Raros homens públicos, em todos os continentes, têm ou tiveram uma carreira política tão longa, coerente e exemplar como Shimon Peres. Ele chega agora, com 84 anos de idade, à presidência do Estado de Israel fiel à postura que sempre o distinguiu: uma inamovível visão humanística.
Shimon Peres é um homem que sabe bem o que diz e diz muito bem o que sabe. Embora sua função seja hoje mais cerimonial do que executiva, ele seguramente continuará sendo uma voz ouvida com atenção e respeito tanto em Israel como no resto do mundo.
Moldou sua carreira política seguindo os ensinamentos éticos e morais que recebeu de David Ben Gurion, o líder que anteviu todo o seu potencial, a ponto de nomeá-lo diretor geral do Ministério da Defesa do país, com apenas 29 anos de idade. Sua visão da paz no Oriente Médio permanece inalterada desde os primórdios de suas funções oficiais e, apesar de todos os obstáculos, guerras internas e externas e radicalismos que enfrentou, continua acreditando no poder do diálogo: "O mesmo que acontece numa cozinha, acontece na política. Pode-se fazer omeletes com ovos, mas não se pode fazer ovos com omeletes. O fundamental é nos orientarmos no sentido de não quebrar mais ovos no conflito com os palestinos".
Shimon Peres nasceu em 1923, na pequena cidade polonesa de Vieniava (atualmente Vishniev, na Bielorrússia) e guarda sensíveis recordações da infância: "Nosso shtetl (cidadezinha, em ídiche) abrigava pouco mais de mil pessoas, todos judeus. Tinha apenas uma rua, casas de madeira sem eletricidade, duas sinagogas e uma escola de orientação sionista. Mesmo naquele tempo, ali já se notava um hiato de gerações: uma mais ortodoxa, outra mais moderna. Meu avô materno, que fabricava botas de lã, era muito religioso. Meu pai, não. Eu era tão influenciado por este meu avô, que quando meu pai comprou o primeiro rádio da cidade, que funcionava com baterias, e tentou ligá-lo no sábado, eu quebrei o aparelho. Acho que D'us é responsável pelo começo e pelo fim, enquanto nós somos responsáveis pelo que está no meio. E o Senhor nos deu um dia de folga, não apenas para descansar, mas para que possamos dedicar-lhe orações".
Shimon Peres chegou com a família à antiga Palestina, com 11 anos de idade, e foi matriculado no colégio agrícola de Ben Shemen. Adolescente, o sangue político já percorria suas veias, participando de manifestações contra os mandatários britânicos. Em Ben Shemen havia um esconderijo de armas que os ingleses foram procurar, para confisco. Prenderam o diretor e professores, mas os alunos, liderados por Peres, sentaram-se no chão sobre a entrada disfarçada do depósito, muito sérios, fingindo que estavam estudando, e as armas não foram descobertas. Depois radicou-se no kibutz Gueva e, em seguida, no kibutz Alumot, ao norte do mar da Galiléia, do qual foi um dos fundadores. Ao completar vinte anos de idade foi eleito secretário da juventude sionista trabalhista.
No começo da 2a Guerra Mundial, boa parte dos ativistas judeus na Palestina acreditava que aquela seria uma boa ocasião para a retaliação contra os britânicos, atacando-os ou, pelo menos, deixando de ajudá-los. Peres seguiu a orientação de Ben Gurion, que então declarou: "Vamos opor-nos aos ingleses como se não estivéssemos combatendo os alemães e vamos combater os alemães como se não estivéssemos opondo-nos aos ingleses".
Depois da guerra, Peres soube que toda a população de Vieniava havia sido dizimada. Os nazistas levaram os judeus para a sinagoga, seu avô à frente, e os queimaram vivos. Em seguida, incendiaram todo o shtetl. Quando Peres lá voltou, muitos anos mais tarde, só encontrou um monte de pedras servindo de túmulo coletivo para os judeus que morreram queimados vivos na sinagoga.
