A saga dos judeus na Espanha acabou tragicamente em 1492, quando os Reis Católicos determinaram que nenhum deles poderia mais viver em seus domínios. Mais de 200 mil tiveram que decidir entre se converter ou deixar o país. Uma extraordinária civilização foi abruptamente desarraigada, mas não desapareceu, pois os judeus expulsos levaram seus conhecimentos, sua sabedoria e tradições para outras terras. 

Hoje, após 553 anos, a Espanha decidiu ser hora de corrigir aquilo que, nas palavras do Ministro da Justiça espanhola, Alberto Ruiz-Gallardón, tinha sido “o maior erro da história espanhola”.

A história dos judeus em Sefarad, como é chamada a Espanha em hebraico, foi longa e rica, marcada por épocas áureas e outras de terror, à medida que romanos, visigodos, muçulmanos e cristãos se sucediam no poder. Foi durante o domínio muçulmano omíada que floresceu, em Sefarad, uma comunidade judaica famosa, tanto por sua sabedoria e conhecimentos quanto por sua importância econômica e política. Em terras ibéricas surgiram vários dentre os maiores sábios e poetas de toda a história judaica.

Sob os califas omíadas, enquanto os judeus que viviam sob o domínio cristão eram sistematicamente perseguidos, a comunidade judaica de Sefarad floresceu, tornando-se o mais importante centro cultural e religioso do mundo judaico e produzindo milhares de obras, seja no campo da filosofia e teologia judaica seja em todos os ramos da ciência e da literatura. Graças a seu conhecimento da língua e cultura árabe, assim como das línguas latinas e o hebraico, os judeus espanhóis se tornaram emissários das atividades científicas e culturais da Espanha islâmica no restante da Europa.

A erudição e sede pelo conhecimento dos judeus sefaraditas iam muito além de sua excelência nos campos da Torá, do Talmud e da língua hebraica. Incluíam, harmoniosamente, todos os outros ramos do conhecimento humano. Para os sefaraditas, o judeu “ideal” combinava uma fé absoluta nas Leis e preceitos judaicos, vivo interesse por sua teologia e filosofia e elevado apreço pela cultura geral e ciências naturais. Sábios e eruditos judeus eram, também, grandes médicos, poetas, filósofos, matemáticos, cartógrafos e astrônomos, além de servir os califas e príncipes como ministros, vizires e generais. Suas contribuições à civilização mundial foram tão significativas que nos influenciam até o presente dia.

Morashá não poderia relatar em uma única edição, ainda que resumidamente, a história dos judeus de Sefarad, suas contribuições ou suas mais importantes figuras. Optamos, portanto, por dividir essa história em períodos que serão publicados nas próximas edições.

Primeiros assentamentos

Os primórdios da vida judaica em Sefarad são envoltos em lendas. De acordo com as tradições dos judeus ibéricos, suas raízes na Península Ibérica remontam à época do rei Salomão. Por volta de 970 antes da Era Comum (AEC), após o rei selar uma aliança com Hiram, rei de Tiro, mercadores judeus, a bordo de embarcações fenícias, tornaram-se ativos comerciantes nas terras que circundavam o Mar Mediterrâneo, estabelecendo entrepostos em suas margens e chegando até a Península Ibérica. E, ainda segundo uma tradição, Adoniram, emissário e general do rei Salomão, foi enterrado em Murvierdo. De acordo com o Tanach1, já no século 10 AEC eram rotineiras expedições para a Península. Ainda no Tanach , no versículo 20 do Livro de Ovadia, o profeta menciona Sefarad quando se refere aos “judeus exilados de Jerusalém”. Segundo uma tradição que perdura até hoje, algumas das famílias aristocráticas do Reino de Judá, ao serem deportadas pelos babilônios no século 6 AEC, assentaram-se no litoral da Espanha.

Apesar das especulações sobre o ano em que os judeus se estabeleceram na Península Ibérica, sabe-se, com certeza, que lá havia inúmeros deles quando a região fazia parte dos domínios de Roma. Os romanos haviam invadido a Península, por volta de 220 AEC, e, no início do 1º século EC, estava sob seu domínio toda a Hispânia, nome com o qual os romanos designavam a Península Ibérica. Após a derrota judaica durante as Guerras judaico-romanas (70 e 135 EC), os Imperadores Vespasiano e Adriano para lá despacharam milhares de prisioneiros judeus. Uma estimativa, considerada “exagerada” pelos historiadores, chegou a avaliar em 80 mil o número de judeus prisioneiros enviados à Hispânia nesse período. Outros milhares fugiram de Eretz Israel, buscando refúgio em Sefarad, e, nas décadas seguintes, houve uma substancial imigração judaica tanto vinda do norte da África quanto do sul europeu.

Moedas judaicas encontradas em Tarragona são prova da existência dos primeiros assentamentos judaicos. Fontes judaicas, como o Midrash Leviticus Rabá 29:2, mencionam uma “volta da Diáspora” da Espanha no ano 165 EC. Porém, a mais antiga prova concreta da presença judaica na Península é uma lápide datada por volta do 2º século, com inscrições em hebraico, latim e grego, encontrada em Tortosa. O texto hebraico diz “Paz para Israel... Esta é a tumba de Meliosa, filha de Yehuda e (?) Miriam (..)”. Outra lápide datada do século 3, foi encontrada em Adra, à leste de Granada, pertencente ao túmulo de uma criança de nome Annia Saomónula. A inscrição em latim a identifica como sendo uma Judaea (menina judia).

Seguramente, no final do século 3,era grande o número de judeus em várias partes da Hispânia, especialmente nas regiões de Granada, Córdoba e Sevilha, ao Sul, Toledo e Barcelona, ao Norte. Achados arqueológicos revelam que os judeus viviam em comunidades prósperas e organizadas. No período romano, sua vida era relativamente tranquila, pois o judaísmo era uma religio licita – religião lícita, permitida. Cada comunidade podia, entre outros, estabelecer sinagogas, cemitérios, cobrar impostos, bem como manter tribunais para julgar disputas entre os membros da comunidade. Mas, a situação foi-se modificando à medida que o Cristianismo, que no final do século 3, já era uma força poderosa no Império Romano, passou a ser adotado pela população hispano-romana.

No início do século 4, a Igreja na Hispânia estava suficientemente fortalecida para convocar, em 303, o Concílio de Elvira, o primeiro entre todos os que viriam a seguir. Entre os cânones adotados estava a proibição de cristãos se casarem com judeus, viverem com eles ou comerem juntos. As determinações de Elvira revelam tanto o reconhecimento por parte da Igreja do tamanho e importância da comunidade judaica, quanto o fato de que os judeus já eram vistos pela Igreja como “nocivos“. Os bispos viam com preocupação o fato de estarem bem integrados na sociedade e de manterem relações amigáveis com os cristãos.

No entanto, apesar do fortalecimento da Igreja na Hispânia e no resto do mundo romano, já que o cristianismo se tornara, em 313, a religião oficial do Império através do Édito de Constantino, os cânones não possuíam força legal e os judeus e cristãos continuaram a coexistir em harmonia na Ibéria Romana. Mas, a Europa estava prestes a passar por grandes mudanças.

No final do século 4, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o do Ocidente, cuja capital era Roma, e o do Oriente, o Império Bizantino. O Império Romano do Ocidente não sobreviveria às invasões dos bárbaros nos séculos seguintes.

O domínio visigodo

A administração romana manteve-se na Hispânia até o início do século 5, quando a região foi invadida por bárbaros. Em 419 os visigodos conquistaram grande parte da Península. Mantendo o nome Hispânia, o poder dominante estabeleceu, em Toledo, o centro político do seu novo reino. O período visigodo, que duraria três séculos, foi marcado por agitação política, para não dizer uma verdadeira anarquia.

Os séculos em que os judeus viveram sob domínio visigodo estão entre os mais obscuros da história judaica. Sabemos que em Sefarad vivia uma comunidade integrada e afluente. Até Recaredo se tornar rei, em 586, a vida dos judeus não sofreu mudanças drásticas. Até então os visigodos praticavam o arianismo, uma forma de cristianismo considerado herético pela Igreja Católica, por negar a Trindade, e não viam os judeus como um elemento “perigoso” para a sociedade.

O fato de os governantes visigodos não terem conseguido estender sua autoridade muito além de Toledo seria determinante na decisão de Recaredo de adotar o Cristianismo normativo da Trindade (Catolicismo). Ao se converter, ele passou a controlar a Igreja Católica com representantes espalhados por todo o reino, já que era prerrogativados reis nomear bispos e convocar os Concílios em Toledo. Em teoria, ao controlar a Igreja, os reis visigodos controlariam toda a Hispânia.

Em 589, Recaredo convocou o 3º Concílio de Toledo, dando início ao domínio católico na Península. Um objetivo do Concílio era eliminar a influência judaica na população cristã. Entre outros, os judeus não podiam ocupar cargos públicos, tampouco se casar com cristãos. Ele também proibiu os judeus de possuírem escravos cristãos, e, num segundo momento, de contratar cristãos para serviços pagos.

Os dois séculos que se seguiram figuram entre os períodos mais difíceis na história judaica e foram um prenúncio ameaçador das futuras políticas espanholas contra os judeus. E concílio após concílio realizado em Toledo, promulgavam decretos antijudaicos, com crescente ferocidade.

Em 616, o 3º Concílio determinou que todos os judeus que se recusassem a se converter fossem punidos com 100 chibatadas. Se teimassem em não aceitar o batismo, teriam seus bens confiscados e seriam expulsos do Reino. Os resultados foram devastadores. Crianças judias eram tiradas de seus pais, que eram impedidos de deixar o país. Muitos conseguiram fugir, mas grande parte da população judaica – mais de 90 mil, viram-se forçados à conversão. Centenas morreram em atos de Kidush Hashem. Porém, a maioria desses conversos, chamados em hebraico de anussim (coagidos), mantinham sua identidade judaica em segredo. Nascia em solo espanhol o criptojudaísmo, uma prática que seria adotada, no futuro, por milhares de judeus que foram forçados a se converter.

Dez cânones do 4º Concílio, convocado, em 633, diziam respeito a judeus e criptojudeus. Apesar dos bispos reconhecerem a imoralidade e ilegalidade das conversões forçadas, determinaram que os judeus batizados não poderiam retomar sua fé “por causa da natureza imutável do batismo”. Portanto, cabia à Igreja forçar os criptojudeus a se tornarem cristãos de fato. Para a Igreja, os judeus secretos já representavam uma ameaça ainda maior do que os que nunca haviam sido batizados. Medidas cada vez mais severas foram adotadas em relação a qualquer “judeu batizado” que fosse descoberto tendo “uma recaída”. Entre outros, lhe seriam tirados seus filhos, que seriam entregues a um monastério para serem criados como “verdadeiros cristãos”.

Em 638, o 6o Concílio determinou que a punição para os conversos que não seguissem os cânones da fé cristã seria a fogueira ou o apedrejamento. E o 9o, realizado no ano de 654, trouxe a obrigatoriedade por parte de todo cristão de vigiar os conversos como forma de garantir que realmente haviam abandonado os costumes judaicos. As bases da futura Inquisição espanhola estavam sendo traçadas.

No entanto, apesar de todos os esforços, os reis visigodos não conseguiram converter os judeus em massa nem tampouco extirpar o criptojudaísmo. Além da Coroa não ter muito controle sobre as terras além de Toledo, muitos dos nobres visigóticos prestavam pouca atenção às leis da Igreja e necessitavam dos serviços dos judeus para dirigir suas propriedades e feudos. Consequentemente, os judeus que viviam distantes de Toledo desfrutavam de um grau maior de liberdade do que os que habitavam aquela cidade ou as outras de grande porte, onde a autoridade da Coroa ou a presença da Igreja eram muito fortes.

Os últimos reis visigodos adotaram medidas cada vez mais perniciosas. Tentaram, novamente, forçar os judeus a aceitar o batismo, ameaçando-os com a expulsão. As medidas adotadas pelo rei Egica (687–702) foram especialmente cruéis. Entre outros, declarou escravos todos os judeus, batizados ou não, dando-os “de presente” aos cristãos. Crianças judias com mais de sete anos (certas fontes afirmam que menores, também) foram tiradas de seus pais para serem criadas como cristãs, para, no final, serem escravizadas.

Não é de se estranhar que os judeus recebessem os invasores muçulmanos como libertadores. Uma nova era de muitas realizações tem início para os judeus de Sefarad ao passar da esfera de domínio cristão para o domínio islâmico.

A invasão islâmica

A expansão muçulmana, iniciada após a morte de Maomé, atingiu a Península Ibérica no início do século 8. Na época, a monarquia visigótica estava enfraquecida pelas lutas internas. De acordo com muitos historiadores, entre as facções em luta estaria o filho do falecido rei, não conformado pelo seu afastamento do poder. Esta facção apelou ao governador omíada, da Ifríquia2, Musa ibn Nusair,que intercedesse na guerra civil. Este último enviou o General Tarik ibn Ziyad à península. O objetivo mouro3, porém, não era apenas interceder na luta interna, mas tomar a península.

Em 30 de abril de 711, chefiando um exército de 12 mil homens, em sua maioria composto por berberes norte-africanos, Tarik desembarcou no rochedo que, posteriormente, foi chamado de Jabal Tarik (“monte de Tarik”), que hoje é conhecido como Gibraltar.

Divididos, os visigodos foram facilmente vencidos, em julho, na Batalha de Guadalete (em Jerez de la Frontera), no primeiro embate entre visigodos e muçulmanos. Sabe-se que havia inúmeros judeus vindos do norte da África lutando em Jerez, sob o comando de Kaula al-Yahudi, general judeu nomeado por Tarik.

Os invasores avançavam rapidamente. Em 712, as forças de Musa ibn Nusair se juntaram às de Tarik. Prosseguindo em direção ao Norte, os invasores capturaram Toledo e Córdoba, em outubro do mesmo ano; Saragoza, em 714; e Barcelona, em 720. No decorrer de dez anos, os mouros assumiram o controle de uma parte substancial da Península, que chamaram de Al-Andaluz ou Andaluzia, e que passou a fazer parte do imenso Império Islâmico, controlado pela dinastia Omíada. Não conseguiram, porém, dominar parte do noroeste da atual Espanha e parte do norte do que é hoje Portugal, que permaneceram em mãos dos reis cristãos.

De acordo com cronistas muçulmanos, grande parte da população cristã fugira antes da chegada dos mouros, ficando apenas os judeus. Enquanto os invasores prosseguiam em suas conquistas, as cidades eram deixadas a cargo de judeus que atuavam como uma milícia. As cidades de Córdoba, Málaga, Granada, Toledo e Sevilha foram confiadas aos cuidados dessas milícias. Devido à sua grande população judaica, Sevilha tornou-se conhecida como “Villa de Judíos” (Cidade dos Judeus). Estes se estabeleceram também, nas zonas agrícolas, pois não era raro receberem dos invasores propriedades agrícolas pertencentes a cristãos em fuga diante do avanço mouro.

Não há dúvida de que os judeus cooperaram com os invasores muçulmanos, pois sua chegada colocara um fim às violentas perseguições sofridas sob os visigodos. É preciso ressaltar, porém, que eles não “convidaram” os mouros a invadir a região, nem “entregaram-lhes” a Espanha. Tais acusações perniciosas foram disseminadas pelos cristãos durante a Idade Média para “explicar” a queda da Península Ibérica em mãos dos invasores muçulmanos, como resultado da “traição e perfídia judaica”.

Apesar de os muçulmanos serem uma minoria em Al-Andaluz, e grande parte da população ser composta de cristãos e judeus, as leis islâmicas ditavam a vida de todos. O Islã permitia que judeus e cristãos lá vivessem na condição de dhimmis, assim como em qualquer outra parte do mundo islâmico. Isto implicava aceitar a supremacia do Islã e se submeter ao Estado muçulmano que, em troca, garantia-lhes a vida, a propriedade e o direito de praticar sua religião. Em contrapartida, tinham que cumprir uma série de obrigações, conhecidas como o Código de Omar, cujo rigor variava ao bel-prazer e de acordo com os interesses dos governantes. Em teoria, os dhimmis viviam em constante risco, já que a al-Adhimma apenas suspendia temporariamente o “direito” do conquistador de matar o conquistado e de lhe confiscar a propriedade.

Mesmo sendo considerados cidadãos de segunda classe, para os judeus de Andaluz a vida era bem melhor do que havia sido sob os visigodos. Entre a chegada dos mouros, em 711, e a invasão dos almorávidas, em 1086, não houve uma política antijudaica – ainda que o relacionamento entre as autoridades muçulmanas e os judeus não fosse perfeito.

O Califado Omíada em al-Andaluz

Em 750, uma nova dinastia islâmica, os abássidas, tomou o poder aos omíadas, passando a governar o vasto Império Islâmico. Ao fazê-lo, os abássidas procuraram eliminaram todos os príncipes omíadas. Apenas Abd-al-Rahman conseguiu escapar, refugiando-se, inicialmente, no norte da África, e, em momento posterior, em Al-Andaluz.

Após rapidamente derrotar seus opositores ele assume o poder. Funda, em 756, o Emirado Omíada de Al-Andaluz, tendo Córdoba por capital. O emirado floresceu comercial e culturalmente durante o século 8, apesar das insurreições instigadas pelos abássidas e as incursões militares dos francos e de forças cristãs do Reino das Astúrias.

Para os habitantes da Al-Andaluz, o século 10 foi um período de grandes avanços culturais e econômicos. Enquanto o resto do continente europeu afundara na ignorância e no obscurantismo, no longo período de trevas imposto pela Igreja, em Al-Andaluz floresceu uma civilização altamente sofisticada e requintada, baseada em uma cultura cosmopolita e secular. Esse período de florescimento cultural imprimiu uma marca profunda na civilização ocidental e nos judeus espanhóis, que iriam criar as bases de uma cultura inigualável.

Em 929, Abd al-Rahman III elevou o emirado ao status de califado e cortou os vínculos políticos com Bagdá. O califa, cuja mãe era europeia, foi um governante extraordinário. De acordo com a tradição, sua grandeza havia sido profetizada por um sábio judeu, que se tornara um de seus conselheiros.

Sob seu reinado, Al-Andaluz atingiu seu apogeu, tornando-se a primeira economia urbana e comercial a florescer na Europa, depois da queda do Império Romano. Com uma população de mais de 500 mil habitantes e perto de 60 mil palácios, a Córdoba do século 10 rivalizava em opulência cultural e econômica com Damasco e Bagdá. Abd al-Rahman III construiu hospitais, instituições de pesquisa e centros de estudos, criando uma tradição intelectual e um sistema educacional que fizeram da Espanha islâmica um centro de referência pelos quatro séculos seguintes.

Apaixonado pela filosofia, poesia, teologia e ciências seculares, Abd al-Rahman III estimulou e patrocinou o conhecimento sob todas as formas e em todas as áreas. Sem medir esforços, recrutou sábios, poetas, filósofos, historiadores e músicos muçulmanos e não muçulmanos. Ele tornou o califado um proeminente centro de educação islâmica, ultrapassando Bagdá. Criou bibliotecas ímpares, importando livros de Bagdá e de outros locais. No século 10, Córdoba possuía cerca de 70 bibliotecas, sendo que na do califa, que abrigava 500 mil manuscritos, trabalhavam pesquisadores, tradutores e encadernadores.

Para os judeus, o reinado de Abd al-Rahman III foi o início da Idade de Ouro da cultura judaica, uma época de grandes realizações. Abd al-Rahman III e seus sucessores não exerceram nenhuma discriminação opressiva contra os judeus. Pelo contrário, estes eram considerados um segmento útil e leal da população, sendo tratados com dignidade e respeito. Sua cultura e riqueza fizeram com que os califas os indicassem para cargos importantes. Inúmeros judeus tornaram-se conselheiros, astrólogos, secretários de estado de califas e príncipes.

Livres para exercer qualquer atividade cultural ou econômica, os judeus ingressaram em vários setores da economia, incluindo o comércio, as finanças e as profissões liberais. Atuavam principalmente no comércio de seda e seus inúmeros empreendimentos contribuíram para a prosperidade do reino. Tornaram-se médicos famosos, poetas ilustres, filósofos, astrônomos, cartógrafos de renome. Podendo assumir cargos públicos, destacaram-se na administração pública e desenvolveram habilidades políticas e diplomáticas.

Em pouco tempo, Sefarad atraiu milhares de judeus de outras partes do Oriente Médio e da África do Norte. A comunidade judaica de Al-Andaluz tornou-se a mais populosa e próspera fora da Babilônia. Havia comunidades em não menos de 44 cidades, muitas com suas próprias ieshivot. As de Córdoba, Granada, Sevilha, Lucena e Toledo eram as mais importantes.

A partir do momento que o califado se tornara independente de Bagdá, os laços que prendiam os judeus sefaraditas às autoridades gaônicas começaram a se afrouxar e os judeus espanhóis se tornaram independentes do protecionismo religioso e intelectual da comunidade judaica da Babilônia.

Os judeus de Sefarad incentivavam o estudo e o saber em todas as áreas, e sábios e eruditos judeus gozavam de privilégios e honras parecidos aos dispensados aos estudiosos muçulmanos. No século 10, Sefarad – e não mais a Babilônia – passou a ser o maior centro cultural judaico do mundo, sinônimo de sabedoria e conhecimento, o local onde surgiram alguns dos maiores sábios de toda a história judaica.

Um dos homens que mais contribuíram para o florescimento da cultura judaica foi Hasdai Ibn Shaprut (915-970), líder da comunidade judaica de Córdoba e Nasi de todo os judeus ibéricos. Médico extraordinário, tornou-se um dos homens de confiança de Abd-al-Rahman III. Dotado de grande capacidade de organização e de estadista e fluente em hebraico, árabe e idiomas de origem latina, Ibn Shaprut conduzia as negociações entre o califado e os impérios bizantino e germânico e, também, com inúmeros governantes espanhóis cristãos.

Generoso patrono, Ibn Shaprut trazia a Córdoba sábios talmúdicos, filósofos, poetas e médicos judeus. Incentivou o estudo da Torá, do Talmud, do hebraico. Fundou uma ieshivá para formação de rabinos, que ficou a cargo do Gaon Moses ben-Hanok (Enoch), permitindo assim aos judeus espanhóis não terem que depender dos Gaonim da Babilônia em questões referentes à lei judaica.

É preciso ressaltar, contudo, que nem tudo era “dourado”, nesse período. Não há dúvida que judeus espanhóis viviam melhor do que qualquer outra comunidade judaica da Europa cristã, mas a vida judaica na Espanha muçulmana não era imune às ameaças decorrentes dos perigos inerentes à sua condição de dhimmis e à dinâmica da política islâmica. Tampouco foi a Idade de Ouro um período de total tolerância e compreensão entre as comunidades das três religiões que lá viviam. No tocante à população judaica, mais do que tolerância, havia na Espanha moura o reconhecimento, por parte das autoridades, da “utilidade” dos judeus e a tendência dos governantes de ignorar as exigências mais rigorosas da lei islâmica quanto ao tratamento que lhes tocava.

Os Taifas

O califado de Córdoba continuou, de modo geral, a exercer uma hegemonia em Al-Andaluz até o final do século 10, sendo que praticamente desabou em 1008, sendo formalmente abolido em 1031.

A ausência de um poder central permitiu o estabelecimento, em Al-Andaluz, de uma série de pequenos estados islâmicos, chamados Taifas. Esses principados variavam em extensão, recursos e poder competiam militarmente entre si. Entre 1010 e 1080 formaram-se aproximadamente 30 que acabaram sendo consolidados em 9 maiores. Os mais ricos e poderosos, Toledo, Sevilha, Badajós e Granada, mantiveram em seus domínios a tradição dos omíadas de patrocinar as artes e as ciências.

Para a população judaica de Al-Andaluz, com a queda dos califas omíadas, tornaram-se mais evidentes os perigos inerentes à sua condição de dhimmis. Ao longo da primeira metade do século 11, embora houvesse alguns episódios de hostilidade, eles não foram totalmente discriminados. A participação judaica nas atividades profissionais, administrativas e governamentais, iniciada durante o califado, manteve-se ao longo do período taifa. Os governantes, relativamente tolerantes, haviam sabiamente acolhido os financistas, conselheiros em questões econômicas e políticas, escritores e poetas, cientistas e médicos judeus. Um número significativo de judeus ocupou cargos importantes nas diversas cortes, até mesmo o de vizir.

Os traços característicos entre os judeus mais proeminentes era a harmonia entre a tradição religiosa e a cultura secular – o estudo do Talmud, junto com a poesia e a filosofia, e uma mesma proficiência em árabe e em hebraico.

Um exemplo típico da realização do ideal sefardita judaico foi o poeta e estudioso da Halachá, o Rabi Samuel ha-Naguid. Líder da comunidade judaica, atuou como vizir e comandante do exército do Reino de Granada de 1030 até sua morte, em 1056.

No século 11 havia em Sefarad comunidades importantes, entre outras, em Sevilha, Denia, Tudela, Almeria, Huesca, Toledo, Córdoba, Saragoza e Lucena.

O grande talmudista, Rabi Isaac Alfasi, que trocou Fez por Sefarad, tornou-se Rosh Ieshivá (diretor) da Ieshivá de Lucena, em 1089. O mais famoso dentre seus inúmeros alunos foi o Rabi Yehuda Halevi, autor da obra Kuzari. Médico e filósofo, é considerado um dos maiores poetas hebraicos. Rabi Isaac Alfasi foi, também, professor do Rabi Joseph ibn Migash (o Ri Migash). Saragoza foi o lar do filólogo, gramático e poeta Shlomo ibn Gabirol e de Rabi Bahiya ibn Pakuda.

A ausência de um poder central representava um grande perigo para os judeus de Sefarad, pois permitia a extremistas religiosos cometerem atos de violência contra os judeus. Em Granada, o fato de judeus ocuparem posições importantes nas cortes provocou o descontentamento do resto da população.

Em 30 de dezembro de 1066, essa mesma cidade foi palco do primeiro massacre de judeus em Al-Andaluz desde a sua fundação, em 711. Uma multidão furiosa muçulmana – após assassinar o vizir Joseph Ibn Naghrela, filho de Rabi Samuel ha-Naguid – matou 4.000 judeus.

O domínio almorávida

As lutas entre os diferentes reinos taifas tornou evidente a inabilidade dos inúmeros governantes da Espanha islâmica em manter uma unidade política. Os reinos cristãos vão-se aproveitar da divisão muçulmana e da debilidade de cada taifa individual em tentar subjugá-los.

Num primeiro momento, a submissão foi unicamente econômica, forçando os governantes das taifas a pagarem tributos anuais de não agressão aos monarcas cristãos. Mas, percebendo que os muculmanos não resistiriam a seus avanços militares, iniciaram uma campanha de reconquista de terras aos mouros. Em 1085, Afonso VI, de Leão e Castela, aproveitando o pedido de ajuda do rei taifa de Toledo contra um usurpador, sitiou esta cidade e aceitou a sua rendição em maio. Com a ocupação de Toledo, Afonso VI pôde iniciar campanhas militares contra os taifas de Córdoba, Sevilha, Badajoz e Granada.

Ao perceber que os reis cristãos se haviam tornado uma ameaça real para os domínios islâmicos, seus governantes pedem a ajuda aos almorávidas, uma dinastia berbere fundamentalista do norte da África. O líder dos almorávidas, o emir Yusuf ibn Tashfin, atravessou, com seu exército, o estreito de Gibraltar e venceu Alfonso VI na batalha de Zalaca (1086). Os mouros ainda cercaram Toledo, mas não lhes foi possível retomar a cidade. O avanço cristão perdeu o ímpeto e só seria retomado na metade do século 12.

Após derrotar os cristãos, os almorávidas tomam o poder, conquistando os diferentes reinos taifas. Cultural e religiosamente menos tolerante que seus predecessores, os almorávidas queriam estabelecer uma nação onde pudessem aplicar os princípios islâmicos. De temperamento violento, introduziram na Espanha muçulmana uma intolerância até então desconhecida.

Sob o regime dos almorávidas, a situação dos judeus se tornou muito precária, durante certo tempo. Entre outros, Yusuf ibn Tashfin tentou forçar a comunidade judaica de Lucena, uma das mais respeitadas de Sefarad, a se converter ao islamismo. Somente o pagamento de uma grande soma em dinheiro fez com que ele desistisse.

Mas, apesar do status vulnerável, os judeus tinham permissão para permanecer onde viviam e eram tolerados. Além de serem fonte de vultosos impostos que alimentavam os cofres públicos, eles tinham muito a oferecer aos novos conquistadores, em particular na área administrativa e diplomática, e, com o tempo, conseguiram reconquistar um tratamento favorável. Com a subida ao trono do filho e sucessor de Yusuf, Ali, os judeus voltaram a ocupar postos importantes na Corte, tendo alguns se tornado importantes conselheiros. Córdoba, Sevilha, Lucena e Granada tornaram-se importantes centros de estudos judaicos. Assim, a primeira metade do século 12 assistiu o apogeu da Idade de Ouro do judaísmo sefaradita. A maioria de seus grandes expoentes justamente viveram entre os séculos 11 e 12.

A chegada dos almôadas

Os almorávidas não foram capazes de se manter no poder quando sua expansão militar chegou ao fim. Com seu enfraquecimento, os reinos cristãos reiniciaram a Reconquista. Isto fez com que uma nova dinastia berbere do norte da África, os almôadas, fosse chamada, em 1146, para intervir na luta. Ferozes guerreiros, eles rapidamente passaram a controlar grande parte de Al-Andaluz.

O fanatismo religioso e a incondicional intolerância dos almôadas, que queriam pôr fim à corrupção e à lassidão dos governantes islâmicos em aplicar as leis do Corão, trouxeram grande destruição e sofrimento para as comunidades judaicas do sul da Espanha.

Sob os almôadas, os judeus foram perseguidos e segregados. Entre outros, foram impedidos de negociar livremente, tiveram seus bens confiscados, sendo obrigados a usar roupas que os diferenciassem. Eles viram sinagogas sendo destruídas e ieshivot fechadas e, sob a ponta da espada, foram obrigados a se converter – desta vez ao islamismo. Muitos judeus, entre os quais Maimônides, fugiram para a África à procura de governos muçulmanos mais tolerantes. Outros foram para o norte da Espanha, então sob domínio cristão, onde foram recebidos de braços abertos. Muitos dos que permaneceram sob domínio muçulmano tornaram-se criptojudeus.

As comunidades judaicas do sul da Espanha não conseguiram sobreviver à intolerância e à perseguição de seus novos governantes. Chegava ao fim a saga dos judeus de Sefarad, que tanto tinham contribuído àquelas terras e ao mundo, sob domínio muçulmano.

1      O Tanach é composto de 24 livros. Esta palavra simboliza o conteúdo desses livros e contém a inicial de cada grupo de livros: Torá, Nevi’im (Profetas) e Ctuvim (Escrituras Sagradas)

2     Território da região norte do Norte de África, parte do Império Islâmico.

3     Mouros ou sarracenos foram povos oriundos do Norte de África, praticantes do Islã, invasores da região da Península Ibérica, Sicília, Malta e parte de França, durante a Idade Média.

BIBLIOGRAFIA
Cohen, Malcolm, A Short History of the Jews in Spain, eBook Kindle
Gerber, Jane S., The Jews of Spain, eBook Kindle
Lowney, Christopher, A Vanished World: Medieval Spain’s Golden Age of Enlightenment, eBook Kindle