A família Sztejnhauer jamais poderia imaginar a importância da participação de seu patriarca, Jacob, junto a Chiune Sugihara e Jan Zwartendijk, respectivamente, cônsules do Japão e da Holanda, na Lituânia, durante a 2a Guerra Mundial. Seu papel foi fundamental no salvamento de milhares de judeus do Leste Europeu. A revelação dessa história mudou a vida da família para sempre.
S. Paulo, setembro de 1995
No andar superior do número 648 da Rua José Paulino, no Bom Retiro, o interfone toca, interrompendo o trabalho de Joy Sztejnhauer, que conferia a produção da fábrica de roupas femininas, que seus pais, Jacob e Básia, haviam fundado anos antes. Do outro lado da linha, sua mãe pedia que ele a encontrasse na loja, no térreo da fábrica. Ela tinha algo para lhe mostrar.
Joy foi ver a mãe, que lhe exibiu o anúncio publicado em um jornal em iídiche, voltado para a comunidade judaica do Leste Europeu que vivia no Brasil. Nele, um pedido para que pessoas que tivessem conhecido Chiune Sugihara, cônsul do Japão na Lituânia, no início da 2a Guerra Mundial, comparecessem a uma homenagem a ele no clube A Hebraica, na qual estaria presente sua viúva, Yukiko Sugihara. Chiune Sugihara havia sido responsável por salvar 4,5 mil judeus da Lituânia1.
Sem entender o que a mãe queria, Joy perguntou: “Eu não sei de ninguém que tenha conhecido esse cônsul. E a senhora? ”. Ao que a mãe respondeu: “Sei, sim. Seu pai”. Mal sabia Joy, então com 37 anos, que ele e sua irmã, Michaela, estavam prestes a ouvir o relato de um segredo de família, guardado durante tantos anos...
Pano de Fundo: Vilna, 1940
Após o fim da 1a Guerra Mundial, em 1918, vitoriosos, França e Reino Unido decidiram restabelecer dois Estados nacionais: Polônia e Lituânia. As duas nações passaram a disputar um território que compreendia a cidade de Vilna, ou Vilnius. Em 1920, durante a Guerra polaco-lituana, as forças polonesas ocuparam a cidade. Quando um cessar-fogo foi assinado, Vilna estava em mãos polonesas e foi incorporada à Polônia.
Em 1o de setembro de 1939 estoura a 2ª Guerra Mundial. No final do mês, de acordo com o Pacto Nazi-soviético, pacto secreto de não-agressão assinado nove dias antes entre a Alemanha e a URSS, Vilna, juntamente com a região leste da Polônia, é ocupada pelos soviéticos. O restante da Polônia fica em mãos alemãs. Em 28 de setembro, após serem estabelecidas as linhas divisórias entre Alemanha e URSS, Stalin cede Vilna à Lituânia após concluir um pacto com este país, assim como com a Letônia (Latvia) e a Estônia, obtendo desses países direito a estabelecer bases militares em seus territórios.
O número de judeus que viviam em Vilna ao eclodir a Guerra girava em torno de uns 60 mil2. A eles se juntaram milhares de judeus poloneses – estimados entre 12 e 20 mil – que haviam fugido da Polônia sob domínio alemão. Os judeus de Vilna mal podiam acreditar nos relatos desses refugiados sobre o tratamento que os alemães reservavam para os judeus – os maus tratos, os confiscos, os trabalhos forçados, as mortes sumárias....
No verão de 1940, durante uma viagem à datcha da família (em russo, casa de campo), Básia Sztejnhauer entendeu que a Guerra estava prestes a chegar à Lituânia.
O retorno a Vilna já prenunciava os tempos difíceis: foi feito a pé, pois as estradas estavam bloqueadas pelo exército soviético. Em 21 de julho todo o território lituano, inclusive Vilna, foi incorporado à União Soviética, tornando-se uma das Repúblicas da URSS. Forças soviéticas são então enviadas à Lituânia, e um governo pró-soviético é instalado.
