Ícone da música árabe-andaluz, Enrico Macias se tornou porta-voz de todo um povo, desarraigado da África do Norte durante a década de 1960. As melodias entoadas, há tantos anos, por este judeu argelino, atualmente radicado em Paris, são prova de que o artista construiu uma carreira internacional de sucesso, sem, no entanto, abandonar suas raízes.

Cantor da utopia do amor e da amizade entre todos os povos, Macias busca, desde o início de sua carreira, transmitir seus ideais de paz e solidariedade. Seu último disco, "Oranges amères" lançado em 2003, é fruto desse universo que, justamente, é o que nele a todos encanta e seduz.

O cantor, cujo nome verdadeiro é Gaston Ghernassia, nasceu em 11 de dezembro de 1938, em Constantina, cidade da Argélia, que, dada a sua efervescência religiosa, era chamada de "pequena Jerusalém". Em sua casa, eram muito respeitadas as tradições judaicas. Sua mãe descendia de uma linhagem local de judeus, enquanto que os ancestrais de seu pai vinham da Andaluzia, mais precisamente de Granada. Gaston cresceu na mais pura tradição musical do maaluf, canto tradicional árabe-andaluz - seu pai era violinista da orquestra do grande mestre Cheikh Raymond Leyris.

Macias retém seus laços com seu país natal, apesar de viver há muitos anos na França. Desde pequeno, trazia no peito o tema de suas futuras músicas, o dilacerar entre as culturas judaica e árabe; a música que seu pai tocava, o sol e as crianças da Argélia.

A tremenda diversidade de estilos musicais e de tradições nesse país reflete as diferentes etnias que compõem a população. A música maaluf ou andaluz, tocada em instrumentos tradicionais, é a forma mais comum da música oriunda da Andaluzia, na Espanha, e chegou à Argélia no século XV, logo após a expulsão dos árabes daquele país. Além disso, assim como nas canções de Enrico Macias, há também na música argelina toda uma influência cultural dos pieds noirs *.

Os Ghernassia são o que se pode chamar de uma família de músicos, com um talento transmitido de pai para filho, durante gerações. Desde sua juventude, "Gaston-Enrico" tocava violão e logo passou do violão à harmônica. Sua musicalidade era um dom e costumava dizer: "Em termos musicais, eu poderia ser comparado a um homem que fala muito bem, mas não sabe escrever. Tudo brotou por intuição". Aos 8 anos aprendeu sozinho a tocar a mandola, tipo de bandolim. Seu pai, querendo preservá-lo das dificuldades da profissão, preferia não ser seu mestre. Mas ele tocava escondido. Até que, aos 12 anos, no Bar mitzvá de seu irmão, o pai lhe pediu para tocar algo para os convidados. Acompanhado por Cheikh Raymond, bastou que começasse a dedilhar o violão para revelar seu talento. Ao final do dueto, impressionado pelo jovem, o mestre do maaluf o convida para integrar sua prestigiosa orquestra.

Em 1956, obtém o seu diploma do colegial francês, o Bac, e começa a lecionar para se sustentar, sem no entanto largar o violão.

Nessa época, a Argélia "francesa" vivia seus últimos dias - católicos, judeus e muçulmanos ainda viviam no mesmo território, em aparente harmonia. Mas, a situação era politicamente instável. Os argelinos, colonizado pela França por mais de 130 anos, queriam sua independência. Em 1954, Ahmed Ben Bella funda um movimento nacionalista, a Frente de Libertação Nacional (FLN), e seu braço militar, o Exército de Libertação. Inicia-se a Guerra de Independência (1954-1962), que acaba sendo prolongada e muito sangrenta, em virtude da resistência dos colonos franceses, os pieds noirs, senhores das melhores terras.

Quando, em 22 de junho de 1961, Cheikh Raymond é assassinado, de forma selvagem, em Constantine, o jovem Gaston e os judeus, todos se deparam frente a uma triste realidade - a iminência do exílio, triste sinal do fim de uma época.

