Uma notícia apareceu com destaque na mídia israelense nos últimos meses: a decisão do cantor Enrico Macias de emigrar da França para Israel. O ícone da música árabe-andaluz anunciou suas intenções em uma entrevista à emissora israelense Canal 2, dizendo que o crescente antissemitismo na Europa está por trás desta mudança.
“Em Israel, me sinto livre, eu me sinto em casa. Há muito tempo queria partir, mas sinto que agora chegou o momento. Acredito que o antissemitismo na França crescerá e que devo ensinar algo aos meus filhos e netos. Então, darei o exemplo de partir para viver em Israel”, ressaltou o artista.
Internacionalmente consagrado e intensamente aplaudido nos palcos europeus, na América do Norte, na antiga URSS e no Japão, entre outros, Enrico Macias tem transmitido em suas canções uma mensagem universal de paz e solidariedade entre os povos. O disco “Oranges amères” lançado em 2003 e produzido por seu filho, Jean-Claude Ghernassia, é fruto desse universo que, justamente, é o que nele a todos encanta e seduz.
Sua atuação em prol da paz foi reconhecida pelo governo da França, que, em 1985, concedeu-lhe a Legião de Honra do país. Em 1997, foi indicado pelo Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como Embaixador Mundial para a Paz e Proteção das Crianças. Em novembro de 1981, o então secretário geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, concedeu-lhe o título “Cantor da paz”, após Macias ter doado os royalties da canção “Malheur à celui qui blesse un enfant” para a Unicef.
Sua posição de apoio a Israel vem de longa data. Em 1973, durante a Guerra de Yom Kipur, cantou para os soldados nas frentes de batalha e atravessou o Canal de Suez com alguns batalhões. Em 1978, foi convidado pelo então presidente Anuar el-Sadat a fazer um show aos pés das pirâmides para celebrar o acordo de paz assinado com Israel. Em 2006, recebeu uma medalha especial do então ministro da Defesa de Israel, Shaul Mofaz, pelo seu apoio às tropas israelenses.
Ao longo de sua carreira, Macias apresentou-se mais de 40 vezes em Israel, levando às lágrimas muitos que, através de suas canções, reviviam momentos felizes de seu passado nos países árabes dos quais foram obrigados a partir.
Após 1948, como consequência da fundação de Israel, da guerra deflagrada pelos países árabes contra o Estado Judeu e do recrudescimento das perseguições, centenas de milhares de judeus do Egito, Síria, Iraque, Argélia, Marrocos, Iêmen e Tunísia deixaram seus respectivos países. Partiram para Israel; outros para a Europa, Estados Unidos e América do Sul. Deixaram para trás recordações, séculos de história e um valor incalculável em bens individuais e comunitários.
Embora consagrado como um dos grandes artistas internacionais da música andaluz, Macias jamais abandonou suas raízes argelinas, nunca perdeu a sua simplicidade e o sorriso fácil e sincero que cativou tantos amigos e público, sendo o porta-voz de todo um povo desarraigado da África do Norte durante a década de 1960.
Sua vida
No dia 11 de dezembro de 1938, nascia em Constantina, na Argélia, em uma tradicional família judaica, Gaston Ghernassia, que, décadas mais tarde, seria consagrado como Enrico Macias. As tradições e valores judaicos eram cultivados por seus pais – a mãe descendia de uma boa família de judeus locais, enquanto os familiares de seu pai vinham de Granada, na Andaluzia. A música fez parte da sua vida desde a infância, pois seu pai era violinista da orquestra do grande mestre Cheikh Raymond Leyris, uma das mais representativas da mais pura tradição musical do maaluf, canto tradicional árabe-andaluz. Anos mais tarde, o jovem Gaston casa-se com Suzy, filha do grande mestre.
Sua história de amor com Suzy começou quando ele tinha 15 anos e ela, 13. Suzy sofria de problemas cardíacos e, aos 18 anos, submeteu-se à primeira cirurgia cardiovascular realizada em Paris. Apesar de ter sido alertada pelos médicos de que não poderia engravidar, ela conseguiu dar à luz uma menina e um menino, enfrentando grandes adversidades. Em 23 de dezembro de 2008, Suzy faleceu, após longa enfermidade.
