judeus e o rabino de Kassel foram deportados a Buchenwald. Outros 560 emigraram um ano depois e 470 foram deportados  para Riga, em 1941. Para Majdanek foram enviados 99, em 1942,  e 323 para Theresienstadt, na República Checa.

Entre 1945-1946, 200 judeus moravam em Kassel. Em 1965 foi construída uma nova sinagoga e um centro comunitário. Em 2004 a comunidade judaica de Kassel já contava com 1.220 judeus em sua maioria vindos da extinta União Soviética, na década de 1990.

A sinagoga ficou pequena para  esse aumento na população judaica, portanto, a comunidade, juntamente com a prefeitura de Kassel,  financiou a construção de uma nova sinagoga que foi inaugurada em 28 de maio de 2000.

PALAVRAS FINAIS

A sinagoga de Kassel na “Untere Köenigsstrasse”, com ousada iconografia e permanentes serviços religiosos, contribuiu para que os judeus da cidade mantivessem um santuário à altura de seus anseios. As festividades do calendário judaico eram nela festejadas em clima de introspecção ou alegria, contando sempre com a participação de notáveis chazanim em seus cultos.

As gravuras iconográficas  estudadas testemunham a existência de uma comunidade preocupada em manter sua identidade cultural judaica.
Talvez a ideia bastante comum de que os judeus na Alemanha costumavam “assimilar-se facilmente ao país”, definindo-se abertamente como “alemães de fé mosaica”, não seja apropriada para o caso da comunidade judaica de Kassel.

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Thielmann, Wilhelm, Versöhnungstag. Aus der Mappe “Bilder aus der Synagoge - Gottesdienstliche Vorgänge nach dem Leben gezeichnet”. Lichtdruck nach Bleistiftzeichnung auf Papier, montiert auf Pappe Frankfurt a.M., Heinrich Keller Druck (1900) nach dem Original von 1899. [Material cedido pelo artista plástico José de Quadros e traduzido pelo Dr. Nelson Kilpp e o Sr. Rudi Eckhardt

Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É também sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e, desde 1984, membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.