A visão original do menino do shtetl da lituânia, que durante trinta anos pintou em paris, até morrer na França ocupada pelos nazistas, redefiniria a forma como a arte moderna enxergaria o mundo.

Acima de tudo, Chaim Soutine era pintor. Independente e solitário, desenvolveu uma visão e técnica muito particulares de pintura. Dominando magistralmente o óleo, com o auxílio de cores fortes e formas distorcidas, criou um expressionismo violento e atormentado. Com tendência à melancolia e acessos de mau humor, Soutine tinha uma personalidade difícil, mas a força de sua genialidade fazia com que as pessoas se aproximassem dele.

Qualquer biografia de Soutine está fadada a ser fragmentada e incompleta, pois ele nunca manteve um diário, nem sequer deixou algo escrito sobre sua arte ou as técnicas que empregava. Poucas foram as cartas e retratos encontrados e o que se sabe sobre sua pessoa foi obtido através de documentos e daqueles com quem se relacionou, ao longo da vida.

Sua única biografia verdadeira são suas telas, pois é nelas que ele se revela por inteiro, sem máscaras. E o que define Soutine enquanto artista é um anseio por uma catarse - jamais alcançada. Não há dúvida de que sua arte foi grandemente definida por ser judeu e pelo sofrimento que marcou sua vida. Apesar de nunca ter retratado o shtetl de onde vinha ou qualquer outra cena judaica, jamais tentou esconder suas origens - muito menos se assimilar ou mudar de nome. Permaneceu, até a morte, fiel a si próprio.

Infância na Lituânia

Filho de Salomão e Sarah Sutin, Chaim nasceu em 1893, em Smilovitchi, próximo a Minsk, que, à época, era parte do Império czarista. Um dos tantos shtetls da Lituânia onde a população era predominantemente judia, Smilovitchi era um lugar pobre e sombrio. Um artista russo o descreveu como sendo "uma aglomeração aleatória de casas de madeira, as melhores com paredes pintadas, cortinas brancas e vasos de flores nas janelas; as piores eram cabanas que pareciam prestes a desabar".

Chaim era o décimo filho de uma família de onze crianças. Seus pais, judeus ortodoxos, eram dos mais pobres do vilarejo. As dificuldades faziam parte de seu cotidiano, assim como do de milhares de judeus, sob o pesado jugo czarista. A miséria na qual cresceu Soutine marcará sua vida e personalidade para sempre.

Seu pai era um homem severo, fervorosamente religioso, profundo conhecedor do Talmud. Chaim cresceu cercado de uma rica vida judaica, na qual a observância das leis e das tradições, além do estudo, eram obrigações do cotidiano.

O sonho do pai, um simples cerzidor de roupas, era que o filho se tornasse alfaiate. Mas, nada disto interessava a Chaim, que, desde cedo, sentia intensa necessidade de pintar, o que era inaceitável em uma comunidade onde qualquer reprodução da forma humana constituía grave transgressão.

Apesar de ser sistemática e severamente desencorajado pelo pai e pelos irmãos, que dele caçoavam e o puniam, Soutine começa a desenhar muito cedo, em suas escapadas, sozinho, para os bosques, de onde só voltava quando a fome apertava. Seu primeiro retrato, feito a giz, foi de seu professor, na escola. Aos 7 anos, os pais o puniram severamente por ele ter pegado, sem permissão, algumas moedas para comprar lápis de cor e satisfazer sua sempre presente necessidade de se expessar através das formas e cores.

Vivia fugindo de casa para não ser punido e seu desejo era partir, de vez, de Smilovitchi. A oportunidade apareceu quando tinha por volta de 13 anos. Ao ser fisicamente agredido, após dar a um velho judeu um desenho que fizera dele, sua mãe se queixou ao rabino. Este determinou que os agressores lhe pagassem uma indenização de 25 rublos. Esse dinheiro permitiu que o rapaz deixasse para sempre o shtetl. Do local de seu nascimento e de sua infância, Soutine levará consigo lembranças obsessivas de muito sofrimento, pobreza e fome.

Inicialmente, assenta-se em Minsk, na casa da irmã casada, para se tornar aprendiz de alfaiate. Mas, inscreve-se no único curso de arte da cidade. Tornou-se amigo de outro aluno, Michel Kikoine, e os dois se tornam inseparáveis. Quando este último decide continuar seus estudos em Vilna, importante centro artístico e núcleo cultural judaico, Soutine o acompanha. Ambos são aceitos na Academia de Belas Artes da cidade. Sobre Soutine, Kikoine dizia: "Era um dos mais brilhantes alunos da academia", acrescentando, no entanto, "mas a temática de seus esboços tinha sempre um toque de mórbida tristeza...".

Era o inicio da década de 1910. Os dois jovens viviam modestamente em um quarto alugado, junto com outros estudantes, na casa de um casal. Conseguem emprego com um fotógrafo, retocando seus trabalhos. Mas sonham em um dia ir para Paris, Cidade-Luz, centro da vanguarda artística. Em Vilna, Soutine conhece, através da sinagoga, o Dr. Rafelkess, médico judeu que seria o primeiro a lhe dar o vital apoio financeiro e emocional, de que tanto necessitava. É Rafelkess quem, um ano após a partida de Kikoine para Paris, financia a ida de Soutine para a capital do mundo artístico.

Paris, sonho realizado

Soutine chega a Paris no ano de 1913, instalando-se na "La Ruche", em Montparnasse, onde viviam inúmeros artistas vindos da Rússia e da Europa Oriental. Sem perder tempo, inscreve-se na Escola de Belas Artes e no atelier de Fernand Cormon, um dos mais famosos professores de arte, na época. À noite, freqüenta as aulas de desenho da Academia Russa. E, como tantos outros, fica fascinado pelo Museu do Louvre, que passa a visitar constantemente, admirando e estudando a pintura dos Velhos Mestres, particularmente Rembrandt, Van Gogh, Cézanne e Courbet.

Sua vida se torna mais difícil quando recebe a notícia da morte de Rafelkess e da suspensão imediata do auxílio financeiro que este lhe enviava. Sem recursos, novamente, começa a trabalhar à noite, para sobreviver, como carregador na estação de Montparnasse - ou em qualquer outro emprego que arranjasse, dividindo, assim, seu tempo entre o trabalho, as aulas e a pintura. O uso parcimonioso da cor e pigmento nas naturezas mortas que pinta no período refletem a desesperada pobreza em que vivia. No quadro "Natureza Morta com Arenques" (circa 1916), três esquálidos peixes, que jazem inertes no prato, exprimem mais do que qualquer palavra a sua depauperada situação.

Extremante tímido e introvertido, a vida de Soutine era de solidão e ansiedade, apesar de fazer parte do Círculo de Montparnasse, o grupo dos artistas judeus, todos imigrantes, que viviam em Paris. Eles faziam parte da famosa "Escola de Paris", denominação que não definia um grupo coeso, unido por determinada escolha artística. Englobava, sim, os artistas estrangeiros, muitos deles judeus, que viviam e trabalhavam em Paris, desde a primeira década do século 20. Entre eles, além de Soutine, contavam-se Marc Chagall, Amedeo Modigliani, Mané-Katz, entre outros.

Em agosto de 1914, a Alemanha declara guerra à França; era o início da 1ª Guerra Mundial. Soutine se alista voluntariamente nas brigadas de trabalho, para cavar trincheiras, mas foi dispensado por causa de sua saúde frágil. Foi nesta época que se mudou para a Cité Falguière, um complexo para artistas onde Jacques Lipchitz, Oscar Miestchaninoff e Amedeo Modigliani tinham seus estúdios. Lipchitz o apresentou a este último, que se torna não apenas seu amigo, mas também seu mentor. E Modigliani, por sua vez, apresenta-o a seu amigo e marchand, Leopold Zborowski, que toma Soutine sob sua tutela.

Em 1918, Soutine pinta um auto-retrato, revelando a forte tendência expressionista de seus óleos. As cores são mais ricas e as pinceladas já mostram uma agitação que se tornaria o "selo" de todos os seus trabalhos posteriores.

Para fugir ao bombardeio alemão de Paris, em 1918, Modigliani, Zborowski e Soutine fogem para Nice. Pouco depois, o marchand convence seu novo protegido a se instalar por algum tempo em Céret, uma pequena cidade a poucos quilômetros da fronteira espanhola com os Pirineus. A paisagem selvagem da região o atrai, com suas rochas e profundos despenhadeiros tortuosos. No fim de janeiro de 1920, soube da morte de Modigliani, o que muito o abala

Soutine ficou na região até 1922, período durante o qual pintou cerca de 200 paisagens. É em Céret que o artista se descobre a si próprio; é lá que atinge sua maioridade artística. Suas obras, com imagens quase apocalípticas, em fortes pinceladas, situam-se entre as mais surpreendentes em toda a arte moderna. De intensidade rara, permanecem como as pinturas mais provocativas e desafiantes de toda a sua produção - apesar de que, em momento posterior de sua vida, ele tenha tentado extirpar as paisagens de Céret do corpo de seu trabalho.

