Houve quatro grandes ondas de imigração do leste europeu e da Alemanha para o Brasil. por se tratar de extensos períodos e diferentes momentos históricos, neste artigo abordaremos as duas primeiras.
De acordo com o professor Nachman Falbel1, historiador brasileiro e referência em imigração judaica, a primeira grande onda migratória de judeus asquenazitas a chegar ao Brasil, compreende o período de 1904 a 1914 e foi patrocinada pela Jewish Colonization Association (JCA). A segunda, de 1914 a 1933, vai do início da 1ª Guerra Mundial até a ascensão de Hitler ao poder. A terceira, de 1933 a 1945, ocorre durante o Holocausto e engloba também os alemães. Martin Gilbert, no seu Atlas of the Holocaust, calcula que 8 mil alemães fugiram para o Brasil entre 1933 e 1938, apesar das dificuldades em conseguir vistos de entrada, por resistência do governo fascista do presidente Getúlio Vargas. A quarta e última grande onda migratória vai de 1945 a 1957, composta pelos sobreviventes do Holocausto e um número expressivo de húngaros, que fogem durante a chamada Revolução de Veludo, de 1956. Após essa data, a vinda de ashquenazim é esporádica. Por se tratar de extensos períodos e diferentes momentos históricos, neste artigo abordaremos as duas primeiras ondas migratórias.
Sentado no escritório da mansão da Rue de l’Elysée, em Paris, o Barão Maurice de Hirsch gira a ponta do seu vasto bigode com o polegar e o indicador enquanto pensa na situação dos judeus do Leste europeu e o que mais poderia fazer para ajudá-los. Em 1881 o Barão já havia conquistado tudo o que o dinheiro poderia trazer: poder, prestígio e luxo. Agora buscava ajudar os necessitados. Esse era o caminho natural a seguir. O Barão estava especialmente preocupado com as notícias que chegaram naquela manhã de primavera. Desde meados de abril uma série de pogroms aconteciam no Leste. Dia 15 fora em Elizabetegrad, atual Kirovograd, na Ucrânia; dia 26, em Kiev, e, assim, sucessivamente em várias outras cidades. O Barão sabia que a situação dos judeus piorava a cada dia e era preciso agir rápido.
Maurice nasceu na Alemanha em 1831 e se mudou para a França, onde fez fortuna e morreu em 1896. Tinha negócios espalhados por toda a Europa, da Inglaterra à Turquia, e por volta de 1870 já era uma das pessoas mais ricas do mundo, emparelhando com a família Rothschild. A morte prematura de seu único filho o fez voltar-se mais ainda à filantropia. O Barão ocupava a maior parte do seu tempo e, posteriormente, toda a sua fortuna, num esforço mundial e descomunal para ajudar os judeus do Leste europeu a emigrar, pois sabia que a única maneira de salvá-los seria tirando-os de lá.
Aquela manhã de preocupação em seu escritório renderia frutos poucos meses depois. Em julho, 10 mil pessoas chegaram a Brodivisky, povoado da Galícia na fronteira austro-russa, desesperadas para emigrar para os Estados Unidos. Ouviram um rumor de que a Agência Judaica iria providenciar um novo país para acolher os judeus e transporte para conduzi-los até lá. Era apenas um boato, mas mesmo assim 8 mil pessoas conseguiram emigrar por seus próprios meios e 1.600 com a ajuda de organizações diversas, entre as quais uma iniciativa pessoal do Barão que colocou um milhão de francos-ouro para ajudar os refugiados.
Um ano depois, o Barão mandou seus homens de confiança, Emmanuel Veneziani e Charles Netter, novamente para Brodivisky onde, então, mais 12 mil refugiados judeus viviam na miséria, passando fome e necessidade. Veneziani escreveu ao Barão uma carta emocionante, na qual dizia que eram necessários “100 mil francos” ao mês para manter aquelas pessoas com dignidade e levá-las a salvo a países para onde pudessem emigrar. O Barão Hirsch, comovido, respondeu que abriria um crédito ilimitado para que eles pudessem fazer o que fosse necessário para salvar aquelas almas.