Em 1946, o ishuv (comunidade judaica na Palestina) estava dividido entre aceitar ou não a partilha daquele território, conforme proposição a ser apresentada perante a Assembléia Geral das Nações Unidas. Quem era contrário, argumentava que o país oferecido aos judeus era ínfimo e sequer incluía alguma parte de Jerusalém. Ben Gurion era favorável à partilha em função da pressa em salvar o maior número possível de sobreviventes do Holocausto.
Houve, então, um Congresso Sionista na Basiléia, Suíça, e o grupo trabalhista escolheu dois jovens delegados: Moshe Dayan e Shimon Peres.
O encaminhamento dos trabalhos indicava que a maioria era contra a divisão do território. Ben Gurion estava tão desesperado que, num gesto impulsivo, decidiu retirar-se do plenário do Congresso em sinal de protesto. Peres e mais um pequeno grupo foram até o hotel onde Ben Gurion estava hospedado e o encontraram fazendo as malas. Vociferando, Ben Gurion dizia que os delegados ao Congresso não percebiam para onde sopravam os ventos da História e que ele criaria um novo movimento sionista com jovens idealistas. Virou-se para Peres e perguntou: "Você vem comigo ou não?" Ele respondeu: "Vou, se o senhor voltar ao plenário para ver o que acontece. Se ganharmos, ficamos. Se perdermos, vamos todos juntos".
Na tumultuada sessão presidida por Golda Meir, Ben Gurion venceu por pequena maioria. Anos depois, Shimon Peres assim recordaria aquele acontecimento: "Eu confiava em Ben Gurion. Sentia que era um homem realmente honesto e que jamais assumia uma posição somente para impressionar seus interlocutores. Chegava a uma conclusão e a expunha de forma objetiva. Tornei-me seu seguidor muito jovem e nunca mudei de idéia. Compreendia suas reservas em relação à diáspora, ao comunismo, aos movimentos direitistas. Ele queria largar tudo e retornar à Bíblia. Achava que tudo que havia acontecido aos judeus depois da Bíblia corrompia nossa vida. Achava que a Bíblia era o lugar onde o céu e a terra se encontram, os valores do céu e as realidades da terra".
No ano seguinte, Peres passou a dedicar-se à Haganá (instituição pára-militar judaica de defesa) em tempo integral, como responsável por recursos humanos e estocagem de armas e munições, função que continuou exercendo após a fundação do Estado e durante os primeiros meses da Guerra da Independência.
Foi uma tarefa dificílima porque os Estados Unidos, a Inglaterra e depois a Rússia impuseram um embargo de armas para Israel.
Coube a Peres a missão de integrar a equipe que negociou, antes do embargo, a compra de armamentos na Checoslováquia, que foram cruciais para a vitória de Israel contra os exércitos árabes inimigos. No fim do conflito, Peres foi para os Estados Unidos agregado à delegação militar israelense e ali estudou em Harvard e na Faculdade de Pesquisas Sociais de Nova York: "Em Harvard fiz um curso que se chamava Programa Avançado de Administração. Foram quatro meses frutíferos e felizes.
Em Nova York estudei economia, história e inglês. O que eu gostei nos Estados Unidos foi o respeito pelo trabalho. Não importa o que você faça. Desde que seja trabalho, a pessoa é respeitada. Nós morávamos na rua 96 com a Riverside Drive. Tínhamos um apartamento enorme, com seis ou sete quartos. Ali organizamos um pequeno kibutz. Outros israelenses dividiam o apartamento conosco. Tínhamos realmente uma vida coletiva, como num kibutz. Preparávamos juntos cafés da manhã e almoço."