De volta a Vilna, Básia soube que o novo governo determinara que cada família teria sua casa ou apartamento dividido em quatro partes, tendo direito a ocupar apenas uma delas.
Os Sztejnhauer, Básia, Jacob e seus dois irmãos, Lova e Lipman, porém, ficaram em situação um tanto melhor. O Dr. Lova era renomado médico e diretor do hospital local, e, por isso, a família teria direito a duas partes, sendo uma delas transformada em consultório.
Naqueles dias, eram constantes as reuniões no Sindicato dos Peleteiros. E um desses peleteiros era Jacob Sztejnhauer. Num desses encontros, no dia 30 de julho, um coronel da NKVD3 chegou de surpresa e perguntou quem ali dominava os idiomas lituano, iídiche, polonês, alemão e russo. Ainda que assustado com o “recrutamento” inesperado, Jacob se apresentou. Ao que o coronel ordenou: “Amanhã, às 7h, quero você na sede da NKVD”.
No dia seguinte, no horário marcado, Jacob estava diante do oficial. A partir daquele encontro, sua vida ganharia outro sentido. Para sempre.
A Missão
Milhares de judeus queriam deixar a Lituânia, vendo os avanços dos exércitos de Hitler com preocupação. Além disso, a vida judaica sob os soviéticos não era fácil. Mas, a burocracia para deixar a Lituânia era imensa. Era necessário um passaporte, um visto de saída soviético, um visto de trânsito e, finalmente, um visto de entrada no país que os tivesse aceitado.
Boquiaberto, Jacob ouviu o que deveria fazer a partir daquele 31 de julho. Ficaria sob sua responsabilidade cuidar de um dos pré-requisitos para que os judeus pudessem deixar o país. Ele seria o responsável por emitir os vistos de saída que iriam autorizar os judeus a embarcar no trem Transiberiano que cruzava todo o território soviético. O coronel avisou a Jacob que estava autorizado a emitir os vistos de saída somente àqueles judeus que já possuíssem o visto de trânsito do Japão, fornecido pelo Cônsul Chiune Sugihara.
Durava cerca de um mês a viagem no trem Transiberiano com destino ao fim da linha, Vladivostok, cidade soviética no Oceano Pacífico. De lá, os judeus seguiriam para o Japão e, a princípio, para Curaçao, uma ilha holandesa no Mar do Caribe.
A bem da verdade, não era necessário visto de entrada para Curaçao, mas o governador local precisava conceder uma “permissão” de desembarque – algo que raramente acontecia. O cônsul da Holanda na Lituânia, Jan Zwartendijk, decidiu fornecer aos judeus permissões de entrada – por sua própria conta e risco, pois a Holanda havia sido tomada pelos alemães em maio de 1940. Os dizeres das permissões eram propositadamente “diferentes”. Neles constava que “Não é necessário visto de entrada para estrangeiros no Suriname, Curaçao e outras possessões holandesas na América”, mas era omitida a frase “… necessitam da permissão do Governador local”...
Como vimos acima, o visto de trânsito do Japão era indispensável para um judeu embarcar no trem Transiberiano. Quando, em julho de 1940, as autoridades soviéticas determinaram que todas as embaixadas estrangeiras deixassem Kovno de imediato, o cônsul do Japão, Chiune Sugihara, obteve autorização para permanecer mais algum tempo. Como relatado no livro “Passaporte para a Vida”, escrito por sua viúva, Yukiko Sugihara, o cônsul passou a trabalhar de manhã à noite, sem parar, emitindo o maior número possível de vistos de trânsito. Jacob seguia no mesmo ritmo, escrevendo sem parar vistos de saída.
Salvar o maior número possível de judeus embarcando-os no trem Transiberiano era uma corrida contra o relógio. O ritmo de trabalho era tão frenético, que Jacob chegou atrasado ao próprio casamento religioso, celebrado no dia 13 de agosto, na clandestinidade, já que ia contra as leis soviéticas. A cerimônia estava marcada para as 20h, mas o noivo só chegou à 1h do dia 14. “Não podia parar. Cada minuto era uma vida que eu ajudava a salvar”, costumava dizer Jacob.
