Os judeus figuravam entre os primeiros habitantes da recém-criada Fez, no final do século 8. Rapidamente, se tornaram parte integral da cidade, exercendo importante papel em todas as áreas. Sua vida e bem-estar, no entanto, estavam sempre à mercê dos governantes, e eles viveram períodos de estabilidade e prosperidade e outros de grande sofrimento. Importantes rabinos, sábios e cabalistas viveram em Fez, entre outros o Rabi Yitshak Al-Fassi e o próprio Maimônides. Hoje, apenas cerca de 150 judeus vivem na cidade.
Fez é localizada no Centro-norte do atual Marrocos, entre as cordilheiras do Rife e Médio Atlas. Juntamente com Rabat, Meknès e Marraquesh, é uma das Cidades Imperiais, assim chamadas por terem sido capital das dinastias islâmicas que governaram o Reino de Marrocos através dos séculos.
A história da comunidade judaica de Fez se inicia no século 9, logo após a fundação da cidade. Mas a presença de judeus na região do atual Marrocos é bem mais antiga. Há provas de que eles lá viviam a partir da destruição do Segundo Templo, em 70 E.C., e há pesquisadores que acreditam que a presença judaica remonte ao período do Primeiro Templo.
No século 7, quando o Norte da África foi conquistado por exércitos árabes, certamente havia judeus na região. A conquista muçulmana trouxe consigo o idioma árabe e o Islã, surgido por volta do ano 630. Embora fazendo parte do Império Islâmico, Marrocos era uma província subsidiária da província de Ifríquia1.
Para os judeus, a conquista árabe da região foi um período de grande sofrimento. Inúmeras comunidades foram devastadas, provocando a fuga de milhares de judeus, que somente retornariam no início do século seguinte.
A primeira dinastia islâmica sunita estabelecida surgiu quando Idris I (Idris ibn Abdullah) tomou o poder, em 788, e fundou o reino do Marrocos. Ele foi fundamental para a islamização de seus domínios, não poupando esforços na conversão de seus súditos ao Islã. Foi Idris I quem fundou a cidade de Fez, num wadi2 à margem direita do Rio Fez, tornando-a capital de seu reino.
Seu filho e sucessor, Idris II, famoso por seus dons intelectuais, mantinha boas relações com os judeus do reino, o que permitiu o desenvolvimento do judaísmo marroquino. Vinte anos após seu pai ter fundado a cidade, Idris II a funda novamente, dessa vez na margem à esquerda do Rio Fez. A chegada de 2 mil famílias árabes atribuiu à cidade seu caráter árabe.
Lá sediando seu governo, Idris II começa a unificar o Marrocos. Permite que os súditos judeus vivam em Fez e abre as portas da capital a judeus vindos de outros pontos do Norte da África, e para um grande contingente vindo de Andaluzia, cujas aptidões comerciais e ampla rede de contatos regionais foram instrumentais para enriquecer seu reino. Cedeu-lhes um bairro próprio, chamado de al-Funduq al-Yahud, o Mercado Judeu – garantindo-lhes proteção mediante pagamento de substancial quantia em ouro.
Não tardou para que a comunidade judaica se tornasse numerosa, próspera e respeitada. Um sinal da riqueza dos judeus de Fez foi o valor de 30 mil dinares – uma verdadeira fortuna à época – referente ao jizya, a taxa anual que tinham que pagar. A lei islâmica obrigava os não-muçulmanos, os dhimmis, a pagar altos impostos para terem permissão de viver em terras islâmicas. Tais tributos eram a maior fonte de ingresso nos cofres públicos e essa situação fiscal explica o interesse dos governantes na prosperidade judaica.
Após a morte de Idris II, em 828, seu reino é dividido entre seus herdeiros. Com a fragmentação do poder idríssida, o Marrocos entra num período turbulento. Com isso, a vida dos judeus se torna mais difícil e, em várias ocasiões, eles são alvo de violência.
No decorrer dos séculos seguintes, a região é palco de períodos de instabilidade política e militar. Com espantosa regularidade, uma dinastia suplantava outra e, na transição de poder, os períodos de paz eram substituídos por outros de turbulência e matança.
Toda a população era sujeita a grande sofrimento, mas eram os judeus os que mais sofriam. No mundo islâmico, os conflitos entre as dinastias eram exacerbados por disputas doutrinárias quanto ao rigor da aplicação da lei islâmica. E quando uma dinastia liberal era substituída por uma mais extremista, os judeus eram expostos aos riscos inerentes à sua condição de dhimmis. Sua vida e seu bem-estar estavam sempre à total mercê dos governantes, e o Marrocos e Fez não foram exceções a essa regra.
Por volta do ano de 987, os governantes deportam parte da comunidade judaica de Fez para Ashir, na Argélia. E, em 1033, quando a tribo berbere dos Maghrawa, originária da região que hoje é o Norte do Marrocos e a Argélia, conquista a cidade, seis mil judeus são massacrados, as mulheres judias deportadas e as propriedades da população judaica roubadas. Idêntica sorte caberia aos que residiam em outras cidades marroquinas.
No entanto, a comunidade judaica de Fez se reergue rapidamente. De acordo com uma estimativa, 90 mil judeus viviam na cidade no século 11. O viajante árabe al-Bakri3 relata em sua obra que a cidade tem mais judeus do que qualquer outra no Magrebe - em árabe, Al-Maghrib, que significa “poente” ou “ocidente”, é a região noroeste da África.
Um maiores Talmudistas de todos os tempos, Rabi Yitzhak Al- Fassi ha-Cohen, o RIF, viveu em Fez, no século 11. Seu sobrenome Al- Fassi significa, em árabe, “o natural de Fez”.
O RIF nasceu em 1013, em Kalat ibn Hamad, uma aldeia próxima a Fez, e, em 1045, mudou-se para a cidade, tornando-se líder e juiz da comunidade judaica de Fez. Rabi Al-Fassi revolucionou a erudição judaica e escreveu o Sefer haHalachot (Código de Leis), o primeiro códice fundamental sobre as Leis da Torá. Judeus vindos de todo o Norte da África acorriam para com ele estudar na Yeshivá que portava seu nome. Mas o Rabi Al-Fassi não passaria o restante de sua vida em Fez. No ano de 1088, com 75 anos de idade, foi forçado a fugir de sua terra natal.
Os Almorávidas e os Almôadas
Em 1068, os almorávidas conquistaram e saquearam Fez, matando muitos judeus. De temperamento violento, queriam aplicar com severidade a Lei Islâmica (Sharia). Por algum tempo, a situação dos judeus se tornou precária, mas, eventualmente conseguiram reconquistar o tratamento favorável.
A relativa tranquilidade, porém, chega ao fim, em 1147, quando os almôadas derrotam os almorávidas e conquistam o Marrocos. Tomam, sucessivamente, o Magrebe, grande parte da Península Ibérica e se mantêm no poder até 1269.
As invasões causaram destruição e sofrimento para os judeus sob domínio dos almôadas, (em árabe, al-Muwahhidun, ou seja, “os monoteístas”), totalmente intolerantes com os não-muçulmanos. Relatos da época falam de massacres, destruição e conversões forçadas.
Durante o terror dos almôadas Rabi Moshe ben Maimon, Maimônides, deixa Córdoba e vai para Fez, onde permanece por cinco anos. Em um de seus poemas, Rabi Ibn Ezra4 descreve a desgraça que se abateu sobre os judeus marroquinos, a quem os almôadas davam como opção a conversão, a morte ou o exílio. Foi o único período na história marroquina em que os judeus não podiam praticar sua religião. Milhares deixam a região, muitos encontrando refúgio em aldeias, ao sul de Marrakesh, onde podiam praticar o judaísmo abertamente. Centenas dos que permaneceram sob julgo almôada, optam pela morte.
A maioria, no entanto, para salvar a vida, aceita proforma o Islã, enquanto secretamente continua praticando o judaísmo. Um dos momentos mais dramáticos para a comunidade judaica marroquina foi quando, consultado sobre a escolha feita, um sábio que vivia fora do Marrocos deu uma resposta devastadora: teria sido melhor escolher a morte à conversão.
Maimônides, que, à época, já residia em Fez, levantou-se em defesa dos criptojudeus. Ele escreve a famosa “Carta sobre a Apostasia”, Igueret ha-Chamad, na qual rechaça, com veemência, a responsa do sábio. Na Carta afirma que o sábio devia desconhecer a realidade dos que viviam sob o jugo almôada. Ademais, afirma, no decorrer de nossa História outros judeus haviam sido forçados a aceitar, na aparência, uma fé que não era a nossa, fato que, pela Lei Judaica, não os transformara em não judeus. No entanto, o ideal seria que os judeus abandonassem os lugares onde fosse difícil praticar a nossa religião, abertamente, o que ele próprio fez em 1165, quando deixa Fez com sua família, indo para o Egito.
Com o passar do tempo, de fanáticos radicais os almôadas se transformam em governantes refinados. A situação dos judeus também melhora; no início do século 13 cessam as perseguições e, aos poucos, o judaísmo marroquino vai recuperando seu fôlego.
Os merínidas
Em meados do século 13, há mais uma mudança de política; os almôadas são removidos por uma nova dinastia berbere islâmica, os merínidas, que irá governar o Marrocos até o século 15.
Os novos governantes mudam a capital do reino de Marrakesh de volta para Fez. A cidade é ampliada e atinge seu apogeu. Em 1276, fundam Fez Jdid (Nova Fez), como um anexo murado a Fez el Bali (Antiga Fez). Na Nova Fez, são erguidos o esplendido palácio imperial e o méchouar, um recinto a céu aberto onde os sultões reuniam os ministros ou realizavam audiências públicas.São também erguidos imponentes palácios, residências e jardins, mesquitas e madraças. Todas as construções do período – suntuosas e com rica decoração ornamental – são o melhor exemplo dos estilos arquitetônicos mouro e marroquino.
Sob o governo dos merínidas, os judeus vivem um período de tranquilidade e prosperidade. Em Fez, eles desempenhavam um papel importante na economia local, e a comunidade passa a atrair judeus vindos de outras partes do Marrocos e do Norte da África.
Um fato importante para a história dos judeus marroquinos, é que, após o período almôada, não restam cristãos nativos no Marrocos. Sendo assim, a interdependência entre os sultões e os judeus – únicos dhimmis restantes – torna-se especialmente forte.
Em Fez e outras cidades importantes a segurança física e política da comunidade judaica estava nas mãos dos sultões, que por sua vez dependiam dos judeus para realizar serviços importantes, como a cobrança dos impostos, a cunhagem de moedas e os trâmites diplomáticos. Também funcionavam como mercadores reais, tendo o monopólio no comércio de certas mercadorias em países europeus.
Esse tratamento preferencial aos judeus e os laços que mantinham com o Sultão geram ressentimentos, ao ponto de incitarem um pogrom em Fez no ano de 1276. Mas a paz volta a reinar na cidade e a coexistência pacífica entre judeus e muçulmanos no Marrocos volta a imperar até o século seguinte.
Em meados do século 15, os merínidas começam a perder o controle sobre o país, tendo dificuldade em manter a segurança das comunidades judaicas. A situação se torna insustentável quando em 1438, as massas muçulmanas atacam, uma vez mais, a população judaica da cidade, provocando muitas mortes. Os judeus são falsamente acusados de ter introduzido garrafas de vinho em uma mesquita. O sultão intervém e, para protegê-los de distúrbios recorrentes, realoca-os em Fez Jdid, na parte murada da cidade, próxima ao palácio real. O bairro, construído sobre uma antiga mina de sal, era chamado de mellah (sal, em árabe), numa referência a jazidas de sal ou pântanos de sal. As residências dentro do mellah se distinguiam das muçulmanas por suas janelas para o exterior e varandas de madeira e de ferro batido. Durante um longo período o mellah de Fez continuou a ser o único existente no Marrocos. Somente na segunda metade do século 16 (por volta de 1557) é criado o segundo em Marrakesh.
Quando o bairro judeu foi criado, não havia nada de depreciativo no termo mellah. Pelo contrário, suas casas grandes e belas eram as residências preferidas pelos “agentes e embaixadores de príncipes estrangeiros”. Posteriormente, contudo, a palavra mellah assumiu conotações pejorativas. A etimologia popular “transformou-a” em “terreno salgado e amaldiçoado”, ou o local onde os judeus “salgavam a cabeça dos rebeldes que decapitavam”.
Com a queda dos sultões merínidas, volta a anarquia política e o fanatismo. E nem no mellah os judeus de Fez estão a salvo. Em 14 de maio de 1465, os líderes religiosos islâmicos organizam um jihad, “uma guerra santa”, contra Aaron ben Batash, vizir judeu nomeado primeiro ministro pelo Sultão Abu Muhammad Abd Al-Haqq para colocar no prumo as finanças públicas. O Sultão e ben Batash são assassinados e quase toda a comunidade judaica, dizimada. Esta somente iria se recuperar com a chegada dos refugiados da Espanha.
A chegada dos Sefaradim
Em virtude da proximidade do Marrocos com a Península Ibérica, seus governantes eram intimamente ligados aos acontecimentos na Espanha, onde, na Idade Média, vivia a maior e mais próspera população judaica do mundo. Mas, com o avanço da Reconquista pelo Reis Católicos, os judeus foram sendo cada vez mais perseguidos. Após uma onda de violência antissemita em 1391, muitos deles buscaram refúgio no Marrocos, onde a dinastia reinante merínida os favorecia.
Os sefaraditas, chamados de megorashim,, “exilados” ou “expulsos”, se estabelecem principalmente no litoral Norte, onde se tornam a maioria. Um grande número de sefaraditas se estabelece em Fez. A princípio, os toshavim, “habitantes do lugar”, como eram chamados os judeus que viviam na região há séculos, tratam os megorashim com desconfiança. Estranham seus hábitos, seus min’haguim; até o idioma era diferente, pois enquanto os sefaraditas falavam espanhol ou português, os toshavim se comunicavam em judeu-árabe.
A sinagoga Ibn Danan, recentemente restaurada, foi fundada no século 17 pelos megorashim e, de acordo com uma tradição local, eles decidiram construir uma sinagoga própria pois os judeus locais se recusavam a deixá-los frequentar as suas. A sinagoga Slat Alfassiyine (Oração dos habitantes de Fez) foi fundada no século 17 pelos judeus da cidade. As duas sinagogas ficavam a uma quadra de distância, uma da outra.
Com o passar do tempo, a influência dos sefaraditas espalha-se por todo o país e muitos de seus costumes se tornam a regra. Em Fez, cabia aos sefaradim a importante função de Naguid5, criada na cidade no início do século 16. A maioria das ieshivot eram dirigidas por eruditos sefarditas, entre os quais Rabi Nachman B. Sunbal, Rabi Samuel Chaguiz, Rabi Judah Uzziel, Rabi Shaul Judah, Rabi Chayyim Ibn Atar e Rabi Samuel Sarfaty. Havia, também, famosos dayanim, juízes das cortes religiosas. Muitos de seus rabinos lecionaram em comunidades do exterior.
Fez se torna, também, eminente centro da Cabalá espanhola, pois renomados cabalistas lá se estabelecem e produzem importantes obras. As contribuições mais duradouras à disseminação da Cabalá se devem aos membros da família Azulai, que se estabeleceu em Fez após a expulsão da Espanha, em especial a Abraham ben Mordechai Azulai (l570-1644), já nascido na cidade.
No Marrocos, difundiu-se o estudo de partes do Zohar (literalmente, “Esplendor” ou “Brilho”). A Cabalá espanhola baseia -se na centralidade dessa obra compilada por Rabi Shimon bar Yochai. De acordo com os ensinamentos cabalistas, os Tzadikim, os “Justos”, são considerados a “pedra fundamental do mundo”, e não pode ser considerada completa nenhuma discussão sobre os costumes religiosos e o folclore do judaísmo marroquino sem a compreensão da profunda convicção arraigada nesses judeus: a veneração pelos Tzadikim.
Com o tempo, apesar da enorme influência dos oriundos de Sefarad sobre a vida religioso-cultural das comunidades judaicas do Marrocos, eles próprios acabam por assimilar aspectos da cultura judaica local, criando uma nova síntese tipicamente marroquina, assim como um novo dialeto hebreu-hispano-marroquino, chamado de Haquitia. Uma curiosidade sobre o dialeto é a explicação para seu nome, que seria proveniente de Haquito, diminutivo de Itzhakito, do nome Itzhak, muito usado pelos judeus de origem espanhola. Seria, pois, a Haquitia, o idioma dos “Yitzhaks”, ou seja, dos judeus. Mas talvez a explicação mais correta seja mesmo a de que o nome provenha de uma palavra árabe, Haka, conversa, narração – com seu sufixo em castelhano.
Na segunda metade do século 16, Fez perde sua importância política e econômica, o que faz com que muitos judeus sefarditas de posses deixem a cidade. A chegada de 1.300 abastadas famílias de toshavim muda a composição comunitária de Fez, que perde seu caráter sefaradita. A maioria de seus membros trabalham como ourives, na manufatura de fio de ouro, fabricação de rendas, confecção de bordados e na alfaiataria.
A dinastia saadiana, que assume o poder nesse século, é castigada por instabilidade política e ataques militares, e continua a luta contra a dominação estrangeira, fazendo com que o Marrocos continue a ser o único país do Norte da África a não ser ocupado pelo Império Otomano. Para financiar suas atividades militares, os sultões saadianos impõem pesados tributos aos judeus. E, para assegurar que eles tenham recursos adequados para pagar esses impostos, dão aos mercadores judeus o monopólio das exportações de açúcar. Esses mercadores são também responsáveis por um grande percentual das importações de tecidos e armas da Europa. Os judeus também desempenham um papel fundamental no comércio das caravanas com a África Subsaariana, financiando as trocas comerciais de tecidos e cereais europeus por ouro, penas de avestruz, goma arábica e marfim.
A Era Moderna
No século 17, instala-se no poder nova dinastia, originária do Sudeste marroquino, os alaouitas. Essa dinastia está no poder até hoje e é considerada descendente do Profeta Maomé.
Moulay Rachid, primeiro mandatário alaouita, toma o poder na década de 1660. Após colocar as rotas de caravanas no Marrocos Oriental e Ocidental, sob seu domínio ele consegue a cooperação dos mercadores judeus no financiamento de seu novo reino.
Fontes judaicas relatam a “dança” das fortunas judaico-marroquinas na Era Moderna. Durante o reinado do sultão Moulay Ismail, quando o Marrocos atinge seu apogeu, dois dos mais importantes conselheiros são judeus – Moshé Ben Attar e Youssef Memran. Mas, em 1727, com a morte de Ismail, o país entra em um período de anarquia durante o qual são arrasadas comunidades judaicas inteiras. E, se sob o sultanato de Mulay Muhammed (1757-1790), os únicos diplomatas enviados a países ocidentais são judeus, e o Sultão aumenta constantemente a importância econômica e política da comunidade judaica, seu filho, Mulay al-Yazid, nutre intenso ódio a eles. Mulay al-Yazid foi responsável pelo massacre de milhares deles em Tetuan, Marrakesh, Fez e Meknès. O pior tratamento é reservado aos judeus de Fez e Meknès. Em Fez, o sultão ordena a destruição das sinagogas e a pilhagem da comunidade, e a expulsão dos judeus da cidade. Seu retorno é autorizado dois anos depois, mas a comunidade havia sido reduzida a um quarto do que era, anteriormente.
À medida que a dinastia alouita desenvolve ligações comerciais e diplomáticas mais estreitas com as nações da Europa Ocidental, torna-se preponderante o papel dos grandes comerciantes judeus. Eles obtêm dos sultões o virtual monopólio do comércio ultramarino e se tornam responsáveis pela diplomacia do país. Os judeus, únicos intermediários plausíveis entre o mundo islâmico e o europeu, também eram indispensáveis para os europeus. Dentre estes últimos, aqueles que viajavam a Fez ou lá viviam tinham contato mais próximo com os judeus do que com os muçulmanos, e quase todos os relatos sobre Fez e o Marrocos, em geral, nos séculos 18 e 19, contêm alguma menção aos judeus e seus costumes. Alguns oferecem detalhadas descrições de suas residências, joias, casamentos e beleza das mulheres judias.
Assim como em outros países do Oriente Médio e do Norte da África, para proteger seus interesses, as nações europeias instalam consulados que podiam estender sua proteção a representantes e funcionários locais, via de regra, judeus. Tal “representação judaica” dos poderes europeus provoca um forte ressentimento entre as massas islâmicas, fazendo com que a comunidade passe a servir de bode expiatório. “Estimulado” pelos europeus, em 1864 o Sultão Sidi Mohammed emite um decreto real ordenando que os judeus sejam tratados como iguais perante a lei, com justiça e imparcialidade, sob pena de condenação para quem assim não proceder.
Nesse período, graças aos esforços de Rabi Abner Sarfaty e Rabi Isaac Ibn Danan ressurge em Fez o interesse pelos estudos judaicos. Rabi Ibn Danan provinha de uma prestigiosa dinastia rabínica original de Granada, na Espanha. Com o passar dos anos, essa família de eruditos compilou os Divre ha-Yamim shel Fas (Crônicas de Fez), narrando a história da comunidade de Fez e de como judeus ibéricos haviam sido expulsos da Espanha e se tornado parte da comunidade judaica marroquina.
Na Era Moderna se tornam cada vez mais profundas as diferenças econômicas e sociais entre os membros da comunidade de Fez. Enquanto os diplomatas ou grandes comerciantes formavam uma pequena, mas poderosa, classe alta, a maioria da população era composta de vendedores ambulantes, pequenos artesãos e ourives, e vivia em grande penúria, assim como seus vizinhos muçulmanos.
Em busca de um futuro melhor, a partir do século 19 inicia-se um intenso processo de emigração para a Europa, América do Sul, destacadamente para a Amazônia, e para Eretz Israel.
No início do século 20, a comunidade judaica de Fez contava com 12 mil pessoas. Havia muitas escolas judaicas, cinco ieshivot e uma escola francesa, fundada pela Alliance Israëlite Universelle e financiada pelos dignitários comunitários, além de uma importante sociedade beneficente.
No dia 30 de março de 1912, o sultão Abdelhafid assina o Tratado de Fez, através do qual cedia a soberania de partes do Marrocos à França. Passadas cerca de duas semanas, os judeus são alvo da fúria muçulmana.
Apesar dos avisos de uma revolta, a maior parte das tropas francesas é instruída para deixar Fez, e, estranhamente, a Autoridade Militar Francesa confisca todas as armas em posse de judeus.
Na manhã de 17 de abril, as autoridades francesas anunciam as novas medidas para os soldados muçulmanos. Muitas unidades se amotinam causando total perda de controle. Os soldados atacam seus comandantes franceses, e depois abandonam seu quartel e atacam os bairros europeus e judaicos da cidade. Para os judeus, os eventos ficaram conhecidos como o “Tritel”, enquanto que para os franceses como “Les Journées Sanglantes de Fès” (Os dias sangrentos de Fez). Milhares de soldados marroquinos entram no mellah, deixando um saldo de 50 judeus mortos e suas propriedades, saqueadas e incendiadas. Morrem também nos distúrbios 66 europeus e 600 marroquinos.
A 2ª Guerra Mundial
Em agosto de 1941, o Governo de Vichy, na França, promulga, no Marrocos, leis que discriminam a população judaica, determinando quotas de médicos e advogados judeus, expulsando os alunos judeus das escolas francesas e obrigando os judeus que viviam nos bairros europeus a viver nos mellahs.
Quando as autoridades francesas ordenam o recenseamento de todas as propriedades judaicas no país, a liderança judaica teme que fosse isso fosse o precursor de um confisco geral. Secretamente, o sultão Mohammed V consegue esconder no palácio um grupo de judeus proeminentes, dentro de um vagão coberto, para que pudesse reunir-se com eles longe dos olhos das autoridades francesas de Vichy. Segundo relato de um dos presentes, ele promete aos judeus a sua proteção, assegurando-lhes que aquele recenseamento não era o primeiro passo de um plano para confiscar seus bens e propriedades. Porém, Mohammed V não podia agir totalmente conforme sua vontade, pois estava à mercê dos franceses de Vichy que controlavam seu reino. Com isso, acabaram por ser aprovadas e postas em prática certas medidas discriminatórias e os judeus foram deportados para campos de trabalho no Saara.
Após a conclusão da Operação Tocha, em que as forças Aliadas abrem uma nova frente de batalha contra os alemães ao desembarcarem na costa norte-africana, em novembro de 1942, o Marrocos fica em mãos da França Livre, e as restrições contra os judeus são renovadas.
Com o término da 2a Guerra, os marroquinos esperavam que as potências estrangeiras abandonassem o Marrocos à sua independência. No entanto, isso não ocorre. Em 1944, o sultão Mohammed V apoia um manifesto nacionalista, exigindo independência plena, reunificação nacional e uma constituição democrática. Mas, a França somente abriria mão de seu protetorado no Marrocos em 7 de abril de 1956.
Em 1947 e 1948, em resposta à retórica árabe anti-judaica na esteira da criação do Estado de Israel, e a irrupção do conflito árabe-israelense, o sultão Mohammed V alerta os muçulmanos para que não ataquem os judeus do Marrocos, lembrando-lhes que estes sempre tinham sido protegidos em seu reino e sempre haviam demonstrado sua devoção ao Trono. Enfatiza que eles eram súditos respeitados que apoiavam o Sultão. Seu pronunciamento é lido em todas as sinagogas do país.
Mas a tensão associada à Guerra dos países árabes contra Israel e o início da emigração marroquina para Israel contribuem para a eclosão de pogroms nas cidades de Oujda e Djerrada, em junho de 1948. Os ataques provocam 8 mortes, 600 feridos e 900 pessoas desabrigadas na comunidade judaica de Oujda. Já em Djerrada, são 39 mortos e 44 feridos.
O Marrocos, que foi a pátria para mais de 250.000 judeus na primeira metade do século 20, hoje conta apenas com cerca de 3.000 judeus no país, apenas 150 dos quais vivem na outrora vibrante Fez.
Sem sombra de dúvidas, o Marrocos é o país islâmico mais pró-Israel – apesar do fato de que vertentes cada vez mais expressivas da sociedade conclamem à não-normalização das relações com o governo de Jerusalém.
Bibliografia
Stillman, Norman A, The Jews of Arab Lands: A History and Source, Jewish Publication Society of America
Stillman, Norman A, Jews of Arab Lands in Modern Times, 2003
Marglin, Jessica M., Across Legal Lines:
Jews and Muslims in Modern Morocco, 2016. Ebook Kindle
Goldenberg, André, Art and the Jews of Morocco
1Ifríquia ou Ifriquia é, na história do Islamismo medieval, um território do Norte de África, e corresponde à atual Tunísia, noroeste da Líbia e nordeste da Argélia.
2Wadi - um leito seco de rio no qual as águas correm apenas na estação das chuvas.
3 Al-Bakri (c. 1014-1094) foi um historiador árabe de Andaluzia. Considerado o maior geógrafo do mundo muçulmano.
4 Rabi Ibn Ezra – Abraham ben Meir Ibn Ezra (1089- 1167) viveu na Espanha e foi grande erudito em Torá, conhecimento artísticos e seculares.
5 Naguid – palavra hebraica para príncipe ou líder. Título aplicado ao líder religioso nas comunidades sefarditas.