Os judeus tiveram um relacionamento longo e especial com a Hungria.

Os judeus tiveram um relacionamento longo e especial com a Hungria. Considerando-se um povo itinerante, como os magiares, eles conseguiram alcançar, ao longo dos séculos, certa simbiose com seus compatriotas.

Não que fossem "amados incondicionalmente" pelos últimos; enfrentaram ciclos de perseguições e expulsões; reconciliações e retornos, épocas tranqüilas e conturbadas. Sua história, na Hungria, é uma trama complexa devido à tendência húngara de expandir e contrair seu território, regularmente. Fronteiras, população e governantes mudavam, com freqüência, em decorrência de suas vitórias ou derrotas.

Há achados arqueológicos que confirmam que remonta à época do Império Romano, em meados do séc. III desta Era, a presença dos primeiros judeus na província romana da Panônia, na região ocidental da atual Hungria. Após a queda dos romanos, a região foi invadida por tribos germânicas e, mais tarde, passou a fazer parte do império de Carlos Magno. Há poucas informações sobre a vida judaica no período, que se estende desde a decadência de Roma até a chegada dos magiares. Estes últimos, no final do séc. IX, ocuparam as margens do Danúbio. É desse povo emigrado das estepes da Rússia que descendem os húngaros. Sua importância para a história da região pode ser facilmente avaliada pelo fato de que a Hungria é também chamada "Mgyarorszag", o que significa, em seu idioma, "país dos magiares".

A vida da comunidade suas oscilações

No final do séc. X, os magiares converteram-se ao cristianismo, iniciando a estruturação de um reino independente, liderados por Estevão I. Posteriormente canonizado como Santo Estevão, o rei unifica a região no início do séc. XI. Apesar de documentos datados do séc. XI indicarem a presença de judeus no Reino da Hungria, desde seus primeiros anos de existência, a comunidade judaica realmente cresceu a partir da segunda metade do séc. XI, com a chegada de judeus vindos da Alemanha, Boêmia e Morávia. Muitos se estabeleceram nas cidades de Buda, Esztergon, Sopron, Tata e também na antiga Buda, que ficaram conhecidas como "comunidades judaicas históricas".

À exemplo do que ocorreu em outras partes, também na Hungria a Igreja tentou impor a adoção de medidas restritivas sobre os judeus. Em 1092, por exemplo, foram proibidos de se casar com cristãos, de trabalhar aos domingos e de adquirir escravos. Muitas não chegavam a ser efetivadas, devido à objeção dos monarcas. Apesar das restrições, durante a Alta Idade Média os judeus da Hungria viviam em relativa segurança e tranqüilidade, se compararmos com os de outras regiões da Europa. Em várias ocasiões os reis húngaros protegeram os judeus - em troca do pagamento de impostos diretamente ao Tesouro real - e rejeitaram alguma das medidas restritivas que pediam o clero e a nobreza. No final do séc. XI, o rei Kálmán, além de permitir a imigração judaica, proibiu aos participantes da Primeira Cruzada a passagem por suas terras. Dessa forma, os judeus húngaros foram poupados da devastação que se abatera sobre outras comunidades que se encontravam no caminho da Primeira Cruzada (1096-1099).

Em 1222, os judeus foram proibidos de assumir certos cargos no governo e de receber títulos de nobreza e, em 1279, de arrendar terras; sendo, também, obrigados a usar distintivos na roupa. No entanto, o rei Bela IV, visando reconstruir o reino após a invasão dos mongóis, incentivou a vinda de judeus e, em 1251, assinou a "Carta de Privilégios". Com esta, os judeus passavam a "servos da Câmara Real", diretamente subordinados à autoridade do rei, ao qual pagavam diretamente os impostos. Em troca, contavam com sua proteção. Tal compromisso foi mantido durante séculos, embora submetido a altos e baixos.

Foi no início do séc. XIV que a tranqüilidade dos judeus começou a se dissipar. A intolerância religiosa somada a ressentimentos de fundo econômico, levaram a perseguições, libelos de sangue e expulsões. A influência da Igreja também aumentou e, em 1349, os judeus foram expulsos da Hungria, apenas sendo readmitidos em 1364. Com a deterioração da situação política e econômica, em fins do séc. XV e início do XVI, a comunidade judaica passou a ser, ainda mais, o alvo predileto de leis discriminatórias, impostos exorbitantes e confiscos reais. Em 1494, na cidade de Tyrnau, 16 judeus foram mortos na fogueira, acusados de assassinato ritual. Outros distúrbios ocorreram em Pressburgo, Buda e em outras cidades. Contudo, como a situação dos judeus em outros países europeus era ainda pior, as expulsões de comunidades judaicas inteiras da Áustria e da Alemanha levaram muito judeus a procurar refúgio na Hungria. Judeus vindos de outros países do Leste atravessaram os Cárpatos e se assentaram no nordeste do país.

