A Europa arcará com uma responsabilidade moral por muitas e muitas gerações futuras.
O filme de De Sica, de 1970, O Jardim dos Finzi-Contini, mostra a terrível realidade de uma família judaica durante a época fascista.
Em 1895, quando Theodor Herzl era o correspondente em Paris do Neue Freie Presse, havia cerca de 10,5 milhões de judeus no mundo, dos quais 8,8 milhões eram europeus. No final do século XIX, 85% do judaísmo mundial viviam no continente que hoje está em vias de se tornar uma única entidade político-econômica.
No final de 2001, a população judaica mundial girava em torno de 13,2 milhões, mas apenas 13% dos mesmos – 1.583.000 – são europeus. Destes, apenas 1.032.000 vivem nos países da União Européia – e os muçulmanos hoje contabilizam mais de 4% da população da região, enquanto o percentual de judeus é inferior a 0,3%.
Numa perspectiva européia, não há dúvida de que, demogra-ficamente, os judeus da Europa têm agora expressão marginal. Em alguns países – França e Grã-Bretanha – os judeus ainda têm influência considerável, mas a parcela total de sua participação no tecido da vida européia está encolhendo, dia após dia. O elemento judeu, que foi tão vital na vida e identidade da Europa durante um milênio e meio, minguou rápida e drasticamente nos últimos cem anos. A não se reverter a tendência atual, se a Europa não for repentinamente inundada por uma enorme onda de imi-grantes judeus, esse continente ficará praticamente destituído de seu elemento judaico, no final deste século. Aqui e acolá irá existir uma “reserva natural” de judeus, aqui e acolá um tipo qualquer de gueto. Mas, de modo geral, a Europa do século XXII será um continente virtualmente sem presença judaica.
De Rashi a Freud
Trata-se de um panorama praticamente incompreensível. Desde a época em que a Europa se tornou um continente cristão, sua vida foi entrelaçada com a dos judeus. Entre Rashi e Heine, Spinoza e Rothschild e entre Mendelssohn e Marx, Kafka e Freud, é impossível descrever-se a história judaica sem a Europa, da mesma forma como é impossível falar da cultura européia sem os judeus. Pois desde que os judeus foram para o exílio e desde o batismo de Clóvis, o continente era, de fato, o maior território da diáspora judaica.
Apesar de a civilização hebraica ter-se antecipado à euro-cristã em mais de mil anos, a Europa cristã foi, no final das contas, uma mãe hospitaleira para os judeus. Foi dentro de seu útero geocultural que eles viveram, foram perseguidos e se edificaram. Durante a maior parte do segundo milênio, os judeus viveram dentro e diante de um contexto europeu. Tanto a auto-definição como judeu e a existência histórica concreta, ao longo desse longo período, envolveram uma relação profunda, exigente e durável com a Europa.
A possibilidade de que tudo isso desapareça, a possibilidade de que não haja mais judeus no Marais de Paris, ou no gueto de Roma, ou no pátio da sinagoga de Amsterdã, é verdadeiramente desoladora. A possibilidade de que, no futuro relativamente próximo, não haja mais alunos e acadêmicos que possuam a identidade judaica de “o Outro” na Sorbonne, em Cambridge e em Oxford, é um acontecimento cultural inconcebível.
No entanto, de forma silenciosa, consistente e invisível, essa possibilidade vai-se concretizando. À exceção da Alemanha, onde tem aumentado a proporção de judeus, e da França, que nas últimas gerações recebeu uma importante transfusão de sangue na forma de centenas de milhares de pessoas que para lá emigraram das colônias da África do Norte, a população judaica vem passando por um rápido declínio em praticamente todos os outros países da Europa central e ocidental. Não se trata apenas da Polônia, onde menos de cinco mil pessoas restaram de um contingente de três milhões. Não se trata apenas da Holanda, onde de cento e cinqüenta mil restam apenas trinta mil, nem da Áustria, que hoje possui nove mil judeus de um total, outrora, de duzentos e cinqüenta mil.
A situação na Grã-Bretanha é particularmente grave: desde a década de 1960, perdeu cerca de um terço de sua população judaica. Apesar de uns poucos israelenses terem emigrado para o Reino Unido, nos últimos trinta anos sua população judaica caiu de cerca de 410.000 para 275.000. Portanto, não surpreende o fato de que os poucos jornais judaicos europeus que ainda sobrevivem sejam lidos como se fossem longas colunas de obituários. Acaba de ser fechada uma escola judaica. Morreu o último schochet (abatedor de carne casher) que ainda existia. E eis que aqui estão eles – em uma série de pequenas comunidades judaicas onde você pode chamá-los nominalmente – “os últimos judeus”. Os últimos judeus da Romênia. Os últimos judeus da Bulgária. Chegaram ao fim da linha.
Uma nação desaparecida
Três causas distintas e não relacionadas entre si respondem pelo esvaziamento de judeus da Europa – o sonho americano, a tenacidade nazista e a visão sionista. Iniciado em 1880, o sonho americano enfeitiçou mais de 2,5 milhões de judeus a deixar a Europa e, com o passar dos anos, esse número chegou a cinco milhões. Durante esses mesmos cento e vinte anos, a visão sionista atraiu mais de dois e meio milhões de judeus, que hoje somam três milhões.
No entanto, a tenacidade nazista superou esses dois processos – a indústria da morte criada pelo nazismo, que funcionou no centro da Europa entre janeiro de 1942 e abril de 1945, fez um excelente uso dos recursos organizacionais deste continente e do senso europeu de ordem e das linhas das estradas de ferro trans-européias para exterminar mais da metade de dez milhões de judeus europeus que, até o final da década de 1930, ainda acreditavam que a Europa fosse o seu lar.
Entretanto, se olharmos um pouco mais em profundidade, se analisarmos o ocorrido em uma perspectiva mais ampla, é impossível não ver que as três diferentes vertentes que levaram ao desaparecimento da maioria dos judeus da Europa no século XX estavam intrinsecamente entrelaçadas. Em última análise, tanto a emigração em massa à América quanto o movimento em grande escala em direção à Palestina foram manifestações de uma fuga da Europa. Bem no fundo, foram ações gigantescas de resgate, não necessariamente planejadas, que se originaram na crescente conscientização de que o período da diáspora européia chegava ao fim. No início do século passado, ninguém poderia sonhar com a “carga viva” que a Europa iria despachar em seus vagões de carga menos de cinqüenta anos mais tarde. Ninguém poderia ter concebido os picos tecnológicos de engenharia genética que a Europa iria atingir nos então ainda desconhecidos campos de Auschwitz e Dachau e Treblinka.
No entanto, entre 1880 e 1940, muitos judeus intuíram que a sua mãe-terra estava, pouco a pouco, enlouquecendo. Entenderam que essa grande mãe, a Europa, que lhes havia protegido de uma forma ou de outra por mais de mil anos, já não mais os podia suportar. E, sendo assim, não havia como não entender o estranho brilho em seus olhos: era o implacável olhar de Medéia.
O erro de Dreyfus
O jovem correspondente do Neue Freie Presse entendeu isto por obra de algo mais do que intuição. Quando irrompeu o caso, ele pensou que o capitão fosse culpado. Em suas matérias enviadas a Viena, escreveu que o Capitão Dreyfus, aparentemente, tinha traído seu país. No entanto, em dezembro, ele começou a mudar de idéia. A militância da campanha da mídia anti-semita fez ferver o seu sangue. No entanto, foi apenas em janeiro, na manhã de 5 de janeiro de 1895, quando ele pisou naquele lugar, sob aquele céu pesado, que, de repente, percebeu o brilho do olhar de Medéia nos olhos da Mãe Europa. Foi apenas quando ele adentrou no pátio sombrio da École Militaire, a academia militar da República Francesa das luzes da cultura, que ele subitamente percebeu a extensão do poder que jazia enroscado nas profundezas do continente progressista que ele tanto amava e ao qual tanto aspirava pertencer.
Quatro anos mais tarde, em carta a Arthur Schnitzler, ele escreveria: “O Caso Dreyfus representa mais do que um erro da justiça. Representa a aspiração da grande maioria da nação francesa de condenar um judeu e de condenar todos os judeus na pessoa daquele judeu. Morte aos judeus, grunhia o populacho enquanto eram arrancadas as condecorações do peito do capitão. Onde? Na França. Na moderna, culta, esclarecida e republicana França.
Morte aos judeus foi o que, de fato, ocorreu. E ocorreu precisamente após caírem as paredes do gueto, precisamente após a modernidade européia ter oferecido aos judeus um lugar em seu seio, precisamente após terem os pró-prios judeus se permitido pôr abaixo suas antigas muralhas protetoras e matar as saudades da Europa e acorrer a suas bibliotecas e universidades e salas de concertos. Precisamente após terem eles próprios se tornado os grandes consumidores e os grandes produtores de sua cultura, aqueles que empunhavam bem alto a bandeira do progresso.