Em 1953, Shimon Peres assumiu a direção geral do Ministério da Defesa, posto que conservou durante seis anos e no decorrer dos quais fez uso de toda a sua inteligência e habilidade no sentido de convencer a França a fornecer armas para Israel. Há décadas os analistas internacionais formulam complexas teorias sobre as razões que levaram a França a armar Israel. Entretanto, tudo foi mais prosaico do que se possa imaginar. Peres reconhece, hoje, que quando começou seus contatos nas altas esferas militares de Paris era inexperiente e sequer sabia falar francês. Ao preparar a primeira viagem, um amigo israelense lhe disse que tinha um amigo judeu na França que era assessor econômico do primeiro-ministro Edgar Fauré. Chamava-se Georges Elgozy. Este recebeu Peres e o embaixador israelense em sua casa, em Paris, "as paredes cobertas por pintores famosos, Chagall, Picasso, eu nunca tinha visto algo parecido". O relato de Peres sobre este encontro chega a ser surrealista: "No meio da sala estava sentada uma senhora de idade, como se estivesse num trono, e Elgozy disse que conversaria comigo depois que eu falasse com sua mãe. Ela segurou minhas mãos, olhou para elas e disse: está tudo bem, Georges. Ao que ele acrescentou: se minha mãe diz que está certo é porque está certo. Venha à residência oficial de Matignon amanhã, às dez da manhã. Ali, Elgozy nos apresentou ao primeiro-ministro e declinou nossa intenção com relação à aquisição de armamentos. Fauré logo bateu o martelo: pourquoi pas? Voltamos ao gabinete de Elgozy e ele telefonou para todo o mundo na França, indústrias e ministérios. Disse que estava agindo em nome do primeiro-ministro. Isso abriu todas, todas as portas".
Desde então, sua trajetória de homem público foi impressionante.
Em função de suas boas relações com os franceses foi peça fundamental nos encontros secretos que culminaram na aliança entre Israel, França e Inglaterra na Guerra de Suez, contra o Egito, em 1956. Três anos depois foi eleito para o parlamento como integrante do Mapai, o embrião do Partido Trabalhista, tendo sido sucessivamente reeleito, desde então, para um assento no legislativo. Era onde se encontrava durante a Guerra dos Seis Dias, cujo desdobramento ele assim analisou: "Depois da guerra, o governo Eshkol emitiu uma declaração que dizia que, em benefício de uma paz plena, estávamos dispostos a nos retirar dos territórios egípcios e sírios, retornando às linhas de fronteiras internacionais. Não houve resposta. E naquele tempo não achávamos que houvesse um parceiro do lado palestino com quem negociar. Arafat era considerado uma pessoa terrível. Ninguém estava disposto a sentar-se com ele para conversar. Foi então que Dayan veio com a idéia das pontes abertas, ou seja, a de que não seríamos necessariamente ocupantes. E deu certo. As pontes para a Jordânia foram abertas e os palestinos puderam levar sua vida econômica quase livremente".
Com base em sua sólida formação administrativa e executiva, a par de acurada visão política, Shimon Peres ocupou diferentes ministérios em Israel. Em 1969, assumiu a pasta da Absorção de Imigrantes. No ano seguinte, e durante quatro anos, serviu como ministro dos Transportes e Comunicações. Esteve também, por pouco tempo, no já extinto Ministério da Informação e, durante o governo de Golda Meir, foi ministro da Defesa, em substituição a Moshe Dayan. Foi neste posto que enfrentou a crise de Entebe. Os historiadores se dividem quanto a atribuir os louros daquela vitória a ele ou a Itzhak Rabin. Conforme as mais recentes revelações e interpretações, o grande mérito coube, de fato, a Shimon Peres. Ele acreditou desde o início, apesar da oposição do gabinete, que era possível enviar um comando aéreo desde Israel até Uganda e que seria viável um resgate dos reféns dos terroristas que haviam seqüestrado o avião da Air France. Entretanto, apesar desse notável feito e de muitos outros objetivos alcançados com sucesso, Peres nunca teve o pleno reconhecimento da população israelense, sendo derrotado para o cargo de primeiro-ministro em sucessivas eleições, desde 1977, quando o Likud assumiu o governo. Talvez isto se deva a seu perfil introvertido, a suas declarações sempre comedidas e a sua incapacidade de se apresentar com gestos teatrais e entonações eloqüentes nos palanques eleitorais.
Shimon Peres, decididamente, nunca foi populista nem demagogo. Por isso, os israelenses se acostumaram a vê-lo mais como alguém voltado para a utopia do que para a realidade, sentimento público que jamais lhe fez justiça. Na década de 60, ele escreveu um livro intitulado David's Sling (A atiradeira de David), no qual lançou um olhar sobre o futuro de Israel e concluiu que o país só encontraria seu lugar no mundo moderno na medida em que concentrasse todos seus esforços no sentido de alcançar sofisticados avanços tecnológicos, tal como ocorre nos dias atuais.
