No fogo cruzado entre rebeldes e forças do governo da Síria, o patrimônio histórico-cultural do país, até mesmo o judaico, está ameaçado de extinção.
Prova da gravidade da situação foi o bombardeio da Sinagoga de Jobar, localizada em um distrito nos arredores de Damasco, em 31 de março deste ano. A Sinagoga é uma das mais antigas do mundo, pois, de acordo com a tradição, foi fundada pelo profeta Elisha, por volta do século 8 antes da Era Comum (a.E.C.).
Há mais de dois anos, uma sangrenta luta entre o exército sírio, leal ao presidente Bashar al-Assad, e as forças rebeldes, tomou conta da Síria. O conflito continua causando sofrimento humano e destruição incalculáveis. De acordo com dados compilados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, desde março de 2011, 100 mil pessoas foram mortas e 6,8 milhões necessitam de assistência humanitária urgente – entre os quais 3,1 milhões de crianças. Estima-se ainda que cerca de 1,2 milhão de famílias tiveram suas casas atingidas, das quais 400 mil foram completamente destruídas. Até 1º de julho, já havia mais de 1,7 milhão de refugiados sírios nos países vizinhos e na África do Norte.
A guerra civil está destruindo o país, junto com seu patrimônio cultural e histórico. Nas últimas semanas, a luta atingiu novos níveis de brutalidade e destruição. Os dois lados negam a culpa pela situação e atribuem total responsabilidade ao inimigo. No entanto, vídeos revelam que o fogo, tanto das forças do governo quanto dos rebeldes, tem atingido mesquitas, igrejas, castelos, santuários antigos, sítios arqueológicos, museus e souks.
Damasco tem sido alvo de intensos combates e o distrito de Jobar, por exemplo, foi bombardeado por mais de dois meses. A cidade de Alepo também foi palco de violentas lutas. Durante a batalha pela cidade, iniciada em julho de 2012, grande parte da mesma foi reduzida a escombros, até mesmo a antiga cidadela, o souk medieval, e a torre da mesquita Ummayyad,construída no século 12.
A Sinagoga de Jobar, que já havia sido atingida e saqueada nos meses anteriores ao bombardeio que atingiu o local, em março último, é o sexto edifício considerado Patrimônio Mundial da Humanidade a ser danificado na Síria. Após a agência Reuters divulgar a notícia dos bombardeios, fortes rumores circularam na mídia e na internet de que a sinagoga havia sido totalmente destruída pelo fogo. Ativistas disseram que pelo menos seis morteiros atingiram-na, tendo causado focos de incêndio em alguns lugares. Vídeos divulgados no início de março por grupos de oposição mostraram danos causados aos muros externos, de concreto, que circundam a edificação, e pilhas de escombros junto à entrada, na qual há uma inscrição em árabe, hebraico e inglês.
As duas facções trocaram acusações pelo ocorrido. Na realidade, ainda não se sabe qual delas foi a responsável pelo bombardeio que atingiu o local, no final daquele mês. Tampouco se sabe, ainda, quão destruída está a sinagoga, apesar de os saques terem sido confirmados à Reuters por Mamoun Abdulkarim, diretor do Departamento de Antiguidades da Síria. Ele chegou a afirmar que... “Apesar de ainda não haver informações exatas sobre o que foi roubado, sabemos que entre os itens saqueados estão objetos e candelabros de ouro com mais de 70 a 100 anos. Lideranças judaicas tentaram entrar na sinagoga há quatro meses, mas não conseguiram por causa da presença dos combatentes”. No entanto, Abdulkarim afirmou duvidar que as centenas de manuscritos antigos, de inestimável valor, tenham sido roubadas da sinagoga, pois a maioria, incluindo as Torot guardadas em caixas com filigranas em prata, já tinham sido transferidas para a sinagoga da Cidade Velha de Damasco, local considerado Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. A Sinagoga de Jobar possuía um “Tãj” ou “Keter Torah1”, com iluminuras datadas de 1252.
História da sinagoga
A história e as inúmeras tradições da Sinagoga de Jobar se entrelaçam com a vida de dois de nossos maiores profetas, Eliahu Hanavi e Elisha. Viveram no Reino de Israel no século 7 a.E.C., uma época turbulenta em que a Terra de Israel estava dividida entre os reinos de Israel, ao norte, e Judá, ao sul.
Segundo a tradição, a Sinagoga foi fundada pelo profeta Elisha, acima da gruta na qual o profeta Eliahu se teria refugiado de seus perseguidores. Em uma das paredes, há uma inscrição em inglês “Santuário e Sinagoga do Profeta Eliahu Hanavi desde 720 antes da Era Comum”. A sinagoga sempre foi um local de peregrinação para os judeus da região. A santidade do local é tamanha que doentes ali costumavam ser deixados sozinhos, durante a noite, para que o espírito do profeta Elisha pudesse curá-los ou aliviar suas dores. No século 1 E.C, a Sinagoga de Jobar foi restaurada por Rabi Eleazar ben-Arak, discípulo de Rabi Yochanan ben-Zakai e há menção dela no Talmud, pois nele há um relato de que o Amorá Rabi Rafram bar Pappa (século 4) orou no local.
Durante a Idade Média, nos registros deixados por judeus que percorreram a região, há informações sobre a comunidade judaica de Damasco e de Jobar. A sinagoga de Jobar é mencionada nos relatos de Pethahiah de Regensburg, que esteve na região em 1180, e de Samuel ben-Simson, judeu francês que visitou Damasco em 1210. Ben-Simson conta que os judeus de Jobar, na época ainda um vilarejo próximo a Damasco, possuíam terras, plantações e vinhedos, mas muitos também trabalhavam como artesãos e comerciantes, e relata ter visto “a linda sinagoga de Jobar”.
