'(...) na realidade existiam duas Alemanhas: a Alemanha orgulhosamente militar, abjetamente submissa à autoridade, agressiva na aventura externa, obsessivamente preocupada com a forma, e a Alemanha da poesia lírica, da filosofia Humanística e do cosmopolitismo pacífico'
A ascensão de Hitler ao poder na Alemanha significou, para além de tudo aquilo que já se disse sobre os horrores da Guerra e do Holocausto, o desfecho de uma luta que estava arraigada na sociedade alemã desde 1848, ainda antes da constituição formal de uma Alemanha unificada.
A luta entre os liberais, inspirados pelos ideais da Revolução Francesa, e os conservadores, ligados à aristocracia militar e rural - os Junkers - da Prússia, eclodiu de forma definitiva em uma tentativa de revolução liberal em 1848. No dizer de A. J. P. Taylor, "1848 foi um ano decisivo para a história alemã, bem como para a européia: recapitulou o seu passado e antecipou seu futuro. Ecos do Sacro Império Romano se fundiram ao prelúdio da 'Nova Ordem' nazista; as doutrinas de Rousseau e as doutrinas de Marx, a sombra de Lutero e a escuridão de Hitler brigavam entre si em uma confusa sucessão".2 A revolução em Berlim, comandada por políticos e profissionais liberais que representavam a nova burguesia contra a dominação política dos Junkers e da aristocracia militar prussiana, durou pouco. Ainda que não trouxessem consigo forças novas para o cenário político, a Revolução e o liberalismo alemão logo foram esmagados pela retomada do poder pelos Junkers e pela aristocracia militar prussiana. Depois disso, os liberais passaram a ter cada vez menos importância no cenário político alemão.
Com a unificação alemã, realizada em 1871 pela aristocracia militar prussiana, o projeto liberal é definitivamente enterrado na Alemanha. Os símbolos de prestígio na sociedade alemã que se formava continuavam ligados diretamente à vida militar, à aristocracia e aos Junkers, espelhados nos êxitos do exército prussiano e na figura de Otto von Bismarck. Por outro lado, esses liberais encarnaram definitivamente a posição de vanguarda cultural na sociedade alemã. Segundo Norbert Elias, "pode-se dizer que no significado do termo alemão 'Kultur' estava embutida a predisposição não-política e talvez mesmo antipolítica, sintomática do freqüente sentimento entre as elites da classe média alemã de que a política e os assuntos do Estado representavam a área de sua humilhação e da falta de liberdade, ao passo que a cultura representava a esfera de sua liberdade e de seu orgulho".3
Já no último quartel do século 19 podia-se sentir nos meios culturais da Alemanha uma oposição entre a pintura, a literatura e a música oriundas do Romantismo e novas experimentações, sob influência de movimentos pré-modernos no resto da Europa, como o Impressionismo na Pintura. Enquanto a arte romântica se convertera definitivamente na linguagem da Monarquia alemã do II Reich, as novas experimentações apareciam cada vez mais como uma arte desordenadora, cosmopolita e revolucionária. Sobre essa nova arte, escreveu um príncipe bávaro em 1893: "...um trabalho monstruoso e infame, de um realismo social-democrata e ao mesmo tempo cheio de misticismo doentio e sentimental, desorientador, de modo geral abominável. Depois fomos ao Borchard, para tentar readquirir uma mentalidade humana, com champagne e caviar".4
A influência do Impressionismo deu o tom ao movimento de libertação do Romantismo nas artes plásticas. A descoberta da luz e da cor como linguagens de expressão fundamentais, a fuga da representação perfeita do tema retratado e, principalmente, o movimento gestual livre do artista, trouxeram uma nova luz ao desenvolvimento artístico alemão. A descoberta de Cézanne e, sobretudo, de Gauguin e Van Gogh, influenciou em definitivo aqueles que se aventuravam nas artes. No norte da Europa surge também o pintor Eduard Munch, cuja pintura ecoou pelas estepes germânicas.
Esses artistas, em busca de uma expressão própria distinta do desenvolvimento artístico francês, resgataram a gravura como forma de expressão artística. A gravura, cuja tradição na Alemanha remonta à obra de Rembrandt e Dührer, no século 17. Essa descoberta significou, para eles a possibilidade de divulgar sua obra através da reprodução técnica em livros, revistas, jornais e cartazes.
