O mundo judaico da Europa Oriental, impregnado de elementos religiosos, compõe o universo que o pintor imortaliza em sua obra.

Radicado em Paris no período entre as guerras, como tantos outros artistas estrangeiros, Mané-Katz foi parte de uma geração que influenciou a criação plástica durante a efervescência vanguardista conhecida como a Escola de Paris. Esta denominação não definia, no entanto, um grupo coeso e unido por determinada escolha artística, ainda que muitos deles adotassem a pintura expressionista. Englobava os artistas estrangeiros que viviam e trabalhavam em Paris desde a primeira década do século 20. Entre eles, além de Mané-Katz, contavam-se muitos judeus vindos da Europa Central e Oriental, como Amedeo Modigliani, Chaim Soutine e Marc Chagall, entre outros.

Sua vida

Nascido em 5 de junho de 1894, na cidade ucraniana de Kremenchug, à época parte do Império czarista, Emmanuel era filho de Lazar Katz, shamash de uma sinagoga, que mal conseguia prover o sustento de sua numerosa família. A vida de Mané, como passou a ser conhecido no mundo artístico, já parecia traçada desde seu nascimento pelo pai, que o queria rabino. Contudo, o jovem consegue soltar as amarras tradicionais do shtetl para ir em busca de sua arte. O pai, apesar de não considerar essa opção apropriada e séria o bastante para seu filho, soube respeitar sua vocação.

Mané nunca revelou o que fizera despertar sua inspiração em um ambiente onde não havia nenhuma manifestação artística, no sentido convencional do termo. O rapaz, porém, via e sentia a beleza da vida que o cercava - perceptível, por quem tem a sensibilidade para vê-la, dentro da sinagoga que, desde criança, freqüentava com o pai, bem como nos costumes e tradições do cotidiano judaico. Sua alma era impregnada da cultura asquenazita que o circundava. E esta seria transformada no verdadeiro tesouro de lembranças que retrataria em suas telas.

Talvez seu talento passasse desapercebido, mudando sua história, se o acaso não levasse à sua cidade natal um jovem artista de Odessa. Foi este quem o descobriu. Dali em diante, Mané abraça por completo a arte. Iniciou os estudos na Academia de Mirgorod, de onde seguiu para a Escola de Belas Artes de Kiev. Tinha, à época, 16 anos e nenhum tostão lhe sobrava; sustentava-se e sobrevivia vendendo rifas que lhe caíam às mãos. É dessa época o seu primeiro quadro que desapareceria durante a 1ª Guerra Mundial. Intitulado "Hora da Dor", retratava uma criança debruçada sobre o corpo da mãe, morta, enquanto um homem velho rezava, voltado para a parede. Surpreendia tão forte temática em tão jovem artista. A tela, apesar de bem executada, revelava nos traços e nas cores sombrias a influência da escola russa e o atraso cromático desta em relação aos movimentos impressionista e pós-impressionista que dominavam a cena, na pintura européia.

Mané-Katz sabia que não havia futuro para ele na Rússia. Quando tinha apenas 11 anos, sua cidade sofreu um pogrom violento, um dos tantos que se abateram sobre os judeus na Rússia czarista, em 1905. Apesar de sua família não ter sido atingida, sabia que era hora de deixar aquele inferno, assim como sabia que só cresceria como pintor se fosse para Paris, capital mundial da arte, na época. Partir para a França tornou-se seu leit motif e, por sorte, consegue que o cônsul dinamarquês, Gurvich, e um parente de sua mãe, Sr. Levin, arcassem com suas despesas de viagem.

Em 1913, com apenas 19 anos, Mané chega na capital francesa, trazendo no bolso alguns kopecs e cartas de apresentação. Uma vez estabelecido, o jovem inscreve-se na Escola de Belas Artes e freqüenta as aulas de Fernand Cormon.

Em suas visitas ao Museu do Louvre, muito o impressiona o trabalho de Rembrandt e a extraordinária profundidade emocional que o grande mestre consegue transpor para a tela. Ao visitar as galerias particulares, começam a desfilar diante de seus olhos os expoentes da arte de vanguarda. Fascina-o o approach não ortodoxo à arte: a simplificação das formas, os desenhos abstratos, a exaltação das cores dos fauvistas, a nova linguagem plástica dos cubistas. Tornando-se amigo de Chaïm Soutine e Chagall, nas horas vagas freqüentam juntos os cafés de Montparnasse e, enquanto ouvia os debates acalorados dos demais artistas, ficava horas absorto em sua mesa, pintando, sempre pintando. Nessa época, os temas judaicos já faziam parte das telas de Mané-Katz.