Conforme a vida dos judeus deteriorava o Barão dedicava mais tempo e recursos para sua missão. Em 1890 a situação piorou dramaticamente na Rússia, com a expulsão dos judeus de Moscou e São Petersburgo. Maurice de Hirsch anunciou então a sua maior obra, a Baron de Hirsch Fund of New York, encarregada de criar a Jewish Colonization Association (JCA), também conhecida como ICA, que foi fundada em 1891 e recebeu um aporte inicial de 50 milhões de francos ou R$540 milhões em valores atuais. Uma fortuna considerável até mesmo para os dias de hoje.
O objetivo dessa Fundação era comprar terras no Brasil e na Argentina, dividir em pequenos lotes, dotá-los de infra-estrutura básica e ferramentas para a lavoura e trazer os judeus da região do Báltico para o Atlântico Sul.
Na abertura de sua entidade, Hirsch proferiu algumas palavras premonitórias: “As medidas vigentes contra os judeus (... na Rússia...) são o prenúncio da expulsão total, mas isso não me parece uma desgraça. Acho que o pior que pode acontecer é eles continuarem onde estão e levarem uma vida miserável e desgraçada por tempo indeterminado...”. Ao comentar a expulsão total dos judeus, Hirsch estava prevendo o que Hitler faria 40 anos depois na Alemanha e nos países conquistados pelos nazistas. No começo do século 20 o Brasil estabelecia algumas regras para a imigração. Os escravos tinham sido libertados há pouco mais de 10 anos e o campo necessitava de mão-de-obra barata. Os portos eram abertos aos que queriam trabalhar na lavoura e a elite queria “branquear a sociedade brasileira”. Profissionais liberais e comerciantes não eram bem-vindos, “para não fazer concorrência”. Isso valia para italianos, japoneses e, também, para os judeus. A Fundação Hirsch comprou grandes propriedades não produtivas no sul do Brasil para essa finalidade. Por isso, o primeiro processo de fixação de imigrantes judeus através da Fundação Hirsch, ou ICA, foi no Rio Grande do Sul, nas chamadas “colônias”, como eram referidas na época e, até hoje, por quem lá viveu ou nasceu.
<p "="">A primeira colônia judaica oficial do Brasil foi Philippson, próxima a Santa Maria, iniciada em meados de 1900. A Colônia recebeu esse nome em homenagem a Franz Philippson, então vice-diretor da ICA. Os números variam conforme as fontes, mas, com certeza entre 30 e 40 famílias foram ali instaladas, num total aproximado de 300 pessoas, o que dá uma média de quase 10 pessoas por família. Cada família recebia uma casa, em lotes que variavam de 25 a 30 hectares de mata virgem, instrumentos de trabalho como enxada, machado, arado, facões, duas juntas de boi, duas vacas, um cavalo e certa quantidade em dinheiro. Essa ajuda durava até a família poder viver do próprio sustento. O objetivo do Barão era que todos se sentissem produtivos e não sustentados por uma organização. Além disso, estes gastos teriam que ser devolvidos à Companhia, num período entre 10 e 20 anos. Era preciso deixar claro que não era uma doação e sim empréstimo, para que todos mantivessem seu orgulho. Essa primeira colônia começou com 4.500 hectares e mais tarde foi acrescida de mais mil. Esses primeiros imigrantes eram da Bessarábia, região na qual a situação dos judeus era de penúria e perigo.<p "="">Como a educação sempre foi valorizada, uma das primeiras iniciativas dos judeus ao chegarem foi criar uma escola onde o ensino fosse ministrado em português. Além dos próprios filhos, a instituição recebia também os brasileiros filhos dos colonos e trabalhadores da região.
A partir de 1910, uma nova colônia é formada, Quatro Irmãos, no município de Passo Fundo. Tanto esta como Philippson localizavam-se nas proximidades da linha do trem São Paulo – Rio Grande. Essa ferrovia era administrada pelo próprio Franz Philippson. Vale lembrar que um dos principais negócios do Barão Maurice de Hirsch na Europa eram estradas de ferro. A famosa linha Orient Express era de sua propriedade. Sendo as colônias próximas a ferrovias, o transporte de sua produção agrícola ficava mais fácil.
