Charlotte Salomon, jovem judia alemã refugiada na Riviera francesa, passou ano de 1941, o último de sua curta vida, pintando freneticamente um registro visual de sua existência. Aqueles trabalhos ficariam como um testemunho de seu tempo para as gerações futuras.

Enquanto a guerra devastava a Europa e os nazistas assassinavam milhões de judeus, Charlotte mergulhou dentro de si mesma para criar uma narrativa penetrante e “totalmente inusitada”. Tratava-se de um tipo de opereta, uma Singspiel1, para contar como ficção a verdadeira história de sua família, desde a 1ª Guerra Mundial até 1941, quando, “sentada à beira-mar, perscrutava as profundezas da alma humana”. Ela transformou pessoas reais – a si mesma e a todos aqueles que fizeram parte de sua vida – em personagens com nomes fictícios que aludiam a alguma de suas características pessoais. Sua própria persona é “Charlotte Kann”, seus pais são “Albert e Franziska Kann” e seus avós maternos, Ludwig e Marianne Grunwald, “Grosspa” e“Grossma”, são os “Knarres”, os resmungões. Reproduziu tragédias e eventos familiares – reais e imaginários, misturando-os com acontecimentos históricos. Os suicídios que marcaram sua família e o nazismo são temas recorrentes. O resultado foi uma obra “totalmente inusitada”, pois nunca antes nem depois dela artista algum produziu nada parecido. O título que deu à sua criação é tão pouco comum quanto a própria obra, “Leben? Oder Theater? Ein Singspiel” – “Vida? Ou Teatro? Um Drama Musical”.

A vida de Charlotte irrompe em imagens e música à margem do mar na Riviera Francesa. Ela levava seu caderno de desenho para o ar livre e cantarolava enquanto trabalhava, e assim pintou mais de mil guaches. Cada imagem retratava um momento da vida de sua família ou da sua própria.  Para melhor contar sua história, adicionou a cada imagem algum diálogo, colocando as palavras e as ações dos personagens num papel de cópia transparente, que grudava na margem esquerda do guache. Com tais sobreposições, pode-se ver a ação daquela cena e assim imaginar que se estivesse assistindo, digamos, uma peça ou uma opereta. A dramaticidade de imagem é acentuada ainda mais por alguma sugestões musicais, de Schubert, Mozart e Mahler até marchas nazistas, que ela incluiu junto com os diálogos. E, à medida que a narrativa de Leben? Oder Theater? se desenrola, as cores vivas das cenas iniciais dão lugar a tons mais sombrios, e os diálogos leves e sarcásticos se transformam em sérios e desesperados, até que Charlotte passa a pintar os diálogos na própria imagem. Os últimos guaches são compostos apenas por palavras, pois ela precisava terminar de contar sua história, e pressentia que o tempo urgia. Tinha que fazê-lo com a maior rapidez possível. No final, escolheu 760 guaches e os organizou em atos e cenas, e introduziu um narrador. A  história de “Charlotte Kann” e sua família vai ser contada pela voz dele. A artista fala de si própria na primeira pessoa, em um texto de apenas 12 páginas, um post scriptum que, na verdade, não pretendia incluir na obra.

Pouco antes de ser deportada, adivinhando que ela traria conhecimento vital sobre a época, entregou Leben? Oder Theater? a um amigo a quem pediu que escondesse sua obra, mantendo-a a salvo porque era “toda a sua vida”. Ela jamais poderia imaginar quão longe “sua vida” chegaria, após a guerra...

A vida na Alemanha

Charlotte nasceu em 16 de abril de 1917, em Berlim. Era a única filha de Albert e Fränze Salomon. Seus pais se conheceram em 1915, durante a 1ª Guerra Mundial, quando a mãe trabalhava como enfermeira e o pai como cirurgião. Apaixonada pelo taciturno e reservado Albert Salomon, Fränze casa-se com ele, apesar da desaprovação da família.