O exílio

No mesmo ano, Gaston embarca com a esposa, Suzy, filha de Cheikh Raymond Leyris, na companhia de toda a sua família e amigos no navio Ville d'Alger, que os levará à França. A partida é um duro golpe para toda uma comunidade condenada ao exílio.

Instalado em Paris, o jovem músico tenta, sem muito sucesso, impor na França aquela música tão sua. Ele compõe um repertório pessoal, marcado por suas próprias experiências. Para sobreviver, exerce várias atividades, sem jamais deixar de tocar o violão nos terraços dos cafés. Conseguiu gravar seu primeiro disco depois de um encontro com Raymon Bernard, do Chez "Pathé", que o fez gravar "Adieu, mon pays" (Adeus, meu país), letra composta durante a travessia, a caminho do exílio. "Deixei meu país, deixei minha casa, deixei minha família"...

Em outubro do mesmo ano, aparece em um programa de televisão sobre os expatriados da Argélia, "Cinq colonnes à la une", e, a partir de então, é o ínício da fama.

O ano de 1963 é importante em sua carreira - é quando faz sua primeira turnê. É também o ano do nascimento de sua filha, Jocya (o filho Jean-Claude nasceria pouco depois). Em 1964, Gaston adota definitivamente o nome artístico de Enrico Macias, apresenta-se no teatro Olympia e conquista um sucesso fenomenal com hits como "Enfants de tous pays", "Les filles de mon pays" e "La musique et moi". Começam também as intermináveis turnês ao redor do mundo: Líbano, Grécia e Turquia.

Se seu público original era constituído especialmente de exilados da África do Norte - entre os quais os judeus, também chamados de pieds noirs, muito identificados com seu repertório além de se sentirem "representados" por ele - a partir dessa época sua popularidade ultrapassa o público de língua francesa, indo além-fronteiras. Essas viagens lhe permitem exportar facilmente sua filosofia fraternal e sua mensagem de paz entre os povos, sem nunca se imiscuir pelos meandros da política.

Em 1965, o cantor recebe o prêmio Vincent Scotto e compõe "Les gens du Nord" e "Non, je n'ai pas oublié". No ano seguinte, apresenta-se em Moscou para um público de 120 mil pessoas, no estádio Dínamo, e em outras 40 cidades soviéticas. Segue para o Japão, onde faz um sucesso impressionante. Grava discos em espanhol e italiano; nada o consegue deter.

Em 1968, agrada em cheio no Carnegie Hall, em Nova York, e faz muitas turnês pelos Estados Unidos: Chicago, Dallas, Los Angeles. Vai a Londres, volta ao Japão, Itália e Espanha; e, novamente, aos Estados Unidos. Espantosamente, a música de Macias parece universal, de Nova York a Tóquio, passando por Paris e Moscou. Seus shows, ao sabor mediterrâneo, atraem milhares de pessoas e seus discos vendem milhões de cópias ao longo da década de 1960.

Sadat e as pirâmides

Enrico Macias ganha o Disco de Ouro, em 1972, por seu álbum "Melissa", no qual se encontra a linda música "Malheur à celui qui blesse un enfant" (Infeliz daquele que fere uma criança). Em 1978 realiza, com enorme sucesso, uma grande turnê por Israel. No mesmo ano é convidado pelo presidente egípcio Anuar Sadat a se apresentar no Egito. Proibido por longos anos de entrar nos países árabes, Macias, filho de tradicional família judia da Argélia, apresenta-se diante de 20 mil pessoas, com grande êxito, aos pés das pirâmides. Sua mensagem é de paz, com canções como "Aimez-vous, les uns les autres" (Amem-se, uns aos outros). Em novembro de 1980, o então secretário da Organização das Nações Unidas, Kurt Waldheim, outorga ao cantor o título de "Cantor da Paz". Macias abre mão dos direitos autorais pela música "Malheur à celui que blesse un enfant" em benefício da Unicef. No mesmo ano, lança dois discos: "Juif Espagnol" (Judeu espanhol) e "Le mendiant de l'amour" (O mendigo do amor). Com sua música, o cantor prega o amor e a paz, mas constata, com tristeza, que os eventos mundiais indicam o contrário.

Anuar Sadat é assassinado em 6 de outubro de 1981. Enrico Macias compõe para ele "Un berger vient de tomber" (Um pastor acaba de cair). Em março de 1985, Macias recebe a comanda da "Legião de Honra" do primeiro ministro francês, Laurent Fabius. Em Israel, em 1988, seu novo disco,"Zingarella", estoura nas paradas. Seu apego a valores universais, como paz e solidariedade, faz com que Kofi Annan, secretário geral da ONU, confira-lhe, em 1997, o prestigioso título de "Embaixador para a promoção da paz e defesa das crianças".

Volta às origens

Dividido entre ser um cantor de charme e um cantor de mensagens, Macias continuou determinado a fazer renascer a cultura que cimentara no passado - uma ponte a ligar judeus e muçulmanos. Após uma carreira tão bem sucedida, deve-se dizer que o cantor ainda representa na França a cultura dos "pieds noirs", praticamente em vias de desaparecimento, à medida que vai desaparecendo a geração que nasceu com a cidadania francesa, na antiga colônia. Essa imagem o impede de atingir um público mais jovem. Em 2000, o presidente argelino o convida a se apresentar no país, mas problemas políticos o levaram a desistir, lembrando-lhe que, por ser judeu, não seria bem vindo em um país árabe. Essa rejeição lhe causou muita dor: viveu o insulto não somente como à sua pessoa mas a todos os judeus da Argélia. Entretanto, ainda espera, um dia, apresentar-se em sua terra natal.

Em 2001, Macias escreve um livro em colaboração com Florence Assouline, "Mon Algérie", com selo da editora Plou. Conta a verdadeira história de amor que o une à terra que o viu nascer.

No início de 2003, Enrico Macias assina um novo disco, Oranges amères" (Laranjas amargas), supervisionado e re-mixado de forma eletrônica por seu filho, o produtor Jean-Claude Ghernassia. O disco atinge a marca dos 100 mil exemplares vendidos. Nesse álbum, Macias volta aos sons árabe-andaluzes do início de sua carreira, com novos textos sempre muito marcados pelo tema da paz entre os homens.

O lançamento, após sete anos sem nenhuma canção nova, soa como o retorno de um artista sexagenário, que alguns, erroneamente, julgavam esquecido. O sentido de suas músicas se torna universal, exaltando os valores de paz, de amor e de respeito às crianças. Ele nunca suportou a injustiça, não conseguindo entender que a violência fosse aceita como uma solução. "Matar alguém é como matar a si próprio. Minhas músicas apenas refletem os valores pelos quais tenho a mais profunda convicção. Os textos como 'Enfants de tous pays' (Crianças de todos os países) parecem utópicos, mas não posso deixar de acreditar que minhas visões se realizarão, um dia". Ao mesmo tempo em que se apresentava no Zenith, em Paris, ele lançava um álbum duplo gravado ao vivo, intitulado "Live à l'Olympia 2003", com seus antigos sucessos ao lado de canções mais recentes. Após uma tentativa no cinema ("La veritè si je mens 2" - A verdade se eu minto 2) e uma vida bem agitada, Enrico Macias continua, com a ajuda do filho, a nos brindar com sua música oriental.

Com mais de 65 anos, esse eterno jovem emana charme e acaba por seduzir todas as gerações de espectadores. Um exemplo notável de longevidade e autenticidade.

Bibliografia:

www.fr.news.yahoo.com/biographies/ enrico_macias.html

www.ramdam.com/art/m/enricomacias_bio.htm

www.rfimusic.com/siteEn/biographie/ biographie_6206.asp