A operação de salvamento durou 29 dias, encerrando-se em 28 de agosto de 1940, quando Jacob foi novamente convocado pelo coronel a se apresentar na sede da NKVD. “Yasha (Jacob, em russo), não emita mais vistos. Você vai sair daqui acompanhado por dois soldados meus. Eles vão levá-lo até uma floresta. De lá, você deverá fugir e não voltar mais para casa. Quanto a mim, saiba que sou judeu. Mas não se aflija. Minha filha conhece uma pessoa importante no governo soviético. Estou protegido. Mas se o pegarem, os soviéticos o matarão”. “Então, coronel, o que fizemos até agora foi ilegal? ”, perguntou Jacob, já desconfiando da resposta que receberia. “Sim”, assentiu o oficial.
Jacob deixou a sala do coronel ciente de que ajudara a salvar milhares de correligionários. Mas... ele não obedeceu às ordens do oficial e voltou ao endereço onde vivia com a família. Jacob e Básia, Lova e Lipman tinham aberto mão do direito aos vistos para deixar Vilna, a fim de que outros judeus fossem salvos em seu lugar. Eles confiavam que D’us os protegeria... Como, de fato, aconteceu.
O gueto de Vilna
A Alemanha nazista invadiu a União Soviética em 22 de junho de 1941. Eram fortes os sinais de que os alemães se preparavam para invadir, porém, Stalin, iludido pelo Pacto, recusou-se a crer nas evidências apresentadas por seus generais e não ordenou uma mobilização militar. Quando a Alemanha desfechou o ataque, o avanço foi rápido pelo território soviético.
O exército alemão entrou em Vilna em 26 de junho de 1941, seguido pelos esquadrões da morte dos Einsatzkommando. Com extrema rapidez, os alemães começam a pôr em prática seus planos para a “Solução Final”. Acredita-se que as primeiras execuções em massa dos judeus de Vilna ocorreram em 4 de julho em Ponary, que ficava a 10 Km da cidade. Desde a chegada dos Einsatzkommando até a criação do Gueto de Vilna, no dia 6 de setembro, mais de 20 mil judeus foram assassinados. A maioria era executada a tiros, em massa, e jogada em valas comuns em Ponary.
Em 6 de setembro, os nazistas ordenaram a transferência de todos os judeus para um Gueto, estabelecido no bairro judaico. Eles dividiram a área em Gueto Grande (I) e Gueto Pequeno (II), separados por um corredor “neutro”. No Gueto Grande foram trancafiados 29 mil judeus e, no Gueto Pequeno, entre 9 e 11 mil. As condições de vida eram infernais: o trabalho escravo, as surras, a fome, a falta de aquecimento, de higiene, de medicamentos, as epidemias, tudo era parte do dia a dia dos judeus do Gueto de Vilna. Até dezembro de 1941, as matanças eram uma constante. Com regularidade, os Einsatzkommando e colaboradores lituanos entravam no Gueto para realizar operações-surpresa, chamadas de Aktionen, levando milhares à morte em Ponary.
Para “reduzir” o número de judeus de forma “eficiente”, mantendo os que podiam trabalhar para eles, os nazistas passaram a emitir permissões de trabalho (schein) aos considerados “produtivos”.Os judeus considerados “improdutivos” foram rapidamente “eliminados”. Em 1o de outubro, dia de Yom Kipur, foram presos os judeus que não possuíam essas permissões de trabalho, sendo, em seguida, liquidado o Gueto Pequeno. Os que não foram assassinados durante as “ações” foram levados a Ponary e mortos a tiros.