Após a expulsão dos judeus da Espanha, inúmeras famílias sefaraditasinstalaram-se em Jobar. Um judeu viajante anônimo, que chegou à região poucos anos depois da imigração hispânica, disse ter encontrado 60 famílias vivendo no vilarejo e mencionou, ainda, a linda sinagoga local, afirmando: “Nunca vi nada igual”.
A Sinagoga foi descrita com mais detalhes nos diários de viagem do Rabino Moses Bassola D’Ancona, italiano que visitou a Síria em 1522. Em seu diário, o Rabino relata que encontrou em Damasco “cerca de 500 famílias judias e três sinagogas – lindamente construídas e decoradas: uma para os sefaraditas, uma para os judeus nativos e uma para os sicilianos”. Ele assim descreveu sua visita à Sinagoga de Jobar:
“Há lá uma sinagoga linda, como jamais vi. Foi construída em colunatas2 – seis à direita e sete à esquerda. Acima da sinagoga há uma gruta na qual o profeta Elihu Hanavi – de abençoada memória –, escondeu-se. Diz-se que a construção da sinagoga data da época do profeta Elisha. E há uma pedra sobre a qual dizem que Hazael (rei da Síria) foi ungido pelo profeta. Posteriormente, a sinagoga foi restaurada por Rabi Eliezer ben Arakh. De fato, trata-se de um lugar impressionante. Segundo o que me contaram, muitos milagres aí aconteceram. Nas épocas de desespero, os judeus sempre se reuniam na sinagoga e ninguém os incomodava”.
Em sua “Crônica”, de 1672, Joseph Sambari relata que a comunidade judaica de Damasco vivia principalmente em Jobar e que ele tinha conhecimento da existência da sinagoga de Elisha e da gruta de Eliahu. A Sinagoga foi também descrita por Benjamin II3, outro viajante judeu que percorreu o Oriente Médio em meados do século 19.
A Sinagoga de Jobar sofreu danos e foi saqueada, em 1840, logo após o Caso Damasco, quando os judeus damascenos foram acusados de assassinato ritual. Na ocasião uma multidão invadiu o local, saqueando a sinagoga e destruindo os Sefarim, os Rolos da Torá.
A arquitetura da sinagoga
Graças a um projeto do fotógrafo Robert Lyons, patrocinado pelo Jewish Heritage Council (JHC) – órgão criado pelo World Monumental Fund (WMF), em 1988, uma organização internacional de preservação –, é possível conhecer, em detalhes, como eram as sinagogas sírias, inclusive a de Jobar. Ele viajou à Síria em 1995 para visitar e fotografar sítios históricos e os principais pontos que compõem a herança cultural judaica do país. Visitou oito sinagogas; na época, a maioria estava praticamente intacta, e conseguiu captar a impressionante arquitetura e a rica decoração de cada local. Entre as sinagogas fotografadas por Robert Lyons está a de Jobar. O resultado desse projeto pode ser considerado o único documento sobre as sinagogas sírias.
As fotos tiradas por Lyons da Sinagoga de Jobar mostram o teto de madeira do qual pendiam inúmeros candelabros e lamparinas, feitos com materiais nobres; e lindos tapetes persas que ornavam as paredes e cobriam o chão. Havia bancos almofadados ao longo das paredes e também das arcadas laterais. Escadas à direta do Hechal (Arca Sagrada na qual são guardados os Rolos de Torá) levam à Caverna do Profeta Eliahu. Nesse local, os judeus costumavam acender velas e orar. Assim como em outras sinagogas sírias, a Tebá era octogonal e elevada por quatro ou mais degraus e adornada por leões. Colunas estreitas elevam-se a partir dos cantos octogonais como suportes para um dossel aberto, como se fosse uma cobertura, sempre em madeira. Nas sinagogas sírias, como a de Jobar, a Tebá geralmente possui uma pequena cerca de ferro ou uma balaustrada de madeira, ou ambas.
A ala central era construída em um nível um pouco mais alto para melhor iluminar o interior, principalmente a área da Tebá. Além da iluminação mais adequada para a leitura da Torá, há também um significado simbólico, pois, ao entrar na sinagoga, tem-se uma visão imediata da mesma, o local a partir do qual a Lei de D’us é lida e proclamada. Janelas na galeria superior, nas paredes das alas laterais e lamparinas também garantem maior iluminação.
Em Jobar um elemento comum à maioria das sinagogas sírias era a posição do Hechal, nas paredes ao Sul, apontando em direção a Jerusalém (nas sinagogas europeias e norte-americanas encontra-se geralmente a Leste). Nichos duplos ladeados por portas de madeira trabalhadas com relevos decorativos, cujo acesso é feito por três degraus, são outro elemento comum. Cortinas cobrem o Hechal que abriga os Sefarim.
Com a eclosão da guerra civil na Síria, o patrimônio cultural e religioso judaico está seriamente ameaçado. Não se sabe ao certo o que acontecerá com esse legado – e as perspectivas não são muito boas. Nesse contexto, as fotografias de Lyons são um testemunho da riqueza das sinagogas sírias e uma forma de manter viva a memória desses espaços sagrados que, no passado, abrigaram vibrantes comunidades.
1 Usa-se o termo Keter para um manuscrito da Torá em livro em folha de pergaminho (os Sefer Torá da Sinagoga são Rolos, mas o Keter é como um livro.)
2 Série de colunas dispostas simetricamente.
3 Benjamin II. BENJAMIN II., J. J. (nome verdadeiro, Joseph Israel): viajante romeno nascido na Moldávia, em 1818, morreu em Londres em 1864. De espírito aventureiro, adotou o nome de Benjamin de Tudela, o famoso viajante judeu que, do século 12 e até o final de 1844, viajou em busca das Dez Tribos Perdidas.