Hoje, todos nós conhecemos um Israel tecnológico, moderno e próspero. Seu exército é um dos mais avançados do mundo em termos qualitativos e quantitativos, tendo uma posição de superioridade militar ante todas as nações do Oriente Médio. Podemos afirmar com convicção que Israel está mais seguro hoje do que no passado e não enfrenta perigos existenciais gritantes, a não ser o programa nuclear iraniano.

Porém, em um passado não muito distante, a realidade de Israel era bem diferente. Após sua independência e o início da guerra de 1948 contra nações árabes, foi imposto à região um embargo internacional que dificultava, ao recém-criado Exército de Defesa de Israel, a compra de armamentos para lutar a guerra pela sobrevivência do novo Estado Judeu. Para tanto, os israelenses precisariam ser criativos, superando as investidas das forças aéreas egípcias e sírias, enquanto encontravam caminhos alternativos a fim de constituir uma Força Aérea capaz de impedir os inimigos de destruírem o país. Era necessário encontrar uma reação digna dos filmes de ação.

Acredito que alguns dos leitores deste artigo tenham visto o filme Argo, dirigido e protagonizado pelo ator norte-americano Ben Affleck. Ganhador do Oscar 2013 em sete categorias, inclusive a de Melhor Filme, o longa conta a história verídica de um agente da CIA, Tony Mendez, que cria toda uma produção cinematográfica e se disfarça em diretor de cinema para resgatar, em 1979, diplomatas americanos que fugiram da sua embaixada em Teerã, quando esta foi invadida e tomada por manifestantes radicais anti-Estados Unidos, após a queda do Xá Reza Pahlevi, durante a revolução islâmica no Irã. Tony viaja ao país sob domínio dos aiatolás e convence os iranianos a permitir que seu território seja usado como locação. Uma vez aprovado o início das filmagens, os diplomatas se passaram por membros da equipe técnica e, tendo em mãos falsos passaportes canadenses, conseguiram sair do Irã em segurança.

Pois saibam que o primeiro Argo foi em Israel. Sob o embargo militar de 1948, o país procurava maneiras criativas para garantir sua sobrevivência durante a guerra em andamento. A alternativa encontrada por Emmanuel Zurr, enviado do primeiro-ministro David Ben-Gurion, é praticamente inacreditável.

No verão daquele ano, Israel enfrentara com dificuldade os exércitos árabes, mais numerosos em todos os aspectos, especialmente no céu. A Força Aérea de Israel possuía apenas 10 aviões pequenos do modelo Piper, com apenas um motor, enquanto a força aérea egípcia dominava os céus da região e bombardeava Tel Aviv. Apesar das tentativas, nenhum diplomata israelense no exterior conseguiu comprar aviões por conta do impedimento internacional. Sabendo da urgência em mudar o cenário da guerra, Ben-Gurion convoca Emmanuel Zurr para uma reunião onde lhe pede que viaje à Inglaterra. Uma vez lá, ele teria que encontrar aviões militares usados na 2ª Guerra Mundial para os comprar e enviar, a qualquer preço, para Israel.

Zurr foi um dos fundadores da aviação israelense, pioneiro em abrir uma escola de pilotagem onde formaria pilotos para os grupos paramilitares judaicos Haganá e Palmach, ainda antes da fundação do Estado. Pelo fato de ter estudado na França e ter voado profissionalmente por toda a Europa, ele mantinha muitos contatos importantes no ramo da aviação. Um homem elegante, bem-vestido, fluente em francês e em alemão, Zurr conseguiu transitar pela Europa, disfarçando-se sob diversas identidades com facilidade. Na Europa, em especial na Inglaterra, havia grande quantidade de aviões sem uso, sobras da 2ª Guerra Mundial. Por conta dos seus contatos, Zurr montou um esquema para contrabandear aviões desmontados, burlando o embargo. Conseguiu enviar para Israel oito aviões, bem debaixo do nariz dos ingleses, quando então Ben-Gurion lhe pede que também providencie bombardeiros.

Enquanto o serviço de inteligência britânico já começa a procurar Zurr, que usava uma identidade fictícia quando estava em Londres, ajudado por um parceiro judeu inglês, o agente israelense continua tentando encontrar soluções das mais diversas - e arriscadas - para transportar os bombardeiros requisitados pelo primeiro-ministro. Certo dia, soube que em uma mecânica de aviões, no sul da Inglaterra, havia aviões bombardeiros britânicos do modelo Beaufighter. Tratava-se de uma arma de guerra grande, com dois motores e quatro canhões de artilharia.

Emmanuel compra as quatro aeronaves disponíveis, porém não era possível enviá-las a Israel da forma como vinha fazendo até então. Como contrabandear quatro aviões gigantes da Inglaterra para Israel enquanto a Scotland Yard estava atrás do emblemático Zurr?

Ainda sem saber como solucionar a questão, o destemido aviador viaja a Paris. Lá, após algumas semanas, em um café ele conhece uma jovem da Nova Zelândia, que desejava ser atriz. Ela conta a Emmanuel que seu grande sonho era fazer um filme sobre os pilotos neozelandeses que lutaram na 2ª Guerra Mundial para ajudar a salvar o mundo livre. Após a reunião, Zurr entende que a jovem acabara de lhe entregar a história de que tanto precisava para retirar os bombardeiros da Inglaterra e levá-los para Israel.

A estratégia de Zurr, na verdade, é idêntica à usada pelos agentes da CIA para resgatar os diplomatas americanos durante a Revolução Iraniana, em 1979, na operação de que trata o filme Argo. Trinta anos antes, a criatividade judaico-israelense, a audácia própria de nosso povo já transformavam ideias altamente improváveis em realidade.