Com a recrudescimento da 1ª Guerra na Europa e a revolução bolchevique na Rússia, a situação dos judeus só piorava e se tornava imperativo que a Fundação Hirsch investisse cada vez mais no esforço de os salvar. Mais colônias foram formadas, já então com imigrantes da Lituânia, Polônia, Rússia, Bielorússia, ou seja, de todos os cantos do Leste europeu. A língua nas colônias ainda era o iídiche. As tradições religiosas eram mantidas. As crianças estudavam em português e conviviam com seus amigos não-judeus, o que era impensável na Europa. E felizmente nunca viram um pogrom. Por volta de 1926, dois novos núcleos são criados dentro da colônia de Quatro Irmãos: Barão Hirsch e Baronesa Clara, este nome em homenagem a esposa do fundador da JCA, que continuou sua obra após a sua morte.
Com o tempo, como era de se esperar, os imigrantes já integrados à sociedade brasileira, livres de perseguições, vivendo como “brasileiros” como eles se identificavam e se consideravam, começaram a abandonar a enxada e o arado do campo em busca de melhores condições de vida no comércio, no artesanato – alfaiates, marceneiros – e os mais jovens já sonhavam com a universidade e as profissões liberais.
Começaram a abandonar cada vez mais as colônias em direção às cidades, à vida urbana. Mudam-se para Erexim, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e Passo Fundo. Depois vão à capital, Porto Alegre e a Sorocaba. Esta cidade do interior do Estado de São Paulo chegou a contar com uma razoável comunidade judaica durante certo período de tempo, principalmente em razão da Estrada de Ferro Sorocabana, onde os judeus faziam seus negócios. Sorocaba ficou pequena para a ambição desses imigrantes e São Paulo acabou sendo o grande centro em que escolheram viver.
Adeus às enxadas e à vida do campo. Todos queriam ser cidadãos urbanos das grandes cidades, desfrutar da liberdade e de todas as possibilidades que o Brasil oferecia aos imigrantes, fossem eles italianos, japoneses, espanhóis, católicos, budistas ou judeus. Eles começavam como mascates até juntar capital, fazer uma poupança e depois comprar uma loja ou uma fábrica de roupas, de móveis ou do que escolhessem. Seus filhos podiam freqüentar as escolas e universidades sem cotas. Podiam ter filhos médicos, engenheiros, advogados, industriais, comerciantes; não havia limites para quem trabalhasse nem limitações impostas pelo governo.
Nem todos os judeus que vieram nesse período o fizeram através da JCA ou do esforço do Barão Hirsch. Muitos chegaram por conta própria, recursos pessoais, sozinhos ou com as famílias. Alguns vinham na frente, ganhavam dinheiro e mandavam trazer as famílias. No fim do século 19 e começo do 20 muitos imigrantes, principalmente da Bessarábia, de cidades como Brichton, Hoteyn, Soroca, Yedenitz e, especialmente, Sicuron chegaram ao Brasil antes mesmo da JCA começar o grande processo migratório. Mas a contribuição do Barão Hirsch e seu esforço para salvar os judeus do Leste europeu é um capítulo a se destacar na história recente do nosso povo.
O Brasil se tornou a pátria desses imigrantes expulsos e perseguidos nos países onde nasceram.Encantaram-se com a recepção calorosa que aqui encontraram, com a liberdade para praticar o judaísmo e as oportunidades que o novo país oferecia. Prosperaram, criaram raízes e estão hoje na quarta geração de brasileiros.
Marcio Pitliuk é escritor e dramaturgo, autor do livro “Marcha da Vida” e da peça “Iídiche Mamma Mia”. Atualmente escreve um livro e um filme sobre os 100 anos da imigração dos judeus do Leste europeu ao Brasil.
1 Professor de História Medieval na USP e autor de livros sobre a comunidade judaica brasileira.