Bolonha, 1858. Oficiais dos Estados Papais batem à porta de uma família judia. Nas mãos, têm uma ordem da Inquisição: levar consigo Edgardo, um dos oito filhos de Momolo e Mariana Mortara. A alegação: o menino teria sido batizado por uma empregada da casa, e as leis dos Estados Papais proibiam que crianças cristãs vivessem com famílias de outras religiões, mesmo que fossem seus próprios pais.
O Caso Mortara, como passou a ser conhecido, não foi um acontecimento único e tampouco raro: o batismo clandestino e o “sequestro legalizado” de crianças judias ocorriam com relativa frequência no século 19. Era o pesadelo das famílias judias que viviam nos Estados Papais sob a direta autoridade dos sumos pontífices católicos. Entretanto, ao contrário de outros casos semelhantes, o de Edgardo tornou-se um escândalo internacional e provocou a indignação tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Na Itália, insuflou os nacionalistas que buscavam a unificação do país.
A ação da Igreja gerou protestos não só de organizações judaicas, mas também de políticos e intelectuais de destaque do Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Áustria, França e Itália.
Steven Spielberg pensou em fazer um filme sobre o assunto, mas o projeto não se concretizou. O Caso Mortara foi levado às telas por outro talentoso diretor, o italiano Marco Bellocchio, em “Rapito” (“Sequestrado”, em tradução literal), que estreou em 2023 no Festival de Cannes. No Brasil, o título é “O sequestro do Papa”. A obra retrata a intolerância religiosa, o poder e o antijudaísmo da Igreja Católica, assim como da Inquisição, no século 19. Em entrevista, Bellocchio salientou que não fez o filme para defender uma posição política ou posicionar-se contra a Igreja: “A questão central é o sequestro de uma criança em nome de uma religião”.
O pano de fundo
No século 19, os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, de que todo homem tem certos direitos básicos, alastraram-se pela Europa. A Revolução de 1848, um levante liberal, abalou monarquias absolutistas por todo o continente, entre as quais os Estados Papais, país independente governado pelo sumo pontífice católico desde o século 8.
Ao ser eleito, Pio IX demostrou uma certa tendência liberal que não sobreviveu aos ventos revolucionários de 1848. Em novembro desse ano, o povo de Roma rebelou-se e foi às ruas para reivindicar democracia e reformas. Em fevereiro de 1849, após a deposição do Papa, que fugiu e se abrigou na fortaleza de Gaeta, instituiu-se um regime republicano. Em julho, porém, em resposta aos apelos do pontífice, o exército de Napoleão III, imperador francês, entrou em Roma e recolocou Pio IX no trono.
Cada vez mais intolerante e reacionário, o Papa repudiou publicamente a democracia e o Estado italiano, além de negar aos não católicos o direito à liberdade religiosa. Adotou ainda uma política, segundo um historiador, “falsa, arrogante e cruel” em relação aos judeus, que, como a maioria dos conservadores e antissemitas da época, associava ao radicalismo e à revolução, além de responsabilizá-los, em grande medida, pela instituição da República Romana de 1849. Em vista disso, puniu-os com represálias e leis severas. Em um discurso de 1871, chamou de “cães” os judeus de Roma e comentou sobre eles: “Incomodam-nos em todos os lugares”.
O caso Mortara
Em 1858, a cidade de Bolonha ainda fazia parte dos Estados Papais, e lá viviam poucos judeus. Na noite de 23 de junho, começou o pesadelo para a família Mortara. Um dos dois policiais que bateram na porta explicou a Momolo que tinha ordens para ver seus oito filhos. Mariana entrou em pânico, pois, em Reggio e Módena, onde crescera, não era raro as autoridades aparecerem à noite e exigirem a entrega de alguma criança judia supostamente batizada.
“Signor Mortara, lamento informar que o senhor é vítima de traição,” disse o sargento, “tenho ordens da Inquisição para levar Edgardo”. O menino de seis anos de idade (completaria sete em agosto) havia sido, supostamente, batizado clandestinamente nos primeiros meses de vida. Para Igreja, a administração do batismo, mesmo que realizada por leigos e sem o consentimento dos pais, era válida e, de acordo com a lei dos Estados Papais, a criança devia ser criada como cristã. A família entrou em desespero e pediu que o menino só fosse levado no dia seguinte.
Naquela mesma noite, o irmão de Mariana, Angelo Padovani, conseguiu ser recebido pelo Padre Felleti, o Inquisidor de Bolonha, na esperança de convencê-lo de que a família Mortara era vítima de um erro. Impassível, o clérigo afirma haver provas do batizado secreto do menino, que então seria católico e, como tal, não podia viver em casas de judeus. Edgardo foi levado no dia seguinte apesar dos apelos do pai e dos gritos de desespero da mãe.
Os Mortaras descobriram que a ordem de “sequestrar” o menino se devia ao testemunho à Inquisição de uma funcionária doméstica, Anna Morisi, que havia trabalhado na casa da família. Em 1815, entre as antigas restrições da Igreja readotadas para os judeus nos Estados Papais, estava a proibição de ter empregados cristãos, a qual, no entanto, só era imposta de maneira esporádica. Procurada pelos irmãos de Mariana, Anna confirmou ter batizado Edgardo, que estava doente e corria perigo de vida (fato desmentido pelo médico que cuidava do menino), porque “queria que o bebê fosse para o paraíso e não para o limbo”.
O casal Mortara soube então da ida de Edgardo para a Casa dos Catecúmenos, fundada em Roma no século 16 para efetuar conversões. Mantida por recursos provenientes de impostos pagos pelas comunidades judaicas dos Estados Papais, a instituição era um lugar no qual se transformavam judeus em católicos, motivo de grande orgulho para a Igreja.
Restava aos Mortara uma única esperança: encontrar alguém com autoridade para anular a ordem da Inquisição. Desesperado, Momolo pediu ajuda aos líderes do gueto de Roma, os mais próximos de Edgardo e os únicos judeus italianos com acesso ao próprio Papa. O secretário da comunidade judaica prometeu ajudá-lo.
Passaram-se várias semanas até que Mariana e Momolo conseguissem permissão do Vaticano para ver Edgardo. Em agosto, o casal foi para Roma. Durante as visitas, na Casa dos Catecúmenos, os pais não podiam ficar sozinhos com o filho. Em um dos breves momentos de privacidade, a criança confidenciou à mãe: “à noite, recito o Shemá Israel” (Ouça Israel: o Senhor é nosso D’us... Deut. 6:4). Ao pai, revelou “que, ao ser levado de sua casa, chorava e pedia sua mezuzá, que sempre usava no pescoço. Em vez disso, foi-lhe oferecido um medalhão com uma cruz, que ele recusou”.
No entanto, após algum tempo, os judeus de Roma ouviram novos boatos: Edgardo teria sido batizado “novamente” em uma cerimônia suntuosa, estaria feliz e adaptava-se à nova vida.
O caso torna-se uma causa célebre
As notícias do “sequestro” espalharam-se por toda a Itália com rapidez. Os judeus dos Estados Papais, onde a Inquisição ainda tinha poder, identificavam-se com a tragedia dos Mortaras. Após a experiência da igualdade civil durante a ocupação francesa e a recente emancipação dos correligionários no Piemonte, na França e no Reino Unido, reagiram com indignação à história de Edgardo.
O Caso Mortara logo ganhou repercussão internacional. Divulgado com destaque pela imprensa, tornou-se assunto de reuniões sociais e políticas. Os judeus de toda Europa mobilizaram-se.