Os primeiros anos de vida da pequena Lotte, como Charlotte era chamada, foram felizes. Em Leben? Oder Theater? ela reproduz sua infância em cores alegres. Mas tudo mudaria quando ela tinha apenas oito anos. Sua mãe, “Franziska”, retrai-se em seu mundo. Não consegue fazer outra coisa a não ser olhar pela janela. No ano seguinte, o pai diz à pequena Lotte que a mãe morrera de influenza. Na verdade, como Charlotte descobre 13 anos mais tarde, Fränze havia-se jogado de uma janela. A avó materna, “Grossmama”, insistira em esconder a verdade da criança e do mundo. A janela, símbolo do triste destino de sua família, é um elemento com forte presença em seu trabalho.

Para Lotte, perder a mãe foi perder um dos filamentos que a ligava ao mundo. Ela cresce solitária, introvertida e profundamente observadora da Berlim do período entre guerras. Via seu pai, cirurgião de renome, trabalhar e estudar sem parar para conseguir o título de Professor e ingressar no corpo docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Berlim. Não lhe sobrava tempo para a filha. O que a pequena mais desejava era alguém que cuidasse dela. Quatro anos após a morte da esposa, o Dr. Salomon desposa a famosa cantora de ópera, Paula Lindberg-Levi. Lotte se apegou imediatamente à nova mãe. Mulher vibrante, de voz poderosa e cheia de energia, Paula, a “Paulinka” de “Vida? Ou Teatro?”, vai exercer grande influência sobre Charlotte.

Lotte sentia-se feliz quando ficava sozinha com seus pensamentos e podia absorver o mundo à sua volta. Um mundo que para os judeus da Alemanha estava-se desintegrando. O nazismo vai obrigar Lotte, assim como centenas de milhares de judeus alemães, a assumir seu judaísmo. Até seu pai se casar com Paula, as ligações de Charlotte com suas raízes judaicas eram mínimas. A família de sua mãe era típica da burguesia judia, abastada e totalmente assimilada; e a do pai, que se definia como um alemão de fé mosaica, mantinha apenas algumas tradições. Sua nova mãe vai introduzir o judaísmo no lar dos Salomon: sexta-feira à noite as velas de Shabat eram acesas, aos sábados e nas festas Paula e Charlotte iam à sinagoga, e a jovem chegou a celebrar seu bat-mizvá.

A suástica irrompe repentinamente na vida de Charlotte, como em“Vida? Ou Teatro?”. A jovem artista registra em sua obra o dia 1º de janeiro de 1933, dia em que Hitler se torna chanceler da Alemanha. Ela retrata uma massa, sem rostos, de nazistas, miniaturas de Hitlers, dando destaque especial à suástica. Em sua obra, os alemães são retratados como uma única unidade por trás do nazismo.
Com a chegada de Hitler ao poder, a vida dos judeus muda radicalmente. Novas leis passam a restringi-los, proibindo seu acesso às universidades e a determinadas profissões. No mesmo ano, seu pai é demitido do Hospital Geral e da Universidade de Berlim, e ele se vê restrito ao trabalho no hospital judaico. Apesar de sua fama, Paula Salomon é proibida de se apresentar em público e os críticos passam a se referir a ela como Judenschwein2. Lotte vai reproduzir em sua obra o dia em que “Paulinka” é expulsa do palco pelo público, aos gritos de “Raus”, “Raus”, “Fora”, “Fora”!

Kurt Singer, o “Dr. Singsang” de “Vida? Ou Teatro?”, grande amigo de Paula, que até 1933 dirigia a Ópera de Berlim, entende que algo precisava ser feito. Consegue convencer a Gestapo a permitir a criação de uma Kulturbund, uma associação cultural judaica. Graças à existência dessa associação, músicos e artistas judeus puderam continuar a se apresentar para um público exclusivamente judaico. Sob a liderança de Singer, em 1938, eram apresentados ao redor do país mais de 50 espetáculos por semana. O papel oficial da Kulturbund era ajudar artistas a sobreviver, mas clandestinamente seus dirigentes os ajudavam a deixar o país, conseguindo documentos falsos e vistos, principalmente para a então Palestina.