Apesar da intensa produção artística, os anos que passou em Céret foram muito difíceis. Sem recursos e sofrendo intensamente de úlcera estomacal, vivia isolado em si mesmo. Dono de uma personalidade instável, seu estado de espírito oscilava constantemente entre o desespero e a alegria, entre a falta de estímulo e a exultação. Obcecado por cores e formas, com freqüência deprimido e insatisfeito, Soutine chegava a destruir suas telas em seus surtos de angústia.

Sua carreira ganha nova dimensão em 1922, quando Dr. Albert Barnes, rico colecionador americano, de Filadélfia, interessou-se por sua obra e compra várias de suas telas. Barnes fizera fortuna com a venda de Argyrol, um medicamento para a cura de infecções oculares, e estava em Paris atrás de obras para aumentar seu acervo de impressionistas e pós-impressionistas, que já contava com mais de 100 Rénoirs e 50 Cézannes. Assim que viu o quadro "O Mestre-pasteleiro" na galeria do marchand Paul Guillaume, comprou-o, num relance, manifestando interesse em adquirir mais telas do mesmo pintor. Guillaume logo o coloca em contato com Zborowski, em cujo apartamento havia inúmeros trabalhos da fase de Céret. O americano compra, de uma só leva, 60 telas, assegurando, assim, o sucesso e a situação financeira de Soutine. Em Paris, este passa a integrar o seleto rol dos artistas sérios. Seu nome começa a pipocar nas colunas dos críticos de arte, que opinam sobre suas obras, fazendo com que suas telas sejam procuradas pelos colecionadores.

Era o ano de 1923. Sem conseguir pintar, Soutine decide ir a Cagnes-sur-Mer, onde permanece até 1925. Retornando a Paris, instala-se perto do Parc Montsouris. Sua situação financeira melhorara e ele já vive confortavelmente, veste-se bem e aperfeiçoa o francês e sua bagagem cultural, apaixonando-se pela música de Bach.

Em 1927 realiza sua primeira exposição individual, na Galeria Bing, mas se recusa a visitar a galeria, apesar do grande sucesso da exposição. Os quadros de Soutine estão presentes nas coleções de prestígio. No mesmo ano se torna amigo de Elie Faure, médico, historiador e crítico de arte. Enquanto o tratava dos problemas estomacais, Faure escreveu importante monografia sobre o pintor, além de vários artigos onde afirma que a arte de Soutine reflete a "trágica visão judaica". Nesta época, Soutine conhece o casal Marcellin e Madeleine Castaing, que se tornariam bons amigos e protetores. Quando, cinco anos mais tarde, Zborowski falece, o casal passa a ser seu marchand. O retrato que fez de Madeleine Castaing, em 1927, é uma de suas mais belas telas.

À medida que cresce sua fama, Soutine, o peintre?maudit, pintor maldito como era conhecido, se transforma. Fotografias de 1930 o mostram vestindo ternos esmerados; tinham ficado para trás as roupas surradas. Ao adquirir dinheiro e respeito, seus quadros também refletem as mudanças ocorridas em sua vida. Nas paisagens varridas pelo vento, há crianças que riem. Embora continuasse a buscar no passado inspiração para suas telas, as cores são menos intensas e seu pincel - que outrora tinha uma intensidade febril - se torna mais suave e contido. Talvez suas estadas em estâncias termais, os fins de semana na propriedade rural do casal Castaing e a água termal de Vichy, que tomava regularmente, finalmente lhe tenham proporcionado alívio, ainda que temporário, da angústia e raiva que devoravam seu interior.

Em 1935, vinte de suas telas são expostas, pela primeira vez, nos Estados Unidos, em uma galeria de Chicago, e, no ano seguinte, em Nova York. Em 1937, participa da Exposição de Arte Independente, no Petit Palais, em Paris. No mesmo ano, Soutine conhece Gerda Groth, uma judia alemã que havia fugido da Alemanha nazista. A jovem, a quem chama de "Mademoiselle Garde", vai cuidar dele durante 3 anos. Em 1940, eclode a 2ª. Guerra Mundial. Em maio, Gerda é presa, junto com outros cidadãos alemães, e levada para um Campo de Internamento, nos Pirineus. Ela sobrevive à guerra, mas não mais reverá Soutine com vida.

Em novembro daquele mesmo ano, Soutine conhece Marie-Bérthe Aurenche, ex-esposa de Max Ernst, pintor surrealista. Durante a ocupação nazista na França, ela se encarrega de cuidar do pintor. Além de judeu, estrangeiro, ficar em Paris se torna cada vez mais perigoso para Soutine. Amigos de Mme.

Aurenche o ajudam a sair da cidade e o mandam para Richelieu, onde o prefeito lhe fornece documentos de identidade falsos. Encontra um lugar no vilarejo de Champigny-sur-Veuldre, onde viveu com Marie-Bérthe em relativa segurança. Apesar da tensão à sua volta, Soutine continuou pintando com a mesma concentração de antes.