Mas, com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, sua aprendizagem foi bruscamente interrompida. Tentou alistar-se na Legião Estrangeira, mas foi rejeitado por sua baixa estatura. Resolve, então, voltar para a Rússia, onde tenta, de novo, engrossar as fileiras do exército; nova recusa. Mudou-se, então, para São Petersburgo, onde continuou a trabalhar e expor até 1917, quando eclodiu a Revolução Bolchevista. Voltou para sua cidade natal, passando a lecionar arte no ginásio local. Mas a guerra civil que se instaura após a Revolução fizera da pacata Kremenchug verdadeiro campo de batalha. Os "brancos" debatiam-se com os "vermelhos". Vendo que eram nulas as suas possibilidades de crescer artística e profissionalmente, Mané volta à capital francesa, em 1921.

A Escola de Paris e o expressionismo judaico

Crescia constantemente o número de jovens artistas judeus que viviam e trabalhavam em Paris, nos bairros da Rive Gauche. Para a maioria deles, oriunda da Europa Oriental, sair dos guetos significava a libertação artística. Faziam parte da Escola de Paris e, apesar de não pertencerem a um único movimento artístico, tinham uma identidade própria, com características singulares que os identificavam. Segundo Bernard Dorival, perito em arte contemporânea e curador-chefe do Museu Nacional de Arte Moderna, o que caracterizava esses jovens artistas era "uma inquietude espiritual e um pessimismo e intelectualismo exacerbados". E sua arte, quase sempre figurativa de tons expressionistas, incluía elementos judaicos. No expressionismo, o artista distorce a imagem para ressaltar seu emocional. O resultado é uma pintura dramática, subjetiva. E através desta arte emocional, os jovens artistas transmitiam sua inquietude espiritual. Era o nascimento, em Paris, do "Expressionismo Judaico", do qual Mané-Katz é um dos expoentes.

Depois de seu retorno a Paris, os trabalhos de Katz começaram a chamar a atenção dos críticos e, em 1923, realiza sua primeira exposição individual. A partir daí, suas telas eram regularmente incluídas nas mais importantes mostras de arte, em Paris: o Salão de Outono, o dos Independentes e das Tulherias. Em 1927, torna-se cidadão francês.

Mané-Katz amava viajar e, em 1928, visitou pela primeira vez o Oriente Médio e a então Palestina. Fascinado pela luminosidade e cores da região, começou a incluir em suas obras tonalidades fortes e quentes como o vermelho, laranja e amarelo. Seu quadro "Junto ao Muro das Lamentações", de 1937, recebeu uma medalha de ouro na Exposição Internacional de Arte em Paris, prêmio que o artista posteriormente doou ao Estado de Israel.

Quando os nazistas ocuparam Paris, em 1940, Mané-Katz conseguiu fugir para os Estados Unidos, onde começa a trabalhar em prol do movimento "França Livre" e se filia ao grupo "França, para Sempre". Foi a época em que abraça, de corpo e alma, a causa sionista. A guerra e o sofrimento de nosso povo o afetaram profundamente - a ponto de mal conseguir pintar. E, quando o lograva, a temática demonstrava seu tormento interior, como no impressionante "Sacrifício de Abraão", de 1944.

Com o término da guerra, em 1945, foi um dos primeiros artistas judeus a retornar à "Cidade Luz". De volta à França, seus quadros retratam pontos característicos da capital francesa. Seu amor pela cidade pode ser comprovado no quadro que pintara ainda jovem,"Reverência a Paris", no qual se vê um jovem judeu, envolto em seu Talit e Tefilin, rezando aos pés da Torre Eiffel. Em 1951, a França concedeu-lhe o título de "Cavaleiro da Legião de Honra", promovendo-o, em 1962, ao grau de "Oficial".

Diferentemente de outros artistas, Mané-Katz jamais foi boêmio; sua vida era regrada e seu casamento, estável. Tampouco sentia, como outros artistas judeus, qualquer conflito interno com sua condição judaica, muito menos a necessidade de se afastar de suas raízes. Pelo contrário, eram estreitos os seus vínculos com a comunidade parisiense. Era grande colecionador de objetos do culto judaico e, em 1949, assume a presidência de uma organização denominada Amanot, criada por pintores e escultores judeus.