Império Otomano

Empobrecida e discriminada, a população judaica húngara recebeu, com alívio, os turcos otomanos que invadiram o país, em 1526. A primeira cidade conquistada foi Buda. Em 1541, a região central do país se torna parte do Império Otomano, enquanto as regiões norte e oeste ficam sob o domínio dos Habsburgos. Sob o domínio turco, além de terem liberdade religiosa, era-lhes permitido exercer inúmeras profissões. Com o abrandamento da intolerância, aumenta o fluxo de imigrantes judeus para Buda, que passa a ser uma das mais importantes comunidades de todo o Império Otomano, recebendo judeus sefaraditas vindos da Ásia Menor. E foram justamente as comunidades judaicas de Buda e também de Pest, que permaneceram sob domínio turco por 150 anos, as que floresceram.

Império dos Habsburgos

A dominação otomana durou até o final do séc. XVII, quando a dinastia austríaca dos Habsburgo conquista toda a Hungria. Quando em 1686 estes conquistadores tomaram Buda, o bairro judaico foi saqueado e, mais da metade de seus mil habitantes, mortos. Com a saída dos turcos o anti-semitismo volta a crescer e há uma nova onda de expulsões, em algumas cidades. Apesar disso, o final do séc. XVII e o início do XVIII registram novo aumento da imigração judaica. Expulsos da Polônia, Morávia, Galícia, assim como da Áustria e Alemanha, os judeus se instalam na Hungria. Enquanto na primeira década do séc. XVIII havia, aproximadamente, 4 mil judeus no país, em 1735 esse número chegara a 12 mil.

Quando Maria Theresa, imperatriz da Áustria (1740-1780) subiu ao trono, os judeus passaram a ser obrigados a pagar "taxas de tolerância", sendo alvo de violentas perseguições. Em 1746, foram banidos da cidade de Buda. Somente no reinado de José II melhoram suas condições de vida. Fortemente influenciado pelo Iluminismo, o rei adota várias medidas de cunho liberal: emancipa os judeus parcialmente em 1783 e permite que se estabeleçam em cidades reais.

Em 1788, a população judaica da Hungria já somava 81 mil pessoas, chegando, em 1800, a 100 mil. Foi nesse período que um grande número de judeus se estabeleceu na região nordeste da Hungria, a Rutênia-sob-os-Cárpatos. A maioria era originária da Galícia, onde a situação política e os constantes conflitos militares, assim como as precárias condições econômicas tornavam a vida muito difícil. Esta imigração tomou proporções ainda maiores na primeira metade do séc XIX. Em sua maioria, tais judeus eram ortodoxos ou chassidim e viviam em shtetls onde apenas se falava o iídiche.

A emancipação

Na Hungria, o Iluminismo fez inúmeros adeptos. A monarquia adotou o despotismo esclarecido; parte da nobreza tornou-se partidária das idéias liberais e muitos judeus nutriam o desejo de se tornar "húngaros de fé judaica". Durante o governo de José II, estes viram serem abolidas as restrições e discriminações no âmbito comercial e profissional. O país precisava de uma classe média dinâmica para se modernizar e os judeus eram homens de negócios capazes de levar adiante esse processo. E estavam prontos a se tornar "húngaros". O período de 1830 a 1840 foi marcado pela consolidação de seus direitos civis. Foram também autorizados a se instalar em Debrecen, a terceira maior cidade do país. A emancipação implicou num rápido processo de aculturação e assimilação, pois em troca das concessões exigiu-se que adotassem nomes alemães, falassem alemão e freqüentassem escolas laicas, não judaicas.

Em 1848, muitos judeus participaram, ao lado de nacionalistas húngaros, de uma revolução liberal que tinha como objetivo a independência da Hungria.Quando a revolução foi esmagada, foram revogados os direitos concedidos aos judeus pelos revolucionários magiares. Mas, a derrota austríaca na guerra austro-prussiana fortaleceu a posição dos húngaros e, pelo Compromisso de 1867, é então criado o Império Austro-húngaro, monarquia dualista que vigorou até sua derrota na 1ª Guerra Mundial. Segundo o acordo, a Hungria passa a ter autonomia interna. Budapeste torna-se a capital e experimenta um rápido desenvolvimento econômico e cultural. Em dezembro do mesmo ano é concedida aos judeus a emancipação total. Em 1885 é permitido o casamento com não-judeus e em 1895 o judaísmo é oficialmente reconhecido pelo Estado como "religião". Seu status de "nacionalidade" é abolido e os judeus passam a ser vistos como "magiares de fé mosaica". A completa emancipação lhes abriu as portas da sociedade húngara. Um tácito acordo passa a existir entre a burguesia judaica e as elites húngaras. Enquanto a primeira seria responsável pela modernização dos meios de produção e infra-estrutura e o aporte de capital, a elite política não judaica seria responsável pela legislação e administração necessárias para a expansão econômica.