Paula era muito ativa na Kulturbund, tanto se apresentando como atuando na clandestinidade. E a residência dos Salomon se torna um importante ponto de encontro de artistas e músicos. Graças à Kulturbund, Charlotte teve acesso à única arte e música que um judeu poderia almejar então na Alemanha, aprendendo a ver a arte como uma fonte de valores morais e de autoexpressão.

Naquele mesmo ano de 1933, Charlotte deixa o Ginásio Furstin Bismarck, apesar de faltar apenas um ano para se formar. Não foi expulsa, mas simplesmente decidiu sair por não suportar mais qualquer menção nazista. Seu sonho era entrar numa escola de arte, mas sua família não julgava que ela tivesse talento. Adiou qualquer decisão e foi para Roma a convite de seus avós maternos, que já haviam deixado a Alemanha. Nos quadros que pinta sobre Roma usa cores vivas: vermelhos e azuis intensos. Quando tem que deixar “os azuis de Roma” para voltar “aos cinzas nórdicos”, Lotte estava decidida a se tornar uma artista.

Recusa-se a entrar numa escola de design de moda, como lhe fora sugerido por Paula, apenas porque a mesma aceitava judeus – sentia-se diminuída pela ideia. Decide, então, tentar a Academia de Belas Artes de Berlim. Sabia que não seria fácil, pois a nova legislação alemã limitava a apenas 1,5% o número de alunos não arianos que poderiam cursar instituições acadêmicas. Por sorte, na Academia, a “cota de judeus“ não fora ainda preenchida e havia lugar para um. Em“Vida? Ou Teatro?” Charlotte, quando a comissão de admissão lhe perguntou se ela era realmente judia, responde: “É claro que é isto o que eu sou!”.

Lotte não passou na primeira prova de admissão, pois competira com um jovem nazista. Mas não desiste. Convence o pai a lhe pagar aulas particulares de desenho e consegue passar na segunda prova. Assim, em 1936, Charlotte é admitida na Academia de Arte. O que ela não sabia é que o comitê de admissão decidira admiti-la não apenas por causa de seu bom desempenho nas provas, mas principalmente por sua postura modesta e reservada. A tímida Charlotte não era “uma ameaça para os alunos arianos”.

Na Academia, ela recebeu educação artística clássica. O modernismo e o expressionismo estavam banidos na Alemanha, pois Hitler os considerava uma arte decadente de forte influência judaica e bolchevique. Embora na biblioteca da Academia pudessem ser encontrados livros sobre movimentos artísticos de vanguarda, os professores tachados de modernistas haviam sido despedidos. Todos os gêneros que foram ensinados a Lotte visavam gravar para sempre a marca do anti-modernismo. O espantoso ao se olhar o seu trabalho é que ela se auto-ensinou novas formas de pintar, pois sua principal obra refuta todas as lições acadêmicas que recebera.

Nessa mesma época, ela teve um romance secreto com Alfred Wolfsohn, um músico judeu, grande admirador de Paula, que tinha quase o dobro de sua idade. Paula passara a ajudá-lo, arranjando-lhe trabalho e documentos. Wolfsohn foi o primeiro a perceber a grande sensibilidade e o talento artístico de Charlotte, tendo-lhe dito que acreditava que ela criaria “algo diferente, especial”. É ele que a incentiva a ir em busca de seu eu interior, de sua alma. Não há dúvida que, mesmo se Charlotte não o tivesse conhecido, ela se teria tornado artista plástica, mas provavelmente não teria criado uma obra como Leben? Oder Theater?

A busca obsessiva por seu eu e seu amor por Wolfsohn a absorviam totalmente enquanto o mundo ruía em sua volta. Dia após dia os judeus da Alemanha viam os nazistas lhes arrebatar o seu sustento, os seus direitos e a sua segurança. No início de 1938, os Salomon ainda viviam e trabalhavam na Berlim nazista e Lotte ainda frequentava a Academia de Belas Artes. Mas, no verão alemão de 1938, sua matrícula é cancelada.