As “ações” nazistas pararam em dezembro e o gueto entrou em um período de “estabilidade”. Passara a ser um gueto de trabalho. Sua população havia sido reduzida aos 12.500 judeus com permissões de trabalho válidas e havia cerca de 3 mil escondidos, não se sabendo ao certo quantos tinham conseguido fugir.
De Volta aos Sztejnhauer
Básia, Jacob, Lova e Lipman estavam entre os sobreviventes quando o Gueto entrou no “período de estabilidade”. Continuaram vivendo em parte do apartamento da família, que ficava dentro do Gueto Grande, ao lado do muro. Eles contavam com certa “proteção”, devido ao cargo administrativo do Dr. Lova no hospital local, como vimos acima.
Básia trabalhava com artigos de couro e graças a esses produtos conseguiu escapar da morte. Certo dia, estava manipulando suas peças quando nazistas invadiram o prédio. O oficial que primeiro entrou onde estavam manuseando o couro usava botas, luvas e casaco de um couro negro reluzente. Ao ver a produção de Básia, seu rosto se transformou em admiração e ele deu ordens para que aquelas pessoas não fossem evacuadas.
Com o cerco aos judeus se fechando, Básia, Jacob, Lova e Lipman buscavam uma forma de fugir do gueto. Conseguiram convencer uma mulher lituana, Stashia, que respeitava muito o Dr. Lova e trabalhara durante anos para a família Sztejnhauer, a escondê-los no porão da casa onde vivia. Mas ela impôs a condição de não trazerem Básia. O temor da lituana era que, sendo mulher, Básia não seria capaz de controlar suas emoções e poderia revelar o esconderijo. Se isso acontecesse, todos, inclusive ela, seriam fuzilados. Os nazistas consideravam crime punido com a morte esconder ou ajudar algum judeu.
A decisão que os Sztejnhauer teriam que tomar era terrível, mas Lova tinha certeza de que convenceria Stashia a mudar de ideia – o que de fato aconteceu. Logo após se mudarem para o esconderijo Básia se juntou a eles. Apenas Lipman estava em outro local. Um padre o ajudara a se esconder atrás do altar de uma igreja.
O período de estabilidade dentro do gueto durou até agosto de 1943, quando os alemães reiniciaram as deportações. Os nazistas “liquidaram” o Gueto de Vilna nos dias 23 e 24 de setembro, enviando os judeus remanescentes para os campos de trabalho na Estônia e as câmaras de gás de Maidanek.
Os Sztejnhauer, porém, haviam conseguido se salvar. Básia, Jacob e Lova continuavam escondidos no porão da casa de Stashia. Eles viviam em silêncio absoluto para não despertar a atenção de vizinhos e transeuntes. Para manter afastados possíveis curiosos, Stashia ainda espalhou nas redondezas o “boato” de que seu porão estava infestado de ratos gigantes. Habilidoso, Jacob usou a lenha que havia no porão para construir um cercado em seu interior, de modo que quem olhasse da janela, do lado de fora, do nível da calçada, veria apenas madeiras empilhadas. Como viviam cercados de lenha, eles corriam sérios riscos de morrer carbonizados, já que os alemães incendiavam as casas quando havia alguma suspeita de haver judeus escondidos. Por causa de um desses incêndios, Stashia teve de pedir ajuda aos vizinhos para acionar um hidrante antigo, evitando que as chamas chegassem a seu porão e consumissem sua “valiosa” madeira (cujo real “valor” só ela sabia). Milagrosamente, o hidrante enferrujado funcionou.
E assim se passaram meses, durante os quais Jacob, Básia e Lova aprenderam a conhecer as pessoas que andavam pela calçada através de seus sapatos. Stashia levava alimentos uma vez ao dia. Os banhos aconteciam mensalmente, quando o trio era escoltado, sob o mais absoluto silêncio, para dentro da casa onde ela vivia com a mãe (que não desconfiava do “crime” cometido pela filha).
Numa dessas ocasiões, oficiais nazistas chegaram à casa delas exigindo comida e bebida. Rapidamente, os Sztejnhauer se esconderam embaixo das camas. Stashia serviu os soldados, que foram embora, sem desconfiar das presenças “indesejáveis” ...
Em 13 de julho de 1944, após uma luta ferrenha com as forças alemãs, os soviéticos entraram em Vilna. A cidade havia sido libertada. Mas, dentre todos os judeus da cidade, apenas uns 2 a 3 mil judeus haviam sobrevivido à fúria nazista. Dentre eles, osSztejnhauer: Básia, Jacob, Lova e Lipman.
Finalmente, sairam de seus esconderijos. Mas, enquanto caminham pela calçada, Jacob e Básia são surpreendidos por soldados soviéticos. O casal afirma serem judeus. “Mentira!”, refutam os soviéticos. “Não sobraram judeus por aqui! ”. Acusados de serem colaboracionistas, de terem ajudado os alemães, são levados a um paredão para serem fuzilados. Mas, devido ao russo perfeito falado por Jacob, conseguem se salvar, mais uma vez. Em troca de sua vida, ele, Lova e Básia são obrigados a recolher os cadáveres espalhados pelas ruas da cidade.
Os Sztejnhauer decidiram deixar a Lituânia e recomeçar a vida em outro lugar. O Dr. Lova fez Aliá, estabelecendo-se como médico em Israel. Lipman, Básia e Jacob, após deixar a Lituânia, foram para a Romênia, dividindo o espaço em um vagão de trem de gado. Dali, seguiram para a Itália e o Uruguai, onde nasceu a primogênita de Básia e Jacob, AnaMichaela (Anita), e, finalmente, se estabeleceram no Brasil, onde tiveram outro filho, Joy. Lipman veio com eles, casou-se com uma israelense, chamada Sharona, mas não teve filhos.
Antes de deixar a Europa, Jacob se apossou de fotografias, provas concretas dos crimes cometidos pelos nazistas. Ele as trouxe consigo e as guardou.
S. Paulo, Brasil, 20 de setembro de 1995
A noite no clube A Hebraica havia sido maravilhosa. Pela primeira vez, Jacob ficara frente a frente com Yukiko Sugihara, a viúva do Cônsul. Mas a emoção foi grande demais para seu coração. Ao deixar a festa, ele disse ao filho que não se sentia bem. Seguiram para o Hospital Israelita Albert Einstein, onde Jacob sofreu um AVC. Anos depois, ele gravou um depoimento, com sequelas do AVC ainda visíveis, para o “Survivors of the Shoah”, projeto idealizado e realizado pelo diretor Steven Spielberg4.
Jacob Sztejnhauer morreu em 2003, aos 90 anos. Sua Básia faleceria em 2014, aos 91. “Ele não gostava de relembrar aqueles acontecimentos... Embora tenha ajudado a salvar tantas vidas, acho que se cobrava pelas que não conseguira salvar, como a de seus pais e sogros. Seu coração não aguentaria reviver tudo aquilo, como, de fato, não aguentou...”, revela o filho, Joy.
Voltando no tempo: Um cônsul com alma de samurai
Era o ano de 1940, milhares de judeus tentavam deixar a Lituânia. Assim que a população judaica de Kovno ficou sabendo da possibilidade de conseguir vistos de trânsito para o Japão, aglomerou-se em frente ao Consulado do Japão, na cidade. De centenas, a multidão chegou a milhares. O então cônsul Sugihara foi informado de que uma delegação judaica pedia para vê-lo. Era chefiada por Zerach Warhaftig, que, anos depois, foi um dos signatários da Declaração de Independência de Israel e se tornou Ministro dos Serviços Religiosos, de 1961 a 1974. Comovido com o desespero daquelas pessoas, Sugihara pediu autorização ao governo de seu país para emitir os vistos – o que lhe foi sumariamente negado por três vezes.