Decide não fugir da França através da rede clandestina, organizada por Varian Fry, em Marselha, naquele verão. (Ver Morashá Edição 35). No entanto, o medo de ser encontrado e preso pelos nazistas o atormentava permanentemente. A ansiedade, velha característica de sua personalidade, torna-se cada vez maior e mais presente em seu trabalho. Seus temas favoritos eram retratos, paisagens tempestuosas e árvores selvagens. A tensão agrava sua úlcera e os ataques de dor eram cada vez mais freqüentes.

No verão de 1943, os médicos locais aconselharam Marie-Bérthe a levá-lo a um hospital, em Paris. No dia 7 de agosto chegam na capital e Soutine, com uma úlcera perfurada, é operado às pressas. Sobrevive à operação, mas falece dois dias mais tarde.

Sua obra

Considerado um dos mais importantes pintores expressionistas da chamada "Escola de Paris", as telas de Soutine fazem parte dos acervos dos principais museus dos Estados Unidos e da Europa, além de ser uma constante em coleções particulares. Em anos recentes, suas telas têm alcançado preços muito elevados. Em fevereiro de 2005, "Le Pâtissier de Cagnes", pintado em 1922, foi vendido por £5.048 milhões, na Christie's de Londres. E, em fevereiro último, a tela "Homem com foulard vermelho", de 1921, foi vendida por 13.2 milhões de euros, em leilão da Sotheby´s, em Londres. Além de ser o maior valor já alcançado por uma obra deste artista judeu, foi também o mais alto de todo o leilão, contrariando as previsões dos especialistas.

"Tinta a óleo, em grossas camadas e enérgicas pinceladas" - isto resume o cerne do projeto artístico de Soutine. Mas, por não ter deixado nada documentado sobre sua técnica, inúmeros são os mitos acerca de seu trabalho e forma de pintar. Há quem afirme que era um recluso, mental e emocionalmente instável, que usava as mãos para pintar, que pintava sobre telas usadas que encontrava em "mercados de bugigangas". Vários críticos de arte afirmam que lhe agradava o hábito de reutilizar telas antigas, aplicando tinta fresca em uma superfície já ricamente texturizada por trabalhos anteriores. Pois esta técnica lhe permitiu ir muito além da pintura, quase que criando em suas telas uma variante de escultura.

Em seus últimos trabalhos, consegue chegar a uma tal perfeição da técnica, que os grumos de grosso pigmento pareciam verdadeiros baixo-relevos.

Para Soutine, o processo de pintar, o êxtase da criação artística eram tão importante quanto o trabalho acabado. Por isso, Soutine nunca fazia desenhos preliminares, como outros artistas, mas esperava até ter completa a imagem mental do trabalho acabado. Só então começava a pintar. Como afirmara Barnes, certa vez, ele tinha "o olhar atento aos aspectos grotescos da realidade".

A arte de Soutine é forte, nem sempre agradável, mas sincera.

As distorções eram sua maneira de expressar a busca pela realidade interior - uma realidade marcada pelo sofrimento. Seria impossível analisar sua obra sem ter sempre presente o fato de ser judeu. Muitos historiadores e críticos de arte consideram este fato como crucial em sua arte.

Permanentemente consumido pela sua própria angústia, Soutine retrata um mundo que está à beira da desintegração. Nas paisagens que pintou em Céret, suas composições distorcidas, espessas de tinta, têm casas e árvores e colinas e figuras que giram em deslocamentos estonteantes, como imagens que refletem o caos iminente. Mas seu forte apelo emocional, intensificado pelo frenético domínio e pelas manobras do pincel e do pigmento, é imperioso.

Os retratos feitos por Soutine são verdadeiras biópsias do caráter do modelo. Vão ganhando vida à medida que os vai retratando. Para ele, o essencial em um portrait reside na expressão do ser humano. O artista extrai a expressão do modelo, desarticula seu corpo, conseguindo revelar o sofrimento íntimo.

Seus personagens que tremem e se contorcem, afligidos por tiques e outras síndromes, são na maioria, pessoas que viviam e trabalhavam à margem da sociedade privilegiada; os entregadores, os açougueiros, as garçonetes, os chefes-pasteleiros - todos habitantes daquele mundo periférico, que era o que Soutine melhor conhecia na vida. Aquele mundo paralelo que nunca saíra de dentro dele...

Bibliografia:

Kleeblatt, Norman L. e Silver, Kenneth E., An Expressionist in Paris: The Paintings of Chaim Soutine, The Jewish Museum, New York