No Piemonte, parte do Reino da Sardenha e centro do movimento pela unificação italiana, tanto o governo quanto os jornais aproveitaram o caso para reforçar as acusações de que os Estados Papais eram “governados por obscurantistas medievais dos quais precisavam ser libertados”. Na Sardenha, o conde Camillo Cavour, primeiro-ministro e idealizador da unificação italiana, também escreveu cartas em que condenava o sequestro. Pio IXtampouco atendeu os pedidos de Napoleão III, cujas tropas guarneciam Roma para proteger os Estados Papais dos nacionalistas que lutavam pela unificação da Itália.
A Santa Sé foi, inutilmente, pressionada pelos Rothschilds, que lhe haviam concedidos vultosos empréstimos. A Alliance Israélite Universelle escreveu uma carta de apoio a Momolo. Em uma missão que acabou em fracasso total, Sir Moses Montefiore foi a Roma em 1858 para interceder pelos Mortaras junto ao Papa, que, no entanto, permaneceu irredutível. Ao se encontrar, em 1859, com uma delegação de judeus de destaque, Pio IX disse-lhes: “Não me importa o que o mundo pensa”. Em outro encontro, trouxe consigo Edgardo para mostrar que a criança estava feliz sob seus cuidados. “Eu tinha o direito e o dever de fazer o que fiz por este menino e o faria de novo se fosse preciso”.
O Inquisidor é levado à Justiça
Em junho de 1859, terminou em Bolonha o domínio papal, antes garantido pela presença de tropas austríacas. O representante do sumo pontífice, o Cardinale Legato, e os austriacos tiveram que deixar a cidade. É formado então, por liberais moderados, um governo provisório que decide pela anexação de Bolonha ao Reino da Sardenha.
Em janeiro de 1860, o padre Feletti foi preso sob suspeita de “facilitação” do sequestro de Edgardo, o que trouxe a Momolo a esperança de provar a ilegalidade da ordem da Inquisição e conseguir o filho de volta.
Julgado por um tribunal civil, o sacerdote alegou, em sua defesa, que “seguia ordens” e só usou meios “suaves” de persuasão para obter de Anna Morisi o relato do batizado de Edgardo. Chamada a depôr, a doméstica afirmou que, após essa “revelação”, recebeu do inquisidor uma quantia em dinheiro. Feletti foi considerado culpado, mas posto em liberdade pouco tempo depois. Embora essa condenação tenha representado uma vitória moral para os judeus, nada mudou para os Mortaras, que continuaram a lutar e a rezar pela volta do filho ao seio da família e à sua religião, apesar do receio de que, preso na Casa dos Catecúmenos, “o filho capitularia perante seus captores”.
As duas versões
Há duas interpretações para o caso em questão. Segundo a judaica, a liberdade e os direitos de uma família unida e feliz foram feridos pelo fanatismo religioso do Vaticano. O sequestro de Edgardo arruinou emocional e financeiramente os Mortaras. Mariana quase enlouqueceu de dor, e Momolo abandonou os negócios para tentar reaver o filho. Sem o respaldo dos Rothschilds, a família teria passado muita necessidade.
Para a Igreja, a história de Edgardo era de “redenção”. Apesar de acuado pelos protestos internacionais, o Papa não tinha dúvidas sobre a superioridade do Cristianismo e a proteção divina só desfrutada pelos batizados, e o dever de criar Edgardo, que considerava um filho, como cristão. Segundo a versão do Vaticano, a entrada do menino numa Igreja pela primeira vez na vida foi um acontecimento “prodígioso”. O garoto logo se interessou pelos ritos católicos, aprendeu a rezar e a fazer o sinal da cruz. Em suas memórias, Edgardo, afirmou que se tornara católico convicto e via o Papa como pai.
A verdade é que, com apenas seis anos de idade, Edgardo foi levado para a Casa dos Catecúmenos, onde perdeu contato com seu povo, tradições, leis e herança espiritual. Impedido de ver os pais a sós, o menino era submetido diariamente a uma doutrinação cristã. O maior temor de sua família, que “o filho capitularia perante seus captores”, concretizou-se.
