Reencarnação, – as “viagens” feitas pela alma e como isso afeta nossa vida – um tema místico, extenso e complexo que requer muitos anos de estudo profundo. Tanto a Torá quanto o Talmud fazem alusões à reencarnação, mas este assunto é tratado extensamente nas obras da Cabalá. Neste artigo abordaremos algumas ideias gerais sobre o tema de acordo com o Judaísmo.
A reencarnação é um conceito judaico abordado em profundidade nos estudos da Cabalá. O Rei Salomão escreveu Dor Holech, VeDor Ba - “Uma geração vai e uma geração vem” (Eclesiastes - Cohelet 1:4). Nossos Sábios revelam que essa frase alude ao conceito da reencarnação: na geração que vai e na geração que vem, há uma volta – um retorno das gerações. Isto é, as almas, conforme ensinam os livros místicos, não são novas.
Em hebraico, a palavra para reencarnação, guilgul, tem a mesma raiz que a palavra galgal, que significa roda. Ida e volta, subida e descida são ciclos que vão se fechando na vida de uma pessoa. Em hebraico, tanto a palavra guilgul como a palavra hessed (bondade, generosidade) possuem o mesmo valor numérico de 72. Isso significa que esses dois conceitos estão relacionados. De fato, é uma bondade Divina o fato da alma poder retornar ao mundo para completar e aperfeiçoar sua missão.
O conceito de reencarnação não é fundamental para o dia-a-dia. Contudo, saber um pouco sobre a volta da alma ao mundo nos ajuda a entender com mais profundidade a essência da vida. O conceito de reencarnação levanta muitas perguntas. Por que uma alma reencarna? Como e quando volta ao mundo? E qual o propósito dessa volta? Essas são algumas perguntas que abordaremos neste artigo.
A Neshamá – a Alma
Antes de abordar alguns conceitos sobre reencarnação, é necessário entender o que significa neshamá – alma. A neshamá é uma energia espiritual que se expressa por meio do corpo de um ser humano. A alma é o “eu verdadeiro”.
O Judaísmo ensina que o corpo é sagrado – constitui um bem precioso que D’us dá ao ser humano. Ele é o instrumento que permite que a alma se expresse no mundo material e realize a vontade de D’us. O princípio da reencarnação se baseia no fato de haver certas coisas que a alma pode realizar apenas em um corpo, quando encarna, mas não nos Céus. É, portanto, um mandamento do Judaísmo – uma mitzvá da Torá – cuidar do corpo e da saúde.
Diferentemente do corpo, a alma, como citamos acima, é constituída por energia espiritual. Quando o ser humano falece, essa energia espiritual se separa do corpo e adentra outra dimensão espiritual. Mas essa energia pode também, mais cedo ou mais tarde, retornar ao nosso mundo físico por meio da reencarnação.
O ser humano é composto por uma alma animal - Nefesh HaBehamit - a alma vital que está ligada à vida do corpo – e uma alma Divina – Nefesh HaElokit – a alma responsável pela nossa essência. Quando falamos de reencarnação, estamos nos referindo à alma Divina, que vem e retorna ao mundo, possivelmente múltiplas vezes, para cumprir sua missão.
A alma Divina se divide em cinco níveis – cinco partes espirituais. Três desses níveis estão presentes em nós, em nosso dia-a-dia. Esse é um dos motivos por que, nos dias da semana, rezamos três vezes – Shacharit, Minchá e Arvit. Cada uma dessas três orações está associada a um dos três níveis da alma.
O quarto nível da alma se revela no Shabat, em Rosh Chodesh (o novo mês judaico) e nas Festas Judaicas (Chaguim). É por esse motivo que em tais datas há uma oração adicional – Mussaf.
O quinto nível da alma – o mais elevado e espiritual, que nunca se separa de D’us – revela-se uma vez ao ano – em Yom Kipur, particularmente durante a reza da Neilá. Este dia é o único no calendário judaico em que há cinco orações – Shacharit, Minchá, Arvit, Mussaf e Neilá –porque nesse dia os cinco níveis da alma se revelam. Em certos momentos cruciais da nossa vida esse quinto nível da alma também pode se revelar.