A data de 9 de novembro 1938 vai mudar a vida da família Salomon, assim como a história do judaísmo alemão. Naquela Noite dos Cristais (Kristallnacht), hordas enfurecidas atacaram a população judaica em várias cidades da Alemanha e Áustria, ferindo, matando e destruindo suas propriedades.

Diante dos acontecimentos, a família Salomon decide deixar o país, mas, antes disso, os nazistas prendem, deportam e torturam Albert, assim como outros 30 mil judeus. Paula usa toda sua influência para libertá-lo do campo de concentração de Sachsenhausen, para onde havia sido deportado. Ela obtém documentos falsos que lhe permitem deixar o campo, mas não para tomar um trem. Albert, então, volta a pé para Berlim, aonde chega fisicamente arrasado. Apesar dos protestos da filha, Paula e Albert decidem mandar Lotte para o sul da França, para Villefranche-sur-Mer, uma cidadezinha perto de Nice onde então viviam seus avós maternos. Em janeiro de 1939 Charlotte e outros 78 mil judeus deixam a Alemanha. Em março, Paula e Albert conseguem fugir de Berlim. Embarcam num avião com documentos falsos e, sem levar nada consigo, chegam a Amsterdã, onde já estava Kurt Singer, que os acolhe.

O refúgio na França

Ao chegar a Villefranche-sur-Mer, Charlotte vai para L’Ermitage, onde viviam seus avós. Era uma “mansão com lindo jardim” que pertencia a Ottilie Moore, uma americana de origem alemã, excêntrica e rica. Ottilie havia feito de sua casa um refúgio para órfãos e exilados judeus. Nos primeiros tempos na França, Lotte se sentiu, como sua persona revela em “Vida? Ou Teatro?” “renovada e esvaziada das lembranças de tanto sofrimento”. Estava totalmente absorvida pela paisagem na Riviera francesa. O que ela queria era ficar sozinha e desenhar.

Seu relacionamento com seus avós não era fácil. “Grossma” reclamava que ela vivia desenhando. A cada dia que passava longe da Alemanha e de seu lar, a avó se sentia mais inútil e mais diferente, uma estrangeira. Ela sente “seu autocontrole se despedaçando perante uma força acima de suas forças”. Em setembro de 1939, vendo a Alemanha nazista avançar sobre a Europa, a avó tenta se suicidar, enforcando-se. Num angustiante cena de “Vida? Ou Teatro?” Charlotte a encontra quase sem vida. Para alegrar a avó, a jovem decide, então, criar algo artístico sobre o passado da família. Resolve escrever um “pequeno conto através de desenhos das histórias de minha avó para lhe presentear em suas bodas de ouro”. Nesse livro de história ilustrado, a artista liga, pela primeira vez, imagens e palavras. Era a sua primeira tentativa na direção de Leben? Oder Theater?.

Pouco tempo após a tentativa de suicídio da esposa, amargurado, “Grosspa” revela à Charlotte o terrível segredo da família, guardado há 13 anos. Ele diz à jovem, em “Vida? Ou Teatro?”: “Em sua família, todas as pessoas, sem exceção, cometem suicídio”. Lotte descobre que a mãe, a irmã e uma sobrinha de sua avó tinham-se suicidado, assim como sua tia Charlotte. Mas, para Lotte, o maior choque é a revelação de que “Franziska”, sua mãe, também se suicidara. Agora ela conhecia o terrível segredo de sua família! Na opereta que criou, sua persona tenta salvar a avó e lhe diz que “ao invés de tirar sua vida, ela podia usar a mesma energia para contá-la”. Esta ideia vai dar novo ímpeto às duas mulheres: “Grossma” passa “a contar à neta a história de sua vida e Charlotte começa a se autoconhecer”.