O papel dos judeus foi de fato fundamental na criação e desenvolvimento econômico do país, pois tinham criado e eram os proprietários ou gerentes de grande parte das indústrias de base e de mineração nacionais, além de pelo menos de um dos grandes bancos. Entre os judeus húngaros emergiu uma burguesia e uma elite intelectual que considerava a Hungria sua pátria e não via problema algum em conciliar este fato com sua herança judaica.

Na virada do século, a economia húngara registrava um altíssimo índice de crescimento. Estatísticas da época podem dar-nos uma idéia do peso da comunidade judaica para a vida do país. Em Budapeste, onde se concentravam o meio comercial, intelectual e artístico, um em cada quatro habitantes era judeu. Antes da 1ª Guerra Mundial, havia 900 mil judeus no país. Apesar de ser menos de 5% da população total, este número representava 60% dos comerciantes, 26% dos artistas e escritores, 42% dos jornalistas e 49% dos médicos, no país. Tendo permissão para comprar e arrendar terras, algumas famílias tornaram-se grandes latifundiários e, com isto, tornaram-se nobres. Títulos de nobreza foram concedidos pelos Habsburgos a 350 famílias judias.

Historiadores consideram o séc. XIX como tendo sido um período de prosperidade e realizações para grande parte dos judeus húngaros. Nessa época, marcada pelo otimismo e tranqüilidade, os judeus que se consideravam "magiares de fé mosaica" construíram uma série de sinagogas, através das quais se pode vislumbrar um mundo que morreu na 1ª Guerra Mundial. Entre estas, destacam-se a sinagoga da rua Josika, em Szeged, considerada uma das mais lindas do mundo (capa desta edição; v. artigo pág. 44); a da cidade de Apostag, construída em 1821 num estilo chamado de Zopf; a sinagoga neo-romanesca de Miskolc, de 1856-62; a barroca, de Koszeg, erguida em 1859; a da cidade de Gyor, de 1871; bem como a de Debrecen, de 1895-97 e a de Pécs.

Mas, nem todos se beneficiaram com o boom econômico. Na zona rural, a maioria dos judeus permaneceu pobre, o mesmo ocorrendo com as camadas menos privilegiadas, nas cidades. Além disso, na medida que a emancipação abriu inúmeras possibilidades, criou também uma série de conflitos e discrepâncias. Isto fez com que a comunidade judaica acabasse sendo dividida, tanto no aspecto do idioma quanto da religião.

A maioria dos judeus da região central do país falavam húngaro e, integrados no processo de emancipação, participavam da vida econômica, social e cultural do país.

Sob a influência da Haskalá, o Iluminismo, os "judeus magiares" buscavam uma adequação do judaísmo à modernidade, advogando reformas litúrgicas. O movimento chamado de neologista cresceu enormemente e, em 1859, seus adeptos construíram em Budapeste a maior sinagoga da Europa e a segunda maior do mundo: a da rua Dohány, em estilo arquitetônico romântico e com capacidade para três mil pessoas.

Por outro lado, o norte da Hungria tornou-se um centro de ortodoxia e do estudo talmúdico. No noroeste estavam os judeus ortodoxos influenciados pelas tradições e a língua alemã. A ieshivá da cidade de Pressburgo foi das mais famosas do mundo. No nordeste, residiam os chassidim, principalmente nas regiões de Szatmar, Belz, Bereg (inclusive Munkacz), Satora, Vizhnitz e Sighet, que praticamente só falavam o iídiche.

Anti-semitismo latente

O desenvolvimento econômico deste período também não beneficiou toda a sociedade húngara e um sentimento de insatisfação permeava vários de seus segmentos. A pequena nobreza e parte dos intelectuais magiares não viam com bons olhos o capitalismo, a perda de privilégios e a ascensão dos judeus. Padres católicos se opuseram à emancipação, camponeses eslovacos responsabilizavam os judeus por sua pobreza. Os judeus se transformaram no bode expiatório perfeito para todos os males do país.

Estavam criadas as condições para uma nova eclosão do anti-semitismo. Ataques irrompem em vários pontos do país: jovens universitários são espancados em 1882; no povoado de Tiszaeszlar ocorrem libelos de sangue e, em Budapeste, o exército tem de ser acionado para impedir um pogrom. Os liberais nacionalistas que ainda estavam no poder apelaram contra a intolerância e a situação aparentemente se acalmou. Mas, como a maioria dos judeus continuavam em difícil situação econômica e alguns acreditavam que a situação não tinha como melhorar, cerca de 100 mil deixaram a Hungria nas 4 décadas após a emancipação, permanecendo cerca de 900 mil. Estes formavam uma comunidade próspera e numerosa que, apesar das nuvens que se aproximavam, adentrou o séc. XX cheia de esperanças.

Bibliografia:

Rivka e Ben Zion Dorfman, Synagogues without Jews, The Jewish Publications, Philadelphia

Peter I. Hidas, Ph.D., A Brief Outline of the History of the Jews of Hungary, palestra proferida em 1992 na sinagoga Emanu-El Beth Solom, Westmount, Quebec, Canada

Alan M. Tigay, The Jewish Traveler, Hadassah Magazine's