O fato de haver cinco níveis da alma é o motivo por trás do costume chassídico, baseado em ensinamentos da Cabalá, de se acender, durante a semana de luto, cinco velas para a alma de uma pessoa falecida.
Há, na tradição judaica – e isto consta no Shulchan Aruch, o Código de Lei Judaica, o costume de visitar, em dias especiais, o túmulo de entes queridos. Pergunta-se: se as almas reencarnam, qual o propósito de visitar túmulos? A resposta é que o primeiro nível da alma permanece no túmulo. Essa parte da alma não reencarna: ela permanece ligada ao corpo. Esse é o significado da visita ao cemitério e da colocação da Matzevá – a pedra tumular. A Matzevá é chamada de abrigo da alma. Esta visita, nesses dias especiais, traz tranquilidade e proporciona felicidade à alma do falecido.
O que nossa alma se recorda
No Judaísmo não há a busca pelo conhecimento do que fomos ou fizemos em vidas passadas. Certos Tzadikim – almas excepcionais, em raríssimos casos, pronunciaram-se a esse respeito. Alguns dos grandes Sábios conseguiram “ver” a trajetórias das almas – isto é, “viram” o que certas pessoas fizeram em vidas passadas. Mas, isso é algo que raramente ocorre.
Mundo afora, muitos se aventuram a falar desse assunto como se fosse corriqueiro – pois é algo que fascina e atrai as pessoas. Muitos pseudomísticos, que falam com autoridade sobre o conceito de reencarnação, descrevem outros mundos e afirmam ter viajado de um mundo para outro. Em alguns casos, até dizem conseguir ver quem esta ou aquela pessoa foi em vidas passadas. Na esmagadora maioria dos casos, as informações transmitidas sobre reencarnação e vidas passadas são falsas, e muitos dos que as transmitem não possuem as habilidades nem o conhecimento necessário, outros não passam de charlatães. Esse assunto requer habilidades espirituais incomuns, muita sabedoria e muitos anos de estudo. Certamente não é algo que esteja ao alcance de qualquer um.
Quando se lida com assuntos espirituais, todo cuidado é pouco – não devemos acreditar com facilidade em pessoas que alegam possuir “poderes sobrenaturais”. Como ensinam nossos Sábios: “Quem sabe não fala e quem fala não sabe”. O Judaísmo aconselha que nos afastemos de tais práticas e pessoas. Foram pouquíssimos os Tzadikim – verdadeiros Sábios e cabalistas – que possuíam o poder de ver além de nosso mundo físico.
Uma pergunta feita com frequência é se a alma mantém lembranças de vidas passadas e se essas recordações teriam relevância para a vida atual. Uma resposta a essa pergunta se encontra no Talmud: durante o período de gestação, um anjo ensina a Torá ao feto, mas quando o bebê nasce, o anjo toca nos seus lábios e a criança esquece o que estudou. Perguntam os nossos Sábios: por que motivo o anjo ensinou a Torá à criança enquanto estava no útero da mãe se o bebê se esquece de tudo que aprendeu assim que nasce? Eles respondem: porque é muito mais fácil lembrar algum ensinamento esquecido do que aprendê-lo pela primeira vez. Esse mesmo conceito se aplica à reencarnação: mesmo que não nos lembremos do que ocorreu em vidas passadas, é mais fácil percorrer o caminho correto se nossa alma carregar consigo as experiências e lições de vidas passadas. Vale ressaltar, porém, que há almas muito especiais que têm plena consciência de quem eram e do que vivenciaram em vidas passadas.
Pergunta-se: por que não é dado a todos nós o poder de lembrar do que ocorreu em vidas passadas? A resposta: porque não precisamos dessas memórias. Se precisássemos, D’us nos permitiria lembrar de tudo que ocorreu em nossas vidas passadas. O conhecimento de quem fomos e do que fizemos em vidas anteriores limitaria nosso livre arbítrio. A alma volta a este mundo por diversos motivos, inclusive para retificar erros do passado, mas se soubéssemos com clareza o que é necessário retificar, nossas escolhas seriam pré-definidas.