Sugihara encontrava-se em um dilema. Ou seguia obedecendo as ordens que recebera de seu país, agindo, dessa maneira, de acordo com a disciplina e educação rígidas sob as quais havia crescido, ou cedia aos apelos de sua ancestralidade de samurai, cuja filosofia milenar ensina: “Nem mesmo um caçador pode matar um pássaro que voa em sua direção, buscando abrigo”. Sugihara optou pelo segundo caminho.
Assim, como vimos acima, de 31 de julho a 28 de agosto de 1940, ele e sua esposa passaram horas escrevendo e assinando vistos de trânsito. Foram emitidos cerca de 4,5 mil vistos. Quando atingiu a marca dos 2 mil, o cônsul parou de registrá-los e de cobrar a taxa oficial. No final de agosto os soviéticos fecharam o consulado. Mesmo assim, Sugihara continuou a emitir vistos no quarto do hotel onde estava hospedado e, até mesmo de dentro do trem que deixou Kovno rumo a Berlim, em 1º de setembro de 1940. Quando o trem partiu, Sugihara ainda jogava vistos pela janela e entregou seu carimbo a um judeu, para que pudesse salvar ainda mais vidas.
Atualmente, calcula-se em mais de 40 mil o número de pessoasque devem a vida aos seus esforços. Profissional de carreira, Sugihara sofreu as consequências de sua escolha. Em 1945, o governo japonês o demitiu do serviço diplomático. Depois da guerra, a exemplo de Jacob Sztejnhauer, ele nunca mencionou seus feitos.
Apenas em 1979, seus atos seriam lembrados por um homem a quem havia ajudado a salvar, Yehoshua Nishri. Em pouco tempo, centenas de judeus se apresentaram creditando sua vida ao cônsul japonês. Seus depoimentos foram colhidos em todo o mundo e, então, Yad Vashem distinguiu seus atos de coragem. Em 1985, Sugihara e o cônsul holandês Jan Zwartendijk foram reconhecidos como “Justos entre as Nações”.
Já muito doente e idoso, Sugihara não conseguiu viajar a Israel para a homenagem, enviando sua esposa e seu filho caçula, Nobuki, para representá-lo. Chiune Sugihara faleceu em 31 de julho de 1986, aos 86 anos – cinco dias antes de que o Japão, por meio de seu então vice-ministro das Relações Exteriores, Muneo Suzuki, admitisse a grandeza de seu ato humanitário, pedindo desculpas formais à família. Sua viúva, Yukiko, morreu em 8 de outubro de 2008, aos 95 anos, em Fujisawa, no Japão.
Na homenagem que recebeu de Israel, Sugihara ganhou uma árvore plantada no Yad Vashem e em um bosque num parque em Jerusalém, com seu nome. A comissão responsável pela escolha da espécie a ser plantada no parque havia decidido que seriam cerejeiras, símbolo do Japão. Mas, de última hora, escolheram os cedros – tanto para a árvore quanto para o bosque no parque. Por sua resistência e conotação sagrada5, seriam uma espécie mais apropriada para homenagear a bravura daquele homem. O fato espantou a Sra. Yukiko e seu filho caçula, já que, “Sugihara”, em japonês, quer dizer bosque de cedros!
Naquele dia, ficou claro que a Hashgachá Pratit (Providência Divina) também homenageava Sugihara.
BIBLIOGRAFIA
Entrevista exclusiva concedida a Morashá pelo Sr. Joy Sztejnhauer, São Paulo, julho de 2018
Sugihara, Yukiko, Passaporte para a Vida (Ed. Notícias, Portugal, 1995)
Reportagem “Cônsul violou regras para salvar vidas”, jornal Folha de S. Paulo de 24 de setembro de 1995
Site United States Holocaust Memorial Museum, de Washington: www.ushmm.org (“Vilna”)
Site Yad Vashem: www.yadvashem.org (“Interview with Chiune Sugihara, recorded on August 4, 1977, in a Moscow hotel by Mr. Michinosuke Kayaba, the bureau chief of Fuji TV, Moscow” e “The Righteous Among The Nations: Sugihara Family”)