Sua forte ligação com seu povo e a terra de seus ancestrais levou-o a Israel durante a Guerra de Independência, em 1948. Quando, devido à eclosão da guerra, o curador do Museu de Tel Aviv contatou-o para ver se "queria transferir a data de sua exposição", o artista respondeu com o envio de 40 telas a Tel Aviv. Pouco depois, apresentava-se, em pessoa, no museu. A exposição foi inaugurada na data planejada, apesar dos combates. Era a sua forma de demonstrar apoio incondicional a Israel. Enquanto permaneceu no país, pintou muitas telas, entre as quais, as renomadas "Jerusalém", "A cidade da Paz", "Mar Morto" e "A Moshavá Zichron Iaakov".

Na década de 1950, esvaziara-se a hostilidade que existia contra os expressionistas judeus, principalmente na França pré-2ª Guerra, e os críticos europeus passam a ter grande apreço por seu trabalho. Em dezembro de 1953, realizou-se, em Londres, uma grande exposição dos "artistas imigrantes russos", da qual, entre outros, participaram Chagal, Shapira, Mané-Katz, Minchin, Kiquine Karman. Público e críticos não mediam os elogios ao descrever sua admiração pelas telas expostas e pela sensibilidade transmitida por suas cores, ricas e intensas.

A arte de Mané-Katz

Durante quase cinco décadas, o artista fez centenas de obras em pastel, crayon, óleos e guache. Apesar de ter sido influenciado pelo fauvismo e, durante breve período, pelo cubismo, a arte de Mané-Katz é expressionista par excellence. Centra-se no lado mais profundo e, muitas vezes, inescrutável, do homem. E, para atingir plena expressão emocional, o artista distorcia as formas e cores normais da natureza. A partir da década de 1930, as cores vivas substituem as escuras, típicas da tradição russa - a arte francesa conquistara, definitivamente, Mané-Katz e toda a sua geração de artistas. Suas telas se tornam menos reflexivas, sombrias, passando a transmitir, com muita imaginação e criatividade, a atmosfera alegre que o rodeava.

É inegável a influência que a milenar cultura judaica exerceu sobre a produção artística de Mané-Katz. Entrelaçada com sua arte, reinavam sua vida, suas memórias e experiências, que ele incorporava com maestria em qualquer de seus traços.

Um de seus temas preferidos é o judeu do shtetl. A vida nos guetos da Europa Oriental, impregnada de elementos religiosos e espirituais compõem o universo que Mané-Katz conseguira imortalizar em sua obra. Nas telas de Katz, o mundo de Kremenchug permanece verdadeiro, real. Os Rebes, os talmidei chachamim e os músicos, todos personagens centrais de seus trabalhos e da vida nos vilarejos, transmitem-nos a emoção que o artista sentia ao se deparar com eles. Como dissemos na abertura deste artigo, em 1940 o escritor judeu alemão Lion Feuchtwanger escreveu que Mané-Katz eternizou em suas obras o judeu do gueto, do shtetls da Europa Oriental, através de cenas do cotidiano retratadas em obras como "A vida no Gueto, "Os Chassidim", "Estudante na Ieshivá", "Os Músicos Klezmer", "O violinista e o Percussionista", "O Jogador e o Mendigo", entre tantas mais.

Os últimos anos

Em 1957, a Prefeitura de Haifa lhe faz um convite, oferecendo-lhe uma casa localizada perto do topo do Monte Carmel, com um estúdio para seu trabalho. Desde então, Mané-Katz passou a dividir seu tempo entre Haifa e Paris. Faleceu em Israel, em 1962, tendo deixado suas obras e seu acervo particular de arte para a cidade. Em 1977, sua casa foi transformada em museu, com seu nome, muito procurado por turistas e amantes das artes.

Seu trabalho pode ser apreciado, hoje, em inúmeros museus pelo mundo, entre os quais o de Arte Contemporânea de Montreal e no Metropolitan, em Nova York. O governo francês comprou a pintura "Place de la Concorde" para enriquecer o acervo do Museu de Arte Moderna de Paris.

Bibliografia

Werner, Alfred, Mané-Katz, Editora Massadah, Tel Aviv

Colaboração: Jaime Vaie Universidade Bar Ilan, Israel e Drorit Milkewitz