Isso não significa que não carregamos nenhuma lembrança de vidas passadas. Por exemplo, há pessoas que possuem conhecimentos intuitivos sobre certas ideias, idiomas ou lugares. Isso pode significar que tais ideias ou lugares tiveram relevância em sua vida passada e isso ficou profundamente embutido em sua alma. Em outras palavras, mesmo que a maioria de nós não consiga acessar as lembranças de vidas passadas, algumas ideias ou experiências permanecem em nossa alma.
É importante ressaltar que nós, judeus, não buscamos acessar tais lembranças. No Judaísmo, não há a busca pelo que fomos ou fizemos em vidas passadas. A Torá nos ensina que devemos nos concentrar no presente – no que precisa ser feito hoje e agora – e olhar para o futuro, não para o passado. O que importa não é o que fizemos em vidas passadas, mas o que faremos nesta vida.
Conhecer o passado pode explicar o futuro
Em certas circunstâncias, conhecer o que nos aconteceu em outras encarnações nos ajudaria a entender certas situações que ainda não somos capazes de entender.
Algumas histórias sobre o Baal Shem Tov, o fundador do movimento chassídico, que viveu há aproximadamente 300 anos, exemplificam o conceito de como o conhecimento sobre vidas passadas ajuda a entender certas situações da vida atual.
Uma vez, um aluno perguntou ao Baal Shem Tov sobre a aparente falta de Justiça Divina no mundo. O Baal Shem Tov contou ao aluno a seguinte história: uma pessoa muito rica estava de viagem e deixou seu dinheiro guardado com um amigo sem recursos. Como confiava plenamente no amigo, não deixou por escrito nada que indicasse ser o dono do dinheiro depositado com o amigo. Enquanto o homem rico estava de viagem, o amigo faleceu. Os filhos deste último, homem pobre, encontraram o dinheiro. Ficaram surpresos, pois haviam passado por dificuldades ao longo da vida, e dividiram o dinheiro entre si.
Depois de alguns meses, o homem rico voltou e perguntou aos filhos de seu amigo onde estava seu dinheiro. Estes lhe perguntaram se possuía algo demonstrando que o dinheiro lhe pertencia. O homem respondeu que não, pois confiava plenamente no pai deles.
O homem levou o caso ao rabino de sua cidade. De acordo com a Lei da Torá, só se pode tirar algo de alguém – dinheiro ou posses – por meio de um documento ou algum outro tipo de prova. Como ele não possuía nenhum documento provando que o dinheiro era seu, mesmo o rabino tendo achado sua história convincente, respondeu que não havia nada que ele pudesse fazer. E assim, o dinheiro permaneceu com os filhos do falecido.
Depois de contar essa história, o Baal Shem Tov pediu ao aluno que fosse a um certo oásis – que subisse em uma árvore e lá permanecesse para testemunhar um evento. O aluno seguiu as instruções do Baal Shem Tov. Pouco tempo depois, chegou um homem ao oásis, bebeu água, deitou-se para descansar e soltou o cinto que vestia, onde carregava moedas de ouro. Após descansar, esse homem se levantou e continuou seu caminho, mas esqueceu o cinto com as moedas. Pouco tempo depois, chegou uma outra pessoa no oásis e encontrou as moedas. Como não havia ninguém por perto, pegou as moedas de ouro e foi-se embora. Chegou um terceiro viajante ao oásis, e também parou para descansar. De repente, o homem que havia se esquecido do cinto volta à procura das moedas. Não as encontrando, começou a discutir com esse terceiro viajante, exigindo que devolvesse as moedas. Chegou até a agredi-lo fisicamente, até ele se convencer que o terceiro viajante não havia encontrado nenhum dinheiro.
O aluno do Baal Shem Tov presenciou o incidente e, quando voltou ao Mestre, ele lhe explicou o que ocorrera. O primeiro viajante era a reencarnação do homem pobre cujos filhos ficaram com o dinheiro do amigo. Ele perdeu as moedas porque os filhos haviam ficado com o dinheiro que não lhes pertencia na vida anterior. O segundo era a reencarnação do homem rico: ele recuperou o dinheiro que havia perdido na vida anterior. O terceiro viajante havia sido o rabino na vida anterior, que permitiu que os filhos do homem pobre ficassem com o dinheiro que, na realidade, não pertencia ao pai deles. Ele foi agredido fisicamente pelo primeiro viajante porque, apesar de ter seguido a lei da Torá, causara sofrimento ao homem rico.
O Baal Shem Tov explicou ao aluno que o que ele presenciara no oásis tinha sido uma resposta à sua pergunta sobre a Justiça Divina. Em outras palavras, uma injustiça ocorrida em uma vida foi retificada em uma vida posterior. Contudo, a verdade é que raramente conseguimos vislumbrar a história como um todo.
O conceito da reencarnação nos ajuda a compreender que há muito que não entendemos porque não somos capazes de ver a história inteira de nossa vida – a trajetória de nossa alma em encarnações passadas. Mas é importante que saibamos que todos os eventos de nossa vida têm presente, passado e futuro. Há créditos e débitos do passado e missões para o futuro. Quais os ciclos e como se fecham constitui uma esfera de conhecimento que está muito além do alcance de cada um de nós. Mas o importante é entendermos que cada alma possui uma missão especial de trazer retificação ao mundo.
Uma segunda história que transmite ensinamentos sobre a reencarnação: uma pessoa muito rica foi visitar o Baal Shem Tov. Era comum as pessoas o procurarem em busca de conselhos ou bênçãos, mas esse homem não foi pedir nada ao Mestre – só desejava conhecê-lo. O Baal Shem Tov o recebeu e disse que já que ele havia vindo de longe, não permitiria que fosse embora de mãos vazias – contaria a ele a seguinte história:
Em uma cidade, havia dois colegas de escola. As duas crianças eram tão amigas que, todos os dias, uma delas dava à outra metade de seu lanche. Os dois cresceram e se casaram. Mas, antes de se casarem, fizeram um pacto: seriam como irmãos pelo restante da vida e sempre se apoiariam. Os dois foram viver em cidades diferentes. Um deles se tornou muito rico. Já o outro, empobreceu. Um dia, o amigo sem recursos disse à esposa que viajaria para visitar seu amigo de infância e lhe pedir ajuda. Chegando à casa do amigo rico, este o recebeu com um sorriso no rosto. O amigo sem recursos contou que estava passando por muitas dificuldades. Ao ouvir isso, o outro chamou o seu contador e disse: “Quando éramos crianças, este meu amigo me dava metade de seu lanche todos os dias. Por favor, faça a conta de tudo que possuo e dê metade a ele”. O amigo esperava ajuda, mas nunca tamanha generosidade. E voltou a seu lar tendo recebido metade das posses de seu amigo. Com o passar do tempo, tornou-se até mais rico do que o outro que lhe havia dado metade de tudo que possuía. Tristemente, o amigo que havia sido tão generoso, perdeu dinheiro e se encontrou em uma situação de penúria. Agora, era ele que precisava pedir ajuda ao amigo. Viajou a seu encontro para lhe pedir ajuda, certo de que sua generosidade seria retribuída. Mas quando finalmente conseguiu ser atendido pelo amigo, este disse que não o conhecia, que não ajudava ninguém e o mandou embora. De tanto desgosto e tristeza, o homem generoso, que havia perdido sua riqueza, faleceu no mesmo dia. Curiosamente, o amigo que havia se recusado a ajudá-lo, também morreu no mesmo dia.
As duas almas foram para Gan Eden, onde se iniciou o julgamento de ambos. Para a Corte Celestial, era evidente qual seria o veredicto. Contudo, o amigo generoso intercedeu: não queria que seu amigo sofresse por sua causa. Os Céus decidiram que as duas almas voltariam ao mundo nas mesmas circunstâncias em que se encontravam quando saíram dele. O rico continuaria rico e o pobre continuaria pobre e, um dia, ambos voltariam a se encontrar, mas não se lembrariam do que havia ocorrido na vida anterior. De fato, um dia, um homem pobre bate à porta de um homem rico e lhe pede ajuda, pois estava passado fome. O homem rico o recebe, recusa-se a ajudá-lo e o envergonha. De tanta vergonha o pobre morreu. Uma segunda chance havia sido dada à alma do homem que havia se recusado a ajudar o amigo em uma vida anterior – e ele a desperdiçou.
O Baal Shem Tov termina de contar essa história e percebe que o visitante está pálido. Este diz ao Mestre: “Foi exatamente isso que aconteceu comigo: um homem pobre me pediu ajuda e eu o despachei, de mãos vazias. Isso significa que não há mais salvação para mim?”. O Baal Shem Tov responde-lhe: “D’us o encaminhou aqui para que você possa se salvar. Você deve fazer o seguinte: procure a família do homem a quem você se recusou a ajudar, e lhes dê tudo o que precisam até o resto de suas vidas. O resto do dinheiro você dá aos pobres – você próprio não tire proveito deste dinheiro. Assim, sua alma retificará o erro do passado”.
Essa história transmite a ideia de que se o ser humano tivesse memória do que ocorreu em vidas passadas, saberia exatamente o que fazer para retificar os erros cometidos em encarnações anteriores. Contudo, isso tiraria o livre arbítrio da pessoa. Precisamos viver a vida sem saber o que ocorreu em encarnações anteriores para que possamos tomar boas decisões que, por si só, retifiquem os erros de vidas passadas. O Talmud ensina que, “o pobre faz mais pelo rico do que o rico faz pelo pobre”. Em certos casos, uma pessoa que nos pede ajuda pode estar nos dando a oportunidade de retificar erros cometidos em vidas passadas: é possível que essa pessoa nos tenha ajudado em uma vida passada e esta é a oportunidade de pagar a dívida.
O conceito da reencarnação nos ensina que não conseguimos ver todo o ciclo das nossas vidas. Assim, devemos ver a vida que estamos vivendo de maneira diferente – com mais humildade. Precisamos também ver que na Torá existe o mandamento tanto de dar como o de receber ajuda, e que a alma vem a este mundo para cumprir todos os mandamentos. Muitas pessoas gostam apenas de dar, não de receber. Mas, às vezes, receber ajuda também constitui uma mitzvá a ser cumprida.
Como vimos nas histórias do Baal Shem Tov, uma alma pode voltar ao mundo para retificar um erro de uma vida passada. Vale lembrar que, em Yom Kipur, D’us perdoa os pecados cometidos contra Ele, mas não contra os seres humanos. Cabe à pessoa retificar os erros cometidos contra outras pessoas. Se os erros não forem retificados durante uma vida, existe a possibilidade de as mesmas almas reencarnarem e passarem por uma situação similar que permite que o erro de uma vida anterior seja retificado. Para a alma constitui uma forma de conseguir o Tikun – o conserto espiritual de uma falha. Esta, porém, não é a única forma de consegui-lo.
Quantas vezes reencarnamos
A alma tem inúmeras chances de reencarnar. Podemos voltar para retificar erros de vidas passadas, mas a cada viagem da alma, ela acumula bons atos. O bem que fazemos durante nossas vidas – tanto a atual como as passadas – se acumula. Isso vale tanto para o indivíduo como para o mundo como um todo. A cada geração, o mundo acumula mais e mais energia positiva. Esse é o fenômeno que levará à Era Messiânica – a utopia tão almejada pelo Povo Judeu e pela humanidade. Ao reencarnar diversas vezes, a alma recebe inúmeras oportunidades de crescer e se desenvolver. A neshamá pode voltar ao mundo diversas vezes para cumprir missões diferentes. Geralmente, as almas de mulheres não precisam reencarnar tantas vezes como as dos homens. O motivo disso é que as almas das mulheres são mais perfeitas – assim, não necessitam tanto de retificação. Os livros místicos ensinam que muitas almas femininas voltam ao mundo não porque necessitam de alguma retificação, e sim, para ajudar sua alma gêmea, seus filhos ou algum familiar.
Várias almas em um corpo?
Existe a possibilidade de várias almas habitarem um mesmo corpo? A resposta é que isso é uma possibilidade. Existe no Judaísmo o conceito de dibuk – possessão. Não é exatamente o mesmo fenômeno que é trazido em livros e filmes de ficção, mas é uma realidade reconhecida pelo Judaísmo. Contudo, evocar espíritos é terminantemente proibido pela Torá, pois envolve forças negativas. O Judaísmo proíbe que as pessoas se envolvam com tais práticas.
A segunda situação em que mais de uma alma pode habitar dentro de um único corpo é um fenômeno denominado ibur. O ibur neshamot (gravidez das almas) ocorre quando uma alma se “acopla” temporariamente a outra. O ibur ocorre quando a alma de um Tzadik ou de um ente querido se “acopla” a um corpo. Por exemplo, o Patriarca Avraham constitui o símbolo da bondade. Caso uma pessoa que tenha praticado a bondade por toda a vida encontre obstáculos em sua capacidade de ajudar ainda mais os outros, uma parte da alma de Avraham pode se “acoplar” a essa pessoa para lhe dar mais ímpeto – abrir novos horizontes para que ele continue a praticar a bondade. Nesse caso, essa pessoa teve o grande mérito de ter consigo, temporariamente, parte da alma de Avraham Avinu, graças aos seus atos de generosidade
Há momentos em que sentimos que entes queridos estão ao nosso lado. Podemos sentir a força de nossa mãe, pai, avô ou avó. Isso não significa necessariamente que a alma de tal pessoa esteja “acoplada” à nossa. Contudo, existe essa possibilidade.
A segunda situação em que uma alma se “acopla” a uma pessoa ocorre quando a alma cumpriu sua missão, mas ficou faltando algum detalhe que não foi realizado – não por sua culpa, mas por motivos circunstanciais. Nesse caso, a alma não precisa voltar ao mundo e viver mais uma vida, mas precisa completar o que lhe falta. Um exemplo é a mitzvá do Pidion HaBen – o resgate do primogênito. Para um homem completar essa mitzvá, há uma série de exigências, entre elas, que tanto o pai como a mãe não sejam Cohanim ou Levi’im e que o menino tenha nascido de parto natural.
Uma série de circunstâncias pode fazer com que uma pessoa não consiga cumprir a mitzvá do Pidion HaBen. Nesse caso, a alma que nunca cumpriu essa mitzvá se “acopla” ao pai que está realizando a cerimônia para o seu filho e, assim, essa alma está se beneficiando e atingindo a perfeição espiritual. Depois de participar do Pidion HaBen, a alma parte do mundo.
Qual é a nossa missão?
Todos nós temos uma missão especial e singular – tanto individual como coletiva. Mas a grande maioria de nós não sabe exatamente qual é nossa missão. Nossos Sábios ensinam que há alguns indicativos.
De maneira geral, viemos ao mundo para fazer o bem – cumprir os 613 mandamentos da Torá. Mas os Sábios do Talmud ensinam que nossa missão está associada aos mandamentos da Torá que fazemos com mais cuidado e carinho. Ao mesmo tempo, nossa missão também pode estar ligada a um mandamento da Torá que encontramos muita dificuldade em realizar. Essas dificuldades podem indicar erros de vidas passadas que precisamos corrigir nesta vida.
Concluímos este ensaio sobre os fundamentos da reencarnação ressaltando que esse é um tema extremamente profundo que requer muito estudo e que deve ser abordado com muito cuidado. Mas saber da existência de vidas passadas amplia o nosso panorama e a nossa responsabilidade.
Todos carregamos uma carga genética de nossos pais e dos nossos avós, mas possuímos também uma carga muito mais profunda de várias vidas passadas. Cabe a nós decidir o que fazer – como dar continuidade ao Judaísmo e à nossa herança espiritual. Somos fruto de uma história e cabe a cada um de nós não desperdiçar essa história.
Todo ser humano carrega consigo não apenas o legado milenar de seus antepassados, mas também os atos que realizou em encarnações anteriores. A cada dia de nossa vida temos a oportunidade de crescer espiritualmente, corrigindo erros de vidas passadas e acumulando méritos, e isso nos leva tanto à nossa própria elevação espiritual como a de todo o mundo.
Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante