Em Londres, Praça Russel, Bairro de Camden, uma construção em meio a tantas casas de classe média alta abriga um dos mais antigos e maiores acervos sobre o regime nazista e o Holocausto - a Biblioteca Wiener, criada na Alemanha em 1920 e reinaugurada na Inglaterra, em 1939, na mesma época em que as tropas alemãs invadiam a Polônia. Soma atualmente mais de um milhão de itens.
Assim denominada em homenagem ao seu fundador, o alemão Alfred Wiener, herói da 1ª Guerra Mundial – condecorado com a Cruz de Ferro, a Biblioteca é fruto da determinação de um homem em coletar informações sobre o crescimento do antissemitismo no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães1, o Partido Nazista, em outros grupos alemães e no seio da sociedade entre os anos 1910 e 1930. Foi um homem que conseguiu antever o trágico futuro das comunidades judaicas sob domínio nazista e deixou seu país em 1925, instalando-se primeiro na Holanda e, mais tarde, em Londres.
Nada no estilo arquitetônico do local revela o peso da história que suas paredes encerram. É internacionalmente reconhecida por estudiosos como uma fonte singular de informação sobre os primeiros passos do nacional-socialismo, no continente europeu, e o seu desenvolvimento até o final da 2ª Guerra Mundial. Possui mais de um milhão de itens incluindo artigos de jornais, análises inéditas, estudos acadêmicos, fotografias e depoimentos de pessoas que testemunharam um dos períodos mais sombrios da história da Humanidade. Como parte de sua agenda de atividades desenvolve uma série de projetos para incentivar a pesquisa, o ensino e a divulgação de fatos e dados ligados à Shoá, suas causas e consequências.
Atualmente é, também, um elemento fundamental no combate ao antissemitismo e a outras formas de preconceito e intolerância. Sua reputação baseia-se principalmente na independência e objetividade acadêmica. Tendo como público alvo pesquisadores, a mídia e o público de modo geral, tornou-se um memorial vivo da história da Shoá para as gerações futuras.
Como começou
As origens da biblioteca, antes mesmo de ser assim considerada, remontam à Alemanha da década de 1920, quando Wiener retornou ao seu país ao término da 1ª Guerra Mundial. Ele nasceu em Potsdam, em 1885, em uma próspera família judaica. Ao término de seu doutorado em Literatura Árabe na Universidade de Heidelberg, trabalhou por um curto período como jornalista antes de se alistar em uma unidade de artilharia. Lutou nas frentes oriental e ocidental sendo condecorado com a Cruz de Ferro.
Ao retornar, em 1920, assumiu a função de secretário do Grupo Judaico de Direitos Civis, quando pôde acompanhar, horrorizado, o crescimento do antissemitismo no país baseado na perigosa alegação de que os judeus eram os responsáveis pela derrota alemã no conflito. Passou a escrever artigos, proferir palestras e alertar a opinião pública, principalmente a judaica, sobre o que ocorria na Alemanha antes mesmo que o Partido Nazista assumisse o poder.
A partir de 1925, data em que Hitler publicou sua famigerada “obra” Mein Kampf, percebeu no discurso dos partidários do nazismo e de outros grupos a ameaça cada vez maior à continuidade de uma vida judaica em território alemão. Conseguiu convencer membros da comunidade da importância de organizar um arquivo sobre a situação e sobre os nazistas, procurando, com estas informações, combater o antissemitismo. Uma tarefa árdua e sem muitos resultados.
Após anos tentando alertar a comunidade e, vislumbrando o trágico futuro cada vez mais próximo, Wiener e sua família deixaram a Alemanha em 1933, instalando-se inicialmente em Amsterdã, Holanda. Levou consigo seus arquivos. Após a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, Wiener começou os preparativos para transferir sua coleção para a Grã-Bretanha, onde chegou logo após a invasão da Polônia pelas tropas de Hitler, em 1 de setembro de 1939. Ao longo da 2ª Guerra Mundial, o Escritório atuou como centro de informação para o governo britânico, que a ele se referia como “Biblioteca do Dr. Wiener”, nome que acabou sendo adotado posteriormente. Wiener tinha um acordo com departamentos do governo inglês para mantê-lo informado sobre os acontecimentos na Alemanha.
Com o fim da Guerra e a divulgação dos horrores cometidos por Hitler e seus asseclas, o Escritório assumiu mais um papel importante: ser fonte de informação para o Julgamento de Nuremberg. Em seu acervo foram encontrados documentos inéditos da propaganda nazista, depoimento de sobreviventes, artigos e livros sobre a filosofia nazista, fotos e outros documentos. Panfletos antinazistas, livros escritos por crianças, traduções oficiais do Julgamento de Nuremberg e depoimentos de vítimas da Noite dos Cristais também fazem parte de sua coleção. Entre os acadêmicos, há o consenso de que o acervo Wiener ajudou a delinear os primeiros fundamentos para os estudos da Shoá. Seu acervo continua a crescer desde então, levando à necessidade de um local mais adequado à sua importância.
No entanto, a biblioteca permaneceu anos esquecida em um espaço alugado, mantida graças ao apoio de patronos judeus e um grupo dedicado de voluntários empenhados em conservar o acervo e atualizá-lo constantemente. Até que, em 2011, foi transferida para o número 29 na Praça Russel, uma casa restaurada em estilo georgiano, dentro da Universidade de Londres, dando início a um programa patrocinado pelo Heritage Lottery Fund cujo objetivo é tornar mais fácil o acesso.
Desde a mudança, são realizadas visitas guiadas para professores, educadores e estudantes. Importante destacar que seu acervo inclui temas ligados ao currículo nacional de História, incluindo a ascensão do nazismo na Alemanha, propaganda, antissemitismo e crimes de guerra. Há, também, vasto material sobre religião, política, estudos alemães, cidadania e artes. Propaganda e Genocídio, A Experiência dos Refugiados Judeus, Resistência e Resgate são temas de programas especiais oferecidos pela biblioteca, quando solicitados.
Em 2012, logo após a inauguração das novas instalações, a Biblioteca realizou a sua primeira exposição aberta ao público: “A, de Adolf: Ensinando os Valores Nazistas a Crianças”. Como parte da mostra, uma prateleira com livros coloridos, um jogo de tabuleiro com cores fortes e uma fotografia de crianças rindo. Ao olhar mais atentamente, o visitante podia perceber que as crianças da foto estavam ao redor de um bolo decorado com uma suástica.
O jogo de tabuleiro exposto é uma versão alemã do clássico Parchesi, criado em Dresden, em 1936, chamado Juden Raus! (Fora Judeus!), no qual vence o jogo quem primeiro conseguir caçar seis judeus fora do gueto. Em outra estante, um jogo para adolescentes com fichas mostrando rostos de líderes nazistas com perguntas sobre os personagens. E, finalmente, um lindo livro ilustrado para ensinar o alfabeto para meninos e meninas no qual “A” aparece com a explicação “Adolf”.
“Com um acervo que combina depoimentos, testemunhos, jornais e trabalhos de pesquisadores, a Biblioteca Wiener tem desempenhado um papel único para os historiadores”, disse Richard J. Evans, professor emérito de História Moderna na Universidade de Cambridge e autor de três volumes sobre História do Terceiro Reich. Ele foi a testemunha principal de defesa da acadêmica americana Deborah E. Lipstadt, que, em 2000, processou o escritor inglês David Irving que afirmava que o Holocausto nunca aconteceu. Para ele, o acervo de Wiener foi fundamental nesse processo.
Dan Plesch, autor da obra America, Hitler and the UN, afirmou que a Biblioteca é uma fonte surpreendente de informações. Professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres, disse que ao fazer pesquisas na Biblioteca encontrou uma declaração datada de 17 de dezembro de 1942 dos governos britânico, americano e soviético que parecia sugerir conhecimento detalhado prévio sobre o Holocausto alertando que “as autoridades alemãs estavam executando, de fato, a repetida intenção de Hitler de exterminar o povo judeu na Europa”.
Desde a mudança de local, defendida pela professora Joana Bourke, da Universidade de Londres, o número de visitantes triplicou. Ela enfatiza, ainda, que o acervo não se limita ao Holocausto ou aos judeus da Europa, mas a inúmeros temas de interesse histórico.
Desde 2012 a Biblioteca Wiener é sede do International Tracing Service, um arquivo que Anne Webber, então vice-presidente da Comissão para a Arte Saqueada na Europa, chama de “o mais importante arquivo sobre o Holocausto na Europa”.
Guardado por décadas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o arquivo “possui tanto importância humanitária quanto acadêmica”. Foi somente em 2007 que a Cruz Vermelha permitiu o acesso a tais documentos.
Atualmente a Biblioteca Wiener mantém parcerias estratégicas com o Centro para Educação do Holocausto do Instituto de Educação da Universidade de Londres, Instituto Pears para Estudo do Antissemitismo, Museu Judaico de Berlim, European Holocaust Research Infrastructure, Aktion Sühnezeichen Friedensdienste, Association of Jewish Refugees (AJR) Imperial War Museum, ITS - International Tracing Service, entre outras instituições.
1 Em Alemão: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (abreviado NSDAP). O termo Nazi éalemãoe decorre do Nationalsozialist.