Já no começo do século 20, essa geração de artistas plásticos dava forma ao que viria ser chamado de movimento expressionista nas artes plásticas. Cores fortes, formas distorcidas, melancolia e tristeza, em uma pintura violenta e dramática. Já a gravura, prioritariamente em madeira5, se difundia através de jornais, publicações e cartazes. Esse movimento, embora ainda não buscasse de fato a politização, tematizava questões sociais e humanas que colocavam essa nova arte em completa oposição à arte "oficial". Logo surgiram grupos de artistas formados em torno de propostas comuns, o primeiro deles foi o Die Brücke6. Mais tarde surgiu o Der Blaue Reiter7, ambos ligados ao Expressionismo. Com a 1a Guerra Mundial, grande parte desses artistas morreu ou deixou a Alemanha.
A 1a Guerra Mundial evidenciou de forma ainda mais clara a divisão na sociedade alemã. A crença na vocação militar como chave para sua afirmação e desenvolvimento permeou a sociedade. A "Guerra para acabar com todas as guerras" era vista por grandes parcelas da população como uma forma de redesenhar o equilíbrio europeu após a unificação da Alemanha. Desse modo, foi possível observar o surgimento de uma arte pró-guerra, como era o caso da literatura de Ernst Jünger, e de uma arte anti-guerra, cujo exemplo é o livro de Erich Maria Remarque, Nada de novo no Front.
Os artistas expressionistas, defensores do indivíduo contra o sofrimento humano colocaram-se ao lado da arte anti-guerra. Nesse momento, a gravura converteu-se em poderoso instrumento de ativismo e denúncia das cruezas do conflito. É notável o trabalho de Erich Heckel, que passou os anos da guerra em hospitais retratando soldados feridos através de xilogravuras. Com o fim da 1a Guerra Mundial, o Tratado de Versalhes impôs violentas punições à Alemanha derrotada. A capitulação alemã ocorreu sem que houvesse grandes confrontos em território alemão. Por outro lado, a assinatura do tratado e a imposição de multas e restrições à Alemanha fez com que a população se sentisse humilhada; a idéia de que a Alemanha fora traída perpassava o país. Nesse cenário, surge um novo movimento na arte alemã, também vinculado ao Expressionismo: a Secessão de Dresden8, que resgatava aspectos da arte expressionista de antes da Guerra, assumindo também temas como a pobreza e a guerra.
Com a República de Weimar, a sensação de liberdade para a expressão artística fez com que florescesse um momento singular nas artes de modo geral: o cinema, a arquitetura, a música, o teatro, a poesia e também a pintura eram áreas de experimentação de vanguarda. Por um momento, a arte romântica, tão característica da aristocracia do II Reich, parecia diminuída em meio à profusão de acontecimentos e experimentações modernas.
Por outro lado, a República de Weimar gozava de pouca autoridade política, apoiada principalmente nos trabalhadores partidários da social-democracia e nos profissionais liberais - dentre eles muitos judeus que sentiam pela primeira vez um ambiente de mais liberdade. De modo geral, as crises econômicas e o fantasma sempre presente do Tratado de Versalhes haviam tornado o regime político cada vez mais desacreditado. Para piorar a situação institucional na Alemanha, a tentativa de Revolução empreendida por Rosa Luxembourg, em 1919, fazia com que o medo da Revolução Social permeasse as classes médias e altas.
A desordem institucional e a falta de autoridade da República propiciavam o surgimento de grupos políticos radicais, de direita e de esquerda, que ofereciam caminhos alternativos à democracia liberal que, no entendimento geral, fracassava. Dentre eles surgiu o Partido Nacional Socialista, de Adolf Hitler. Baseado em ideais anti-semitas, organização e tecnologia, Hitler galgou grande popularidade. Como relata Churchill a respeito do ditador nazista: "Como num sonho, tudo se fez repentinamente claro.
A Alemanha fora apunhalada pelas costas e aprisionada nas garras dos judeus, dos aproveitadores e dos conspiradores que operavam atrás da linha de frente, dos malditos bolcheviques em sua conspiração internacional feita por intelectuais judeus. (...) viu seu dever: salvar a Alemanha dessas pragas, vingar-lhe as injustiças sofridas e conduzir a raça superior a seu destino há muito decretado".9
No que respeitava as artes, Hitler - ele próprio um artista fracassado - acreditava que a verdadeira arte seria a romântica alemã: para ele, a arte moderna - cenário no qual se destacavam os artistas imigrados do Leste europeu, muitos dos quais judeus - era uma arte espúria, símbolo do caos social e da Revolução. Após chegar ao poder, Hitler passou a suprimir as manifestações artísticas públicas, peças, filmes e exposições de arte que ele julgava "impuros" e "enfermos". Já em 1933, os termos "judeu", "degenerado" e "bolchevique" eram usados para designar a arte moderna. Com o tempo, na sua estratégia de propaganda contra essa nova forma de expressão, o Partido Nazista passou a promover exposições e propagandas onde pinturas modernas eram colocadas ao lado de fotos de pessoas com defeitos físicos, com o intuito de evidenciar os descaminhos e as impurezas característicos da nova arte. De fato, buscar figuras deformadas em meio às obras do expressionismo não era tarefa das mais difíceis, e logo surgiu a idéia de se organizar uma grande exposição da "Arte Degenerada", que seria contraposta a outra da "Grande Arte Alemã", inaugurada um dia antes.
Ambas as exposições foram originalmente apresentadas em Munique. A de "Arte Degenerada" foi inaugurada no dia 19 de julho de 1937. A exposição tinha como objetivo elencar toda a arte que seria inaceitável para o III Reich e que fora chamada de "difamações anti-alemãs". Foram reunidas 650 obras de arte, entre gravuras, esculturas, pinturas e livros, retirados das coleções de 32 museus públicos alemães. Dentre os artistas "degenerados", muitos eram judeus, como Marc Chagall, Max Beckmann, Max Liberman, Julius (Julo) Levin e Lasar Segall. Este último havia se radicado no Brasil alguns anos antes. Uma de suas obras expostas na mostra da "Arte Degenerada", o quadro "Eternos Caminhantes", foi resgatada, após o fim da 2a Guerra Mundial por sua viúva, Dona Jenny Klabin. Hoje, a obra se encontra no Museu Lasar Segall, em São Paulo.
Durante os quatro meses em que a exposição esteve aberta em Munique, mais de quatro milhões de pessoas a visitaram. Foi uma surpresa. Nos três anos seguintes, a exposição viajou pela Alemanha e Áustria, e foi vista por mais um milhão de espectadores. Ironicamente, isso transformou-a na exposição mais vista em toda a história da arte moderna até então e, provavelmente, até os dias de hoje.
Mais de dezesseis mil obras de arte classificadas como degeneradas foram confiscadas de particulares. Coleções inteiras de famílias judias - muitas das quais apoiadoras da arte moderna - foram expropriadas por um comitê capitaneado pelo ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. Alguns desses trabalhos integraram o rol da arte degenerada, mas muitos outros foram vendidos pelos nazistas a particulares, em outros países, por valores compatíveis ao mercado internacional. Aqueles que não entraram na exposição e nem foram vendidos foram queimados em frente ao Departamento Central dos Bombeiros de Berlim, em 1939.
A exposição da "arte degenerada" marcou a derrota da "Alemanha da poesia lírica", personificada na queima de quadros e livros, nos artistas mortos e exilados e, por fim, na mais terrível catástrofe humana - o Holocausto. O legado artístico do Partido Nazista foi a destruição da expressão rica e moderna da cultura alemã, o retorno a um projeto romântico anacrônico e a um período de sombra e trevas. No dizer de Norbert Elias, " Lúcifer sobre as ruínas do mundo".
Nos dias de hoje, a procedência de milhares de obras de arte encontra-se sob contenda e investigação, em busca de seus verdadeiros donos e herdeiros - de muitos dos quais apenas resta a memória e a dor do Holocausto nazista.
Mais do que isso, a popularidade espontânea da mostra da "Arte Degenerada" foi a prova legítima de que a arte expressa os sintomas da alma humana de maneira única. Seu efeito sobre as pessoas independe dos desejos da classe dominante - sua destruição figura tão somente como uma solução brutal, que tenta esconder aquilo que, na violência e sofrimento das pinceladas, era o prenúncio da hecatombe.
João Grinspum Ferraz é Professor de Relações Internacionais da FAAP e mestrando em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).