Em sua coerente fixação voltada para a paz através do diálogo, deixou-se enganar por Arafat, assim como tantos outros israelenses e judeus em todo o mundo, no Acordo de Oslo. Por que Peres foi ao encontro de Arafat na Noruega? Ele respondeu numa entrevista: "Eu resolvi lutar ainda mais pelo processo de paz, quando cheguei à conclusão de que Arafat tinha-se tornado tão fraco que poderia cair. E eu não parava de me perguntar o que poderia acontecer se ele caísse. Porque, para fazer a paz, é mais importante ter um parceiro do que ter um plano. Quando a pessoa dialoga consigo mesma, é de um brilhantismo sem igual. Ganha todas as discussões. O que em geral me torna otimista é que quando se atravessa uma crise, as pessoas pensam que ela é o fim do mundo. Uma crise, na verdade, é um fenômeno passageiro. Sempre se pode encontrar uma oportunidade, na pior situação".
Enquanto ocupou o Ministério da Defesa, Peres preocupou-se em fortalecer os equipamentos das forças armadas de Israel, cujas deficiências se haviam dramaticamente revelado anos antes, durante a Guerra do Yom Kipur. Ele foi primeiro-ministro por curto tempo, depois da renúncia de Rabin em 1977, o ano da ascensão do Likud liderado por Begin e Sharon. Depois de uma indefinição nas eleições de 1984, coube a Peres propor um governo de união nacional, com rotatividade no cargo de primeiro-ministro, que veio a ocupar mais duas vezes. Em 1990, como conseqüência da guerra no Líbano, a economia israelense encontrava-se em perigoso estado de debilidade. Nomeado para o Ministério das Finanças, Peres elaborou um plano econômico que fez a inflação cair de 400% para 16% ao ano. Em 1992, com a volta dos trabalhistas ao poder, coube-lhe o Ministério das Relações Exteriores, em cujo âmbito foi celebrado o fracassado acordo de Oslo, mas que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz, dividido com Rabin e Arafat. Seu discurso perante o rei da Noruega teve dimensão histórica: "Eu vejo um Oriente Médio sem guerras, sem inimigos, sem mísseis balísticos, sem ogivas nucleares. Um Oriente Médio em que cada crente esteja livre para orar em seu próprio idioma - árabe, hebraico, latim ou qualquer outro - e para que suas orações atinjam seus destinos sem censuras, ofensas ou interferências. Um Oriente Médio onde a água possa correr para matar a sede, para fazer as sementes crescerem e os desertos florescerem e no qual não existam fronteiras hostis que provoquem a fome, a morte e o desespero. Um Oriente Médio de competição, não de dominação, no qual os homens sejam anfitriões uns dos outros e não reféns. Um Oriente Médio que seja um foco espiritual e cultural para o mundo inteiro".
A grandeza humana e política de Shimon Peres, seu desprendimento pessoal em favor dos interesses do país, atingiram seu ponto mais significativo quando, em 2005, por concordar com a gestão do então primeiro-ministro Ariel Sharon, seu adversário de décadas, deixou o Partido Trabalhista filiando-se ao Kadima, de Sharon, pelo qual foi eleito presidente.
Das suas centenas de pronunciamentos ao longo de mais de sessenta anos de vida pública, devem ser destacadas estas palavras, de modo a que se assinalem para sempre na mente e no coração do povo judeu: "Desde a fundação de Israel nos devotamos a estabelecer o país como um centro territorial. No futuro teremos que tê-lo como um centro espiritual. O judaísmo é uma fusão de crença, história, terra e idioma. Ser judeu significa pertencer a um povo que é tão singular quanto universal. Minha maior esperança é que nossos filhos e netos continuem a fazer correr o fluxo do judaísmo nos espíritos humanos e que Israel seja o centro de heranças e não apenas um lar nacional do nosso povo. E que nosso povo seja inspirado por outros e, ao mesmo tempo, uma fonte de inspiração".
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista