Ao longo dos seus 73 anos de independência, Israel testemunhou diferentes momentos em suas relações com Moscou e com Kiev, da cooperação a enfrentamentos, dos boicotes a diálogos. E, em meio à tragédia da guerra entre Rússia e Ucrânia, o primeiro-ministro Naftali Bennett protagonizou um momento de ação diplomática no começo de março, buscando mediar uma solução negociada para o trágico conflito, com a invasão de território ucraniano por tropas russas.
Bennett, a 5 de março, esteve no Kremlin, depois falou ao telefone com o líder ucraniano, Volodymir Zelensky, e, em seguida, voou a Berlim, para reunião com o premiê alemão, Olaf Scholz. Dialogou também, à distância, com o francês Emmanuel Macron e, segundo vários relatos na mídia israelense, tinha coordenado a iniciativa diplomática com Washington. Enquanto o ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid, e o presidente de Israel, Chaim Herzog, condenavam com veemência a invasão da Ucrânia, Bennett buscava, ao mesmo tempo em que criticou o Kremlin, preservar algum canal de diálogo com o governo russo.
Bennett se movimentou diplomaticamente em um tabuleiro geopolítico, o da Europa Oriental, bastante conhecido dos israelenses pelos vínculos históricos, políticos, econômicos e culturais com a região. E, ao voltar aos anos de 1947 e 1948, verifica-se que a União Soviética do ditador Josef Stalin também desempenhou papel importante na criação do Estado de Israel.
“O Povo Judeu tem uma conexão com a Palestina por um longo período histórico”, discursou na ONU o embaixador soviético Andrei Gromyko quando das iniciativas, em 1947, para votação da Resolução 181, arquitetada para criar um Estado judeu e outro árabe, com o fim do mandato britânico na região. O voto soviético e de seus aliados foi favorável à criação de Israel.
O cenário global testemunhava os primórdios da Guerra Fria, modelada pela bipolaridade da disputa entre EUA e URSS. O Kremlin estimulava o processo de descolonização, de olho em ampliar zonas de influência antes dominadas por potências coloniais, como Reino Unido e França.
Com essa visão, Stalin deixou de lado as críticas bolcheviques ao Sionismo, descrito como “movimento nacionalista burguês”. O pragmatismo do Kremlin na política internacional contrastava com crescente antissemitismo implementado pela ditadura stalinista dentro das fronteiras soviéticas.
A 14 de maio de 1948, Israel declarou sua independência, em seguida reconhecida pelas superpotências EUA e URSS. Países árabes, refratários à partilha da Palestina, invadiram o Estado judeu, numa guerra que se estendeu até 1949, com a vitória israelense.
Um fator a contribuir para o triunfo de Israel foi a chegada de armas oriundas da então Tchecoslováquia, numa ação com o beneplácito do Kremlin. Rifles, morteiros e até aviões capturados pelos soviéticos na 2a Guerra Mundial passaram a fortalecer o arsenal israelense.
No entanto, a aproximação entre Moscou e Jerusalém durou pouco. A primeira embaixadora de Israel na URSS, Golda Meir, desembarcou lá em 1948, e, em suas conversas com seus anfitriões, levantou o tema de imigração de judeus para Israel. Recebeu dos comunistas um sonoro “não” como resposta.
Em 1952, um golpe militar derrubou o rei egípcio Farouk, do Egito, aliado a países ocidentais, e abriu caminho para a chegada ao poder de Gamal Abdel Nasser. O Kremlin percebeu a possibilidade de construir uma aliança com o novo regime egípcio, no epicentro geográfico e político do mundo árabe. E a opção implicou se afastar de Israel.
Também no começo dos anos 1950, os estertores do regime stalinista corresponderam a um aumento do antissemitismo na União Soviética. Líderes do Comitê Judaico Antifascista foram presos e mortos. No chamado “Complô dos Médicos”, montou-se uma farsa para prender profissionais, em sua maioria judeus, acusados de envenenar líderes soviéticos, a mando de serviços secretos dos EUA e do Reino Unido.
Em 1956, três anos após a morte de Stalin, o líder soviético Nikita Khruschev denunciou os crimes de seu antecessor no 20º Congresso do Partido Comunista. Buscou flexibilizar a ditadura soviética, porém manteve, na política externa para o Oriente Médio, o alinhamento prioritário com países árabes.
A Guerra dos Seis Dias, em 1967, correspondeu a um divisor de águas nas relações entre Jerusalém e Moscou, pois elas atingiram seu patamar mais crítico. O Kremlin, principal fornecedor de armas ao Cairo e a Damasco, rompeu relações diplomáticas com Israel após as derrotas de Egito e Síria. E intensificou apoio a inimigos do Estado judeu, incluindo organizações terroristas.
No final da década de 1960, após a derrota na Guerra dos Seis Dias, Gamal Abdel Nasser deslanchou a chamada “guerra de desgaste” contra Israel, composta por ataques de artilharia, aviação e incursões terrestres, mas sem desaguar num conflito de larga escala. E os soviéticos apoiavam o regime nasserista, com envio de assessores militares e fornecimento de armas.
O crescente envolvimento dos militares do Kremlin preocupava o governo israelense, que resolveu, por meio de uma batalha aérea, enviar um duro recado a Moscou: não aceitaria o avanço da presença de pilotos soviéticos. A 30 de julho de 1970, após sinal verde da primeira-ministra Golda Meir, aviões israelenses entraram em espaço aéreo egípcio, e foram em seguida interceptados por caças da URSS. De um lado, 12 Mirages e 4 Phantoms israelenses. De outro, 24 MiG-21 soviéticos. A ousada operação, denominada Rimon 20, terminou em vitória de Israel, que não perdeu nenhuma aeronave, enquanto foram derrubados cinco caças de Moscou.
À época, em plena Guerra Fria, URSS e Israel optaram por não divulgar o episódio, temerosos de uma escalada militar. Moscou, de qualquer forma, acusou o golpe e, diminuiu o apoio a Gamal Abdel Nasser que, pouco tempo depois, optou por encerrar a “guerra de desgaste”.
O final da Guerra Fria se acelerou com a chegada ao Kremlin de Mikhail Gorbatchov, em 1985. Ciente da falência do sistema soviético, ele buscou recuperá-lo com reformas chamadas de Perestroika, na área econômica, e Glasnost, no plano político.
Gorbatchov reconhecia a incapacidade de Moscou, falida economicamente, em manter a disputa global com os EUA, em particular na corrida armamentista. O Kremlin precisava concentrar esforços para tentar salvar uma economia em frangalhos.
Em 1989, caiu o Muro de Berlim, ícone principal da Guerra Fria e do período histórico marcado essencialmente pela divisão do cenário global nos blocos pró-EUA e pró-URSS. Gorbatchov, um dos principais articuladores desse momento de transformação, recebeu em 1990 o Prêmio Nobel da Paz.
Graças à Perestroika, mudaram as relações de Moscou com Jerusalém. A imigração para Israel, fortemente reprimida nos tempos anteriores a Gorbatchov, passou a ser permitida e atingiu seu ápice em 1991, quando centenas de milhares de pessoas desembarcaram em solo israelense, oriundas da União Soviética.
Em outubro daquele ano, foram restabelecidas as relações diplomáticas, rompidas em 1967, quando da Guerra dos Seis Dias. Gorbatchov nomeou Alexander Bovin, um dos mais famosos jornalistas soviéticos, como primeiro embaixador em Israel, após 24 anos.
Bovin desembarcou em território israelense em dezembro de 1991 e serviu como embaixador soviético por apenas uma semana. É que a própria União Soviética se desintegrou, e obtiveram independência as 15 unidades que formavam o país criado a partir da revolução bolchevique de 1917.
O embaixador Bovin passou então a representar a Rússia, principal sucessora da União Soviética. Começava, em Moscou, a presidência de Boris Yeltsin, que, dois anos depois, recebia a visita do primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin.
Ao mesmo tempo, a Ucrânia, independente com o colapso soviético, implementava política de intensa aproximação com Israel. Relações diplomáticas foram formalizadas a 26 de dezembro de 1991. Como um dos reflexos dos laços entre Kiev e Jerusalém, em 2011 foi abolida a necessidade de vistos de entrada para viajantes dos dois países.
Israel implementava, a partir da década de 1990, uma diplomacia de aproximação intensa com Rússia e com Ucrânia, apoiada em laços históricos, oportunidades comerciais e o fato de os dois países europeus abrigarem importantes comunidades judaicas, enquanto a sociedade israelense passava a ter uma parcela ainda maior de habitantes de origem russa ou ucraniana.
Em 1999, Vladimir Putin assumiu o cargo de primeiro-ministro e, com a renúncia de Yeltsin, a 31 de dezembro daquele ano, passou a ocupar a Presidência. Ao longo dos seus mais de vinte anos no comando do maior país do mundo em território, Putin manteve diálogo com líderes como Ariel Sharon, Ehud Olmert e Binyamin Netanyahu.
Foi na era Netanyahu que as conversas se intensificaram, devido à influência russa em uma questão estratégica para Israel: as ambições nucleares e expansionistas do Irã.
O Kremlin mantém boas relações com Teerã, mas sinalizou também nos últimos anos o interesse em preservar seus laços com Jerusalém, pelos vínculos culturais, econômicos e por ver no governo israelense uma ponte para o diálogo com os EUA, cada vez mais complicado nos últimos anos.
Israel conta com o auxílio de Moscou para frear a influência iraniana na Síria, onde a força aérea russa controla o espaço aéreo desde sua intervenção na guerra do país árabe, em 2015, e também para conter as ambições atômicas do regime dos aiatolás. A Rússia é uma das seis potências globais signatárias do controverso acordo nuclear assinado em 2015, do qual os EUA se retiraram três anos depois, por decisão do então presidente Donald Trump.
Na Ucrânia pós-soviética, os laços com Israel se expandiram nos planos político e econômico, com, por exemplo, o país europeu se transformando, ao longo de vários anos, no principal fornecedor de trigo ao mercado israelense.
O presidente israelense, Chaim Herzog, visitou Kiev em 2021, para a inauguração de um memorial em homenagem às vítimas de Babi Yar, onde mais de 30 mil judeus foram assassinados, em 1941, pelos nazistas e colaboracionistas ucranianos. Na cerimônia, o presidente Herzog esteve ao lado de seu colega alemão, Frank-Walter Steinmeier e do ucraniano, o judeu Volodymir Zelensky.
A cerimônia ocorreu menos de um ano antes da invasão russa à Ucrânia. Em pleno século 21, a Europa volta a testemunhar as tragédias de guerras.
Jaime Spitzcovsky colunista da “Folha de S.Paulo”, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.