A 5 de novembro, os Estados Unidos realizarão uma das eleições presidenciais mais concorridas de sua história, e a comunidade judaica local intensifica debate sobre opção entre a democrata Kamala Harris e o republicano Donald Trump, em meio ao maior desafio geopolítico a Israel desde 1948, iniciado com o ataque terrorista do Hamas a 7 de outubro, e num cenário de avanço global do antissemitismo.
Cerca de 2,5% da população dos EUA, a comunidade judaica vai escolher entre uma tradição histórica, de apoiar majoritariamente o Partido Democrata, ou endossar um candidato que se apresenta como o mais enfático defensor de Israel a ocupar a Casa Branca, em seu mandato entre 2017 e 2021.
O republicano Donald Trump implementou medidas como a transferência da embaixada norte-americana de Tel Aviv a Jerusalém e o reconhecimento da soberania israelense nas colinas do Golã. Comandou a saída norte-americana, em 2018, do tratado nuclear firmado, ao lado de outras potências globais, com Teerã em 2015 e a implementação da “política de pressão máxima” sobre o regime teocrático iraniano. E, em 2020, liderou a assinatura dos Acordos de Abraão, movimento histórico, com endosso da Arábia Saudita, e responsável pela normalização dos laços entre Israel e quatro países árabes: Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão.
Sob a influência do genro, Jared Kushner, Trump desenhava um cenário a ter como um de seus principais objetivos o estabelecimento das relações diplomáticas entre Israel e Arábia Saudita. O passo audacioso encaixa-se na ambição saudita de construir um Oriente Médio mais voltado ao desenvolvimento econômico, a fim de diminuir a dependência do petróleo, e com menos focos de beligerância, estratégia ameaçadora para o regime iraniano, empenhado em manter situações de guerra, a fim de ampliar sua influência desestabilizadora na região.
Ao lançar o ataque terrorista de 7 de outubro, o Hamas vislumbrava, com seu aliado Irã, entre outros objetivos, mergulhar o Oriente Médio em tragédias bélicas e evitar o avanço do processo conhecido como Acordos de Abraão. Buscava também, portanto, sabotar o processo de normalização dos laços entre Israel e Arábia Saudita.
Joe Biden, o sucessor de Trump, também tentou avançar o processo diplomático médio-oriental, de olho, sobretudo, na aproximação entre sauditas e israelenses, mas seus esforços fracassaram devido a ações do governo iraniano e de seus aliados regionais, autointitulados “Eixo da Resistência”.
Se voltar à Casa Branca, o republicano Trump sugere retomar o projeto de “pressão máxima” sobre o Irã, sobretudo por meio de sanções econômicas, em contraste com a estratégia de Joe Biden, que tentou renegociar com Teerã o acordo nuclear assinado em 2015 e abandonado pelos EUA três anos depois.
Além de falar em “todos os esforços para trazer paz ao Oriente Médio”, Trump prometeu enfrentar as ondas de antissemitismo, em particular nas universidades norte-americanas. O tema ocupou espaço relevante na convenção do Partido Republicano, realizada em julho.
“O Presidente Trump vai trazer de volta lei e ordem para que os judeus americanos possam novamente usar a quipá e andar nas ruas sem medo”, discursou, na convenção, Matt Brooks, principal dirigente do Comitê Judaico Republicano. “O Presidente Trump vai parar as turbas nos campi universitários para que os estudantes judeus se sintam seguros quando forem às aulas”.
Em meados de agosto, durante comício em Wilkes-Barre, na Pensilvânia, o candidato republicano declarou “nunca ter havido um tempo tão perigoso” para ser judeu nos EUA desde o Holocausto. E a campanha também lançou a iniciativa “Vozes Judaicas para Trump”, listando apoiadores e medidas pró-Israel.
Desde o começo de sua trajetória política, Trump se apoia politicamente em setores mais conservadores e mais religiosos da sociedade norte-americana, numa tendência a se observar também na comunidade judaica. Ou seja, no âmbito comunitário, seus eleitores tendem a se identificar, do ponto de vista ideológico, com o conservadorismo. Do outro lado do espectro político, com posições descritas como “progressistas” ou “liberais”, o Partido Democrata precisa se equilibrar entre uma posição de vínculos com Israel e laços históricos com a comunidade judaica com a crescente influência, nas fileiras partidárias, de grupos esquerdistas, empenhados em criticar o Estado Judeu, muitas vezes com o tom do antissemitismo e a fazer ecoar a infame e antissemita expressão “From the river to the sea, Palestine will be free” (Do rio ao mar, Palestina será livre: um slogan que pressupõe a inexistência de Israel).
O presidente Joe Biden, apesar do suporte a Israel nos últimos meses, também atravessou momentos de atritos no relacionamento com o governo israelense, tendência a provavelmente se intensificar num eventual mandato liderado por Kamala Harris.
Na comparação com Joe Biden, a vice-presidente se mostrou também mais flexível às demandas da chamada esquerda do Partido Democrata e, embora tenha apoiado Israel, intensificou o tom de críticas a ações israelenses. E há o temor de como os grupos anti-Israel encastelados no partido possam ampliar influência num governo liderado por Kamala Harris.
Apesar dos desafios e das dúvidas, prevalece a previsão de a manutenção da maioria do voto judaico no Partido Democrata, destacando-se dúvidas sobre o patamar desse apoio. Em 2020, Trump obteve 30%, contra 68% de Biden, segundo dados do site the jewishvirtuallibrary.
A tabela mostra ainda que, em 2016, Trump contabilizou 24% e Hillary, 71%. O ápice do voto judaico nos democratas se verificou nas eleições de 1940 e 1944, quando Franklin Delano Roosevelt alcançou a impressionante marca de cerca de 90%. Ainda de acordo com o site, desde 1968, a média do voto judaico no Partido Democrata registrou 71%, enquanto os republicanos ficaram com 26%.
Razões históricas explicam a adesão majoritária da comunidade judaica ao Partido Democrata, que tem como uma de suas bases principais de apoio minorias como católicos, afro-americanos, hispânicos, asiáticos e judeus. No final dos anos 1960, o movimento por direitos civis, liderado por Martin Luther King Jr. (1929-1968) contou com participação judaica relevante, na luta contra o racismo, contra discriminações e contra o antissemitismo.
Mas laços entre Partido Democrata e comunidade judaica se estremeceram recentemente também com os debates sobre quem ocuparia a vice-presidência na chapa liderada por Kamala Harris. Judeu, o governador Joe Shapiro, da Pensilvânia, despontou como um dos favoritos até a escolha do governador de Minnesota, Tim Walz. Antes do anúncio oficial, Joe Shapiro foi alvo de uma avalanche de ataques antissemitas oriundos de setores esquerdistas do Partido Democrata, devido a seus laços e apoio a Israel.
Kamala Harris, ao apontar Walz para compor a chapa, enfrentou também acusações de que teria preterido Joe Shapiro para não alienar a ala esquerdista do partido. São tempos muito diferentes de 2000, quando Joe Lieberman (1942-2024) candidatou-se a vice-presidente, na chapa liderada por Al Gore e se tornou o judeu a mais perto chegar à Casa Branca.
Jaime Spitzcovsky colaborador da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.