Pois, exatamente com o mesmo ímpeto com que a alma desses forasteiros semitas ficou deslumbrada por tudo o que era belo e sublime nas obras da Mãe Continente, essa mãe lhes fechou os portões de seu coração materno. Não por completo, é claro, pois a Grã Bretanha não cedeu, colocando sua vida em risco, e, em todo o continente cristão, houve também quem se arriscasse, mesmo nos dias mais negros, para proteger o “Outro”, os perseguidos. Mas, no final de tudo, ainda assim, a mãe matou seus filhos. Em uma seqüência de violentos acontecimentos e incontroláveis manifestações de revulsão – que se iniciaram cerca de uma década e meia antes de Dreyfus e que chegaram a seu ápice cinco décadas depois dele – a Europa tentou extirpar suas raízes judaicas. A Europa fez com que sua população judaica minguasse antes do Holocausto, durante o Holocausto e após o Holocausto, também. Tão intenso foi este processo que, hoje, o número de judeus na Europa está muito aquém da linha vermelha necessária para manter uma massa crítica demográfica – de modo a, por si só, poder preservar o judaísmo europeu como minoria sustentável.
Portanto, agora, com a Europa pendendo cada vez mais para a união, por um lado, enquanto, por outro, os especialistas dizem que está vivenciando um ataque espasmódico de anti-semitismo como não se via desde a 2a. Guerra Mundial, não mais pode haver dúvidas sobre qual foi o momento decisivo. Não foi Auschwitz, nem foi Treblinka e nem Dachau - foi o pátio da École Militaire. Não foi o caso específico do nazismo alemão, mas a patologia européia generalizada sobre o judeu.
O fato é que com o gelo da culpa pelo Holocausto agora começando a derreter, as sujas águas de antanho novamente se fazem visíveis. E retorna, também, o antigo fogo. Desta vez, brilha não apenas nos olhos do populacho e nos skinheads da direita – desta vez relampeja nos olhos dos intelectuais e jornalistas e destacados comentaristas da televisão – os novos porta-vozes do novo iluminismo europeu.
Moeda aviltada
A moeda única, o euro, entrou em circulação a 1º de janeiro e visa ajudar a evitar a guerra. Destina-se a salvar a Europa de si própria e de seu passado. Sob este ponto de vista, suas intenções são nobres. No entanto, precisamente por ser esse o caso, não mais é possível ignorar o fato de que, em sua caminhada à união, esta Europa não conta com um Benjamin Disraeli, nem com um Leon Blum, muito menos com um Albert Einstein. Esta Europa é uma entidade política, econômica e cultural com uma presença judaica que rapidamente se evapora e com um futuro judeu destituído de esperança. Nem tampouco podemos esquecer de que a Europa – enquanto Europa – nunca assumiu sua responsabilidade.
Nunca se preocupou em cultivar os mesmos sentimentos de culpa perante as vítimas do anti-semitismo da forma como estão forjando suas relações com as vítimas do colonialismo. Durante certo tempo, os alemães assumiram a responsabilidade por seus atos. Os espanhóis, por seu lado, assumiram sobre seus próprios ombros uma culpa, que foi muito longe no tempo, pelo que seus bispos e cardeais e monarcas católicos fizeram aos judeus, há mais de quinhentos anos. Mas a Europa como entidade coletiva nunca se engajou em fazer a sua total mea culpa moral – nunca chegou a termo com a maciça transferência de seus judeus, a maior entre todas as transferências, perpetrada em nosso século XX. Até hoje, a Europa se recusa a admitir o fato de que, por esse e por outros meios, conseguiu esvaziar seus antigos bairros judeus de praticamente todos os seus moradores.
Até hoje, a Europa se recusa a lidar com o fato de que como uma civilização única e abrangente – que agora transforma sua unidade cultural em ferramenta de unidade política – este continente carrega a responsabilidade por ter criado uma situação na qual seus “Outros” históricos não podiam continuar existindo.
Cinqüenta e seis anos após as cinzas dos crematórios se terem extinguido, os supostos Estados Unidos da Europa ainda não admitiram que a parcela de responsabilidade que têm perante aos judeus não é nem um pingo menor do que a responsabilidade que têm os Estados Unidos perante os descendentes dos índios americanos e os escravos negros. O continente que deseja ser conhecido como exemplo de moralidade e iluminismo não admite que, no que tange o povo judeu (já praticamente apagado de seu território) e sua civilização (praticamente erradicada), este continente arcará com uma responsabilidade moral por muitas e muitas gerações futuras.
A Torre Eiffel surge envolta em sinistra bruma. Naquela manhã de 1895, tinha apenas sete anos de construída, monumental remanescente em aço da grande Exposição do Centenário, um símbolo do século de ferro que estava para ser recebido – englobando tudo o que de mais moderno o homem era capaz de fazer, tudo a que aquele homem euro-moderno podia aspirar.
Portanto, Theodor Herzl estava equivocado – o Estado Judeu não foi fundado na Basiléia. O Estado Judeu foi fundado aqui, aos pés da Torre Eiffel, no pátio da École Militaire. O Estado Judeu é o fruto direto e necessário daquele fogo que ardia nos olhos europeus no pátio da École Militaire. Morte aos judeus! Aquela antiga, enigmática, obstinada e empedernida patologia européia sobre a vida e sobre a morte dos judeus.