Na época, ele abriu uma produtora de filmes, que, na teoria, começaria as filmagens de uma produção sobre os heroicos pilotos neozelandeses que lutaram contra os japoneses na 2ª Guerra Mundial. Montaram um escritório no exclusivo Hotel Savoy, contrataram cinegrafistas locais de primeira linha, bem como figurantes, designers, estilistas; compraram filmes de cinema para fazer os registros, realizaram testes com atores e atrizes famosos, enfim, respeitaram todos os quesitos para que, aos olhos dos britânicos, tudo indicasse que, de fato, estava sendo produzido um filme. Chegaram a publicar um anúncio no jornal procurando roteiristas para servir de pano de fundo ao filme e entregaram às autoridades britânicas um roteiro completo do filme.

Chamou a atenção da Scotland Yard a requisição de autorização para filmar aviões bombardeiros Beaufighter decolando, e, por isso, tiveram que realizar, de fato, alguns dias de filmagens com o objetivo de despistar os investigadores. No primeiro e no segundo dia pela manhã, os ônibus saíram de Londres com a equipe de filmagem. Os atores chegavam em um aeroporto ao lado da capital britânica e, de lá, os aviões decolavam e pousavam com autorização da aviação civil local. Já no terceiro dia, os Beaufighter decolaram e pousaram em outro aeroporto para indicar à torre de controle que, nas filmagens para o suposto filme, nem sempre pousariam no mesmo lugar. Fora Emmanuel Zurr e os pilotos, ninguém sabia do verdadeiro plano. Todos pensavam se tratar de uma produção cinematográfica, até que veio o quarto dia e, com ele, o clímax da história.

Era o dia 2 de agosto de 1948. No aeroporto Thames, 40 figurantes abanavam lenços brancos para os pilotos que corriam para os aviões, enquanto tudo era acompanhado pelas lentes das câmeras. As aeronaves decolaram na frente de toda a produção, atores e figurantes. Seria apenas um voo para a Escócia, a fim de continuar as gravações do suposto filme. Nenhuma pessoa da equipe técnica ou do elenco desconfiou de nada, encerrando então sua participação no filme. Na prática, os quatro aviões bombardeiros Beaufighter que decolaram do aeroporto ao lado de Londres pousaram em Ajaccio, capital da ilha francesa de Córsega. Emmanuel Zurr convenceu os fiscais de voo no aeroporto que não reportassem os pousos. No dia seguinte, as aeronaves voaram para Podgorica, na então Iugoslávia, e, no dia 4 de agosto, cerca de 48 horas depois de saírem da Inglaterra, os aviões pousaram no aeroporto de Ekron, hoje em dia Tel Nof, em Israel.

Os aviões brilhantemente contrabandeados foram usados pelo exército de Israel na Guerra da Independência, que terminou com a vitória israelense, em 1949. Ben-Gurion pediu a Emmanuel Zurr que voltasse à Europa para trazer mais aviões. Cumprindo ordens, o aviador faz novas tentativas de burlar o embargo. Um mês depois da bem-sucedida importação clandestina de bombardeiros, a história foi exposta na mídia britânica, com manchetes de capa, nos jornais: “Aviões desaparecidos Beaufighter. Scotland Yard procura diretor do filme e sua esposa”. E completam: “Emmanuel Zurr, tomando conhaque sob o sol na Champs-Élysées, disse: ‘Eu fui o cérebro de todas as operações. Os aviões estão agora em Tel Aviv e fazem parte da Força Aérea judaica’”.

Durante meses após a divulgação do ocorrido, a mídia britânica lidou com a história e o deboche contra a Scotland Yard, sustentado pela ideia de como fora possível que um único homem conseguisse contrabandear 16 aviões, enganando oficiais ingleses. Obviamente, após a exposição na mídia e sua recém-conquistada fama, Zurr teve que voltar para Israel.

Décadas depois, sua filha Dafna contou a história de seu pai para a equipe de soldados da Força Aérea israelense que serviam na base de Tel Nof. Os aviões serviram principalmente nos embates contra o exército egípcio. Um deles caiu em combate e seus destroços estão expostos no Museu da Força Aérea Israelense, perto de Beer Sheva.

O legado de Emmanuel Zurr ultrapassa o fato de ele ter criado um enredo hollywoodiano para lidar com um impasse da vida real. Esses aviões contrabandeados e o seu empenho em ensinar novos pilotos a voar foram a base da aviação israelense que conhecemos nos dias de hoje, concreta e ideologicamente.

A criatividade e a resiliência de Emmanuel Zurr ainda são fonte de inspiração para aqueles que defendem os céus do país, e que transformou sua Força de Defesa em uma das melhores do mundo. Como condecoração pelos seus atos de bravura e criatividade, ele foi nomeado por Ben-Gurion como o primeiro diretor-geral do então Aeroporto de Lod, atualmente Aeroporto Ben-Gurion. E, em algum depósito da Scotland Yard, está a caixa com os quatro filmes dos quatro dias de gravações do fictício longa, que mostrou ser muito menos interessante do que a história real.

BIBLIOGRAFIA

“A solução quase inconcebível encontrada por Emmanuel Zurr”, N12, 2013. Disponível em <https://www.mako.co.il>, acessado em: 2021.

The Israeli Air Force : An Operation Out Of The Movies, Israel Air Force”, 2014. Não mais disponível em <https://www.iaf.org.il >, acessado em: 2018.

André Lajst foi oficial acadêmico da Força Aérea de Israel. Cientista Político, é hoje diretor executivo da StandWithUs Brasil