A música maaluf ou andaluz, tocada em instrumentos tradicionais, é a forma mais comum da música oriunda da Andaluzia, na Espanha, e chegou à Argélia no século 15, logo após a expulsão dos árabes daquele país. Desde sua juventude, “Gaston-Enrico” tocava violão e logo passou do violão à harmônica. Sua musicalidade era um dom e costumava dizer: “Em termos musicais, eu poderia ser comparado a um homem que fala muito bem, mas não sabe escrever. Tudo brotou por intuição”. Aos oito anos aprendeu sozinho a tocar mandola, tipo de bandolim. Seu pai, querendo preservá-lo das dificuldades da profissão, preferiu não ser seu mestre. Mas ele tocava escondido. Até que, aos 12 anos, no Bar-mitzvá de seu irmão, o pai lhe pediu para tocar algo para os convidados. Acompanhado por Cheikh Raymond, bastou que começasse a dedilhar o violão para revelar seu talento. Ao final do dueto, impressionado com o jovem, o mestre do maaluf o convida para integrar sua prestigiosa orquestra.
Em 1956, após terminar seus estudos, candidatou-se ao cargo de professor em uma escola, pois a música não parecia ter futuro. Como as escolas precisavam de professores, foi contratado, mas jamais deixou de tocar.
A realidade da Argélia harmoniosa, onde católicos, judeus e muçulmanos compartilhavam a mesma terra, estava acabando. Começava uma era de instabilidade política. O movimento Frente Nacional de Libertação (FLN), fundado em 1954 por Ahmed Ben Bella, lutava pela independência do país, que era colônia francesa há mais de 130 anos. Foi criado na mesma época o Exército de Libertação, braço armado da FLN. Inicia-se a Guerra de Independência (1954-1962), que acaba sendo prolongada e muito sangrenta, em virtude da resistência dos colonos franceses, os Pieds Noirs, senhores das melhores terras.
Entre as vítimas do conflito estava Cheick Raymond que, no dia 22 de junho de 1961, fora assassinado de forma selvagem em Constantina. Naquele momento, o jovem Gaston se deu conta de que a única alternativa para ter um futuro era o exílio na França. Chegava ao fim uma era de calma e tranquilidade para os judeus argelinos. No mesmo ano, Gaston embarca com a esposa, Suzy, na companhia de toda a sua família e amigos no navio Ville d’Alger, que os levaria à França. Deixar a Argélia foi um duro golpe para uma comunidade que tinha construído a vida na África, ainda que suas raízes estivessem na Europa.
Ao chegar a Paris, Gaston decidiu apostar na carreira musical. Como uma criança prodígio da música maaluf, resolveu adaptar o estilo ao gosto do público francês, traduzindo partes das músicas que conhecia para o francês, mas não ficou satisfeito com as versões. Então construiu um repertório baseado em suas próprias experiências. Mas, enquanto o sucesso não vinha, aceitou vários trabalhos tocando e cantando em cafés.
Ele foi contratado pela d’Or em 1962. Gravou seu primeiro disco com a canção “Adieu mon pays”, que compusera no navio quando saía da Argélia. Em outubro do mesmo ano, aparece em um programa de televisão sobre os expatriados da Argélia, “Cinq colonnes à la une”, e, a partir de então, é o início da fama. Faz a sua primeira turnê em 1963, ano do nascimento de sua filha Jocya (o filho Jean-Claude nasceria pouco depois). Em 1964, Gaston adota definitivamente o nome artístico de Enrico Macias, apresenta-se no Teatro Olympia e conquista um sucesso fenomenal com hits como “Enfants de tous pays”, “Les filles de mon pays” e “La musique et moi”. Começam também as intermináveis turnês ao redor do mundo.
Embora seus primeiros fãs tenham sido os “Pés Negros”, que se identificavam com as canções de Macias, também cativou o público mais amplo e suas canções passaram a ser cantadas por todos. Em 1965, recebeu o Prêmio Vincent Scotto e compôs a canção “Les Gens du Nord” e “Non, je n’ai pas oublié”. No ano seguinte, apresentou-se para uma plateia de 120 mil pessoas no Dinamo Stadium, em Moscou, e em outras 40 cidades soviéticas. Sucesso após sucesso, ele gravou, também, em espanhol e italiano.
A década de 1960 foi uma verdadeira roda-viva de gravações e turnês. Em 1968, foi intensamente aplaudido no Carnegie Hall, em Nova York, Chicago, Dallas, Los Angeles e outras cidades dos EUA e Canadá. Entre os prêmios acumulados ao longo de sua carreira estão o Disco de Outro pelo álbum “Melisa”, que incluiu o sucesso “Malheur à celui qui blesse un enfant”. Em 1978, foi convidado pelo presidente Anuar El-Sadat a se apresentar no Egito, como vimos acima. Um momento marcante para Enrico Macias, banido dos países árabes durante anos.
Ao longo de décadas, Macias escreveu um capítulo importante da história dos judeus forçados ao exílio. Através de suas canções, revela a trajetória comum de milhares de judeus que, mesmo reconstruindo suas vidas em outras paragens, jamais arrancaram de seu coração seus países de origem.