Nada, no entanto, consegue impedir a avó de se matar. Em março de 1940, Grossma se atira de uma janela, exatamente como o fizera sua filha “Franziska”. Essa nova tragédia teria um forte impacto na jovem, que passa a se ver como herdeira do terrível legado. “Ó D’us”, Charlotte exclama numa das cenas mais tocantes de sua obra, “não me deixe enlouquecer!”. Em carta a Albert e Paula, na época vivendo em Amsterdã, ela escreve; “Vou criar uma história para não enlouquecer”.

O campo de Gurs

Em maio de 1940, a Alemanha ataca a Holanda, a Bélgica e a França. As autoridades francesas decidem internar todos os cidadãos alemães que estavam no país . Lotte e seu avô são enviados para o campo de Gurs, na região dos Pirineus. Era um local terrível, o único que ela não consegue reproduzir em sua obra.
 
Em junho, a França capitula diante do exército alemão, assinando um armistício com a Alemanha de Hitler. O país é, então, dividido – o norte e a costa do Atlântico ficam sob ocupação nazista, enquanto o sul e o sudeste passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy. Milhares de judeus refugiam-se em Vichy, mas esse seria apenas um abrigo temporário.

Lotte e seu avô são libertados de Gurs em julho de 1940 e voltam para Villefranche. Para se sustentar, Charlotte pintava cartões e quadros para Ottilie Moore. A vida ao lado do avô, no entanto, continuava a ser extremamente difícil. Em 1941, Charlotte toma a decisão de deixá-lo por algum tempo e se muda para uma pousada em St. Cap Ferrat, onde começa a criar sua grande história. No ano anterior já havia começado a pintar temas mais pessoais – retratos da avó, o trem que os levara a Gurs e uma dúzia de autorretratos. Tudo isso se perdeu, menos um autorretrato que assinou como CS 1940, que revela um rosto sem país. Ela era apenas uma artista judia que ninguém queria.

O que a fez pegar no pincel e começar a dar àquele rosto um passado? Em sua obra, ela revela que esse momento foi quando se defrontou com o dilema “matar-se, como outras mulheres de sua família, ou fazer algo completamente inusitado”. Charlotte escreveu no pós-escrito de sua obra: “Eu estava desesperadamente infeliz no verão de 1941. (...) Comecei a trabalhar nos desenhos que tinha em mãos. (...) Tinha que mergulhar ainda mais fundo na minha solidão e, assim, talvez encontrasse – o que tinha para encontrar! A mim mesma: um nome para mim mesmo…”.

Naquelas horas angustiantes, quando “a Guerra devastava tudo, eu, sentada à beira-mar, perscrutava as profundezas da alma humana”. Ela via que “o mundo cada vez se desintegrava mais e seu espírito ia-se desmoronando no mesmo ritmo”. No entanto, apesar da dor e morte que pairavam em sua volta, ela descobriu que não precisava acabar com sua vida, como haviam feito todas as mulheres de sua família, pois a pessoa podia e devia levantar-se das profundezas do desespero e amar a vida com garra ainda maior. Ela queria fazer algo que a pudesse fazer “viver por todos eles”. “E assim”, ela revela, “iniciei o trabalho de “Vida? Ou Teatro?” Usando todos os artifícios do drama, a artista criou algo único na história da arte e da autobiografias. O tema central que vai permear toda a sua obra é a constatação de que a ameaça da autodestruição leva à autodescoberta e o segredo à busca da verdade.

Não se sabe com precisão quando Lotte iniciou a pintar as primeiras guaches de Leben? Oder Theater?, mas sabe-se que trabalhou freneticamente, sem parar, durante um ano, do verão de 1941 até o do ano seguinte. Em 1942, quando da detenção dos judeus em Nice, ela mesmo quase foi presa, e isso a levou a finalizar com urgência o seu projeto. Charlotte tinha 25 anos quando pintou a última cena: um retrato dela mesma sentada numa praia da costa mediterrânea francesa, olhando para o mar. Na mão um pincel; em suas costas a pergunta Leben? Oder Theater?, Vida? Ou Teatro?.
 
Os últimos meses

No ano de 1942, a Riviera francesa foi ocupada pela Itália. Apesar de aliados de Hitler, os italianos não pretendiam deportar os judeus, o que lhes permitia, de certa forma, viver dentro de certa normalidade. Assim, embora o antissemitismo fosse forte na região, a zona italiana da França era uma espécie de área protegida.

No final daquele ano, após ter terminado sua obra, Charlotte retorna a Villefranche à casa onde ainda vivia seu avô. Ottilie deixara a França e não tinha notícias de seu pai nem de Paula desde a ocupação da Holanda pelos alemães. Sentindo-se sozinha, começou um relacionamento com outro judeu refugiado que fora acolhido por Ottilie, Alexander Nagler. Após a morte do avô, em fevereiro de 1943, Charlotte passa a viver no L’Ermitage com Nagler. Ao ficar grávida, eles decidem se casar na prefeitura de Nice, onde registraram seus verdadeiros nomes e endereços, reconhecendo o seu judaísmo. Ao desdenhar a clandestinidade, estavam selando seu destino.

Em setembro de 1943, a área é ocupada pelos alemães. Para os nazistas, tornara-se uma questão de honra pôr um fim na vida judaica na Riviera. Adolf Eichmann envia para lá o capitão SS Alois Brunner. Sua missão era muito clara: identificar e deportar os 1.800 judeus que ainda viviam na região. Simultaneamente à ação de Eichmann, Angelo Donati, um banqueiro judeu italiano e Père Marie-Benoit, um monge capuchinho, tentam organizar o resgate desses judeus. Pedem que estes permaneçam nos arredores de Nice, aguardando o momento de partir. Mas Brunner é mais rápido e, em 24 de setembro, prendeu centenas de judeus, entre eles, Charlotte e Alexander. Os dois são despachados de trem ao campo de Drancy e, em seguida, para Auschiwtz. Charlotte, grávida de cinco meses, não sobreviveu à primeira seleção. Nagler viveu até 1944.

Antes da sua prisão, perante a intensificação da escalada nazista, Lotte tinha uma única preocupação: salvar seu trabalho se não fosse possível salvar sua vida. Assim, entregou as mais de mil pinturas a um amigo muito próximo, Dr. Moridis, o médico que cuidara de sua avó e servira de testemunha em seu casamento, pedindo-lhe: “Guarde isto em segurança, toda a minha vida está aqui”. Quando a guerra terminou, ele as entregou a Ottilie Moore. Posteriormente, seu pai e Paula, tendo sobrevivido à guerra, foram até Villefranche para reivindicar o que Charlotte pintara nos anos que lá viveu. Ottilie, no entanto, só lhes entregou o pacote que continha os guaches de “Vida? Ou Teatro?”.

Em 1960 foi realizada a primeira grande exposição de Charlotte Salomon, por iniciativa do curador do Museu Histórico Judaico de Amsterdã, que se apaixonou por sua arte. Desde então, foram realizadas mostras ao redor do mundo. Apesar do sucesso de cada exposição, a obra de Charlotte Salomon ainda é relativamente desconhecida do grande público. Desde então, seu acervo pertence à Fundação Charlotte Salomon, que faz parte do Museu Histórico Judaico de Amsterdã. A vida de Charlotte Salomon foi, também, tema de filmes e peças de teatro, entre as quais uma das mais famosas foi “Company of Angels”, encenada pelo grupo britânico Horse and Bamboo Theatre. A Jornada de Lotte – “Lotte’s Journey”, de autoria de Cândida Cave, foi apresentada no New End Theatre Hampstead, em 2007.

Bibliografia:
Felstiner Mary Lowenthal, To paint her life: Charlotte Salomon in the Nazi era, University of California Press, 1997
Steinberg,Michael P. e Bohm-Duchen, Monica, Reading Charlotte Salomon, Cornell University Press, 2006