O fim dos Estados Papais
O caso Mortara serviu para fortalecer a visão já predominante dentro e fora da Itália de que o governo do Papa sobre uma grande região do centro da península itálica era um anacronismo e uma afronta aos direitos humanos em uma era de liberalismo e racionalismo. Ajudou ainda a persuadir a opinião pública, tanto no Reino Unido quanto na França, a apoiar que o Reino da Sardenha entrasse em guerra com os Estados Papais em 1859.
O conflito terminou em 20 de setembro de 1870 com a capitulação de Roma ante as forças italianas, das quais fazia parte um dos irmãos de Edgardo, Riccardo, tenente da infantaria piemontesa condecorado por sua coragem. Concluía-se, assim, a Unificação italiana. Em seguida, instituiu-se o Reino da Itália sob o governo do rei Vittorio Emanuele II.Os Estados Papais deixaram de existir como entidade política soberana, e as leis que haviam permitido “sequestrar” Edgardo foram abolidas.
Momolo e Mariana tentaram novamente recuperar o filho, então com 18 anos. Mas, ele recusou-se retornar ao lar e declarou a intenção de permanecer católico. Inconformado, o novo comissário da polícia de Roma foi ao convento de San Pietro in Vincoli para falar com Edgardo, que, mais uma vez, se recusou a voltar para o seio familiar. Para evitar novas pressões, o rapaz deixou a cidade, atravessou a fronteira austríaca e refugiou-se na abadia de Novacella.
Na França, o jovem ingressou na ordem agostiniana. Aos 23 anos, foi ordenado padre com grandes honras e adotou o nome Pio. Como missionário, foi enviado a cidades como Munique, Mogúncia e Breslávia para pregar aos judeus. O Papa Pio IX, até sua morte, em 1878, sempre considerou Edgardo seu próprio filho.
A vida dos Mortara continuou a ser marcada por tragédias. Acusado de assassinar uma empregada da casa, Rosa Tognazzi, Momolo foi preso injustamente e, em 1871, quando foi finalmente inocentado, morreu. Edgardo não compareceu ao enterro do pai.
Quando voltou à Itália para uma série de conferências, Edgardo restabeleceu o contato com os familiares, mas, em todos os encontros com eles, tentava, em vão, convertê-los. Mesmo assim, reconciliou-se com a mãe, mas não com os irmãos. Em 1895, informado de que Mariana estava muito doente, foi até ela e, mais uma vez, tentou convencê-la a se converter ao Cristianismo. Contudo, a mãe recusa como o próprio Edgardo admite em suas memórias. “Nasci judia e vou morrer judia”, ela diz ao filho.
Em 1906, Edgardo retirou-se para a Abadia de Bouhay, em Bressoux, na Bélgica, onde morreu em 1940.
O Caso Mortara na atualidade
Até 1997, quando David L. Kertzer publicou “O Sequestro de Edgardo Mortara” e trouxe-o de volta à atenção do público, essa história era pouco conhecida. Após isso, virou tema de uma peça, Edgardo Mine, de Alfred Uhry.
O caso voltou ao centro dos debates em 2000, quando grupos judeus e outros defensores dos direitos humanos, liderados por descendentes da família Mortara, protestaram contra a beatificação de Pio IX. Elena Mortara, tataraneta de uma das irmãs de Edgardo, disse estar “horrorizada com a ideia de que a Igreja Católica queira santificar um Papa que perpetuou tal ato de intolerância inaceitável e abuso de poder”. Para ela, Edgardo é um caso exemplar de “condicionamento”: “Ele foi alvo de uma violência psicológica, existencial e religiosa sem precedentes”.
As lideranças judaicas italianas, bem como vários acadêmicos católicos, observaram que a canonização de Pio IX poderá minar a boa vontade gerada pelas recentes tentativas do Vaticano de expiar a história de antissemitismo da Igreja.
Bibliografia
Kertzer, David I., The Kidnapping of Edgardo Mortara. Vintage Books Ed., 2008. ebook Kindle