Com a candidatura do democrata John Kerry à Casa Branca, a sombra do ex-presidente Bill Clinton volta a pairar sobre o Oriente Médio.

O adversário de George W. Bush na eleição de 2 de novembro chegou a dizer que, se eleito, poderia convidar Clinton para ser seu emissário na questão israelo-palestina. A posição de Kerry anima aqueles que se recordam com saudades da ação direta e intensa do presidente democrata nos tempos do Acordo de Oslo, nos anos 90, mas desperta preocupações em quem teme pressão de Washington sobre Israel para negociar com uma liderança palestina que ainda não se submeteu a reformas para eliminar o terrorismo e a corrupção.

O senador John Forbes Kerry, ciente das preocupações que desperta em alguns setores da comunidade judaica norte-americana, se reuniu com cerca de 40 líderes comunitários às vésperas da "Super Terça", dia das primárias em março último que selou a escolha do candidato democrata. Kerry também convocou a reunião na tentativa de explicar uma declaração feita a uma comunidade árabe em Michigan, em outubro passado, quando criticou a barreira de segurança que Israel constrói para se proteger de terroristas oriundos da Cisjordânia.

Kerry buscou, no encontro de Nova York, dissipar dúvidas sobre seu comprometimento com Israel e discursou para rejeitar a idéia de que o presidente George W. Bush proporcionaria ao Estado judeu apoio mais decidido do que uma futura administração democrata. "A cerca de segurança de Israel é um ato legítimo de autodefesa", sustentou o senador, que representa Massachusetts no Congresso desde 1984.

O candidato também mencionou sua origem no debate com as lideranças comunitárias. Disse que, se eleito, seria o primeiro presidente norte-americano com uma herança judaica, pois seus avós paternos eram judeus tchecos que se converteram ao catolicismo pouco antes de emigrarem para os Estados Unidos, no início do século passado. Ao menos dois parentes de Kerry morreram em campos de extermínio nazistas.

Os elos judaicos da família Kerry incluem também o irmão do candidato e um de seus conselheiros mais influentes. Cameron converteu-se ao judaísmo vinte anos atrás e, com a sua mulher Kathy Weinman, mantém laços estreitos com a comunidade judaica de Boston. Às vésperas da "Super Terça", John Kerry visitou a sinagoga Ramath Ora, em Manhattan.

O candidato espera beneficiar-se da tendência histórica de a comunidade judaica norte-americana votar majoritariamente no Partido Democrata. A última vez que um republicano obteve mais votos do que um democrata no universo comunitário foi em 1920, quando Warren G. Harding amealhou 43%, contra 19% de James Cox, segundo levantamento do pesquisador Steven Windmueller.

Na eleição de 2000, George W. Bush conquistou 19% dos eleitores judeus. A guerra contra o terror e o apoio maciço a Israel devem elevar esse patamar. O Comitê Judaico Norte-Americano divulgou pesquisa em janeiro que mostrava 31% das intenções de voto ao candidato republicano, contra 59% para Kerry. Os indecisos somavam 10%.

Kerry também despertou receio em setores da comunidade judaica ao se divulgar que, em conversas reservadas, o candidato democrata teria usado discurso bastante ácido em relação ao primeiro-ministro Ariel Sharon. O adversário de Bush também surpreendeu em dezembro ao revelar que sua escolha de enviado ao Oriente Médio poderia recair sobre o ex-secretário de Estado James Baker ou o ex-presidente Jimmy Carter, ambos tidos como "críticos em relação a Israel".

Em esforços para consertar a imagem e recuperar votos judaicos, Kerry insistiu numa velha idéia: "O enviado que eu vou escolher terá a confiança e a habilidade para falar com todos os lados. Depois de minha viagem ao Oriente Médio no início de 2002, eu afirmei publicamente que o presidente Clinton seria uma escolha excelente para essa posição e continuo acreditando nisso", declarou. Depois, o senador teria mencionado o nome de dois integrantes da era Clinton que poderiam atuar como emissários na questão israelo-palestina: Samuel Berger, ex-conselheiro para assuntos de segurança nacional, e Dennis Ross, que atuou como enviado especial da Casa Branca ao Oriente Médio.

Os defensores de Kerry apontam sua longa atuação no Senado como forte indício do comprometimento com o Estado judeu. Argumentam ainda que o candidato democrata, que visitou Israel algumas vezes, conhece melhor do que o seu rival Bush os meandros do intricado desafio do Oriente Médio. Herói da Guerra do Vietnã transformado em pacifista, Kerry fala em "maior envolvimento de seu país no processo de paz" e tenta mostrar que sua estratégia para combater o terror global pós-11 de setembro vai enfatizar alianças internacionais e o papel da ONU, além de diminuir o peso militar usado pelo governo Bush. O candidato democrata, que protagonizou vitória surpreendentemente rápida nas primárias, contará ainda com preciosos meses de campanha para dar contornos mais definidos a suas propostas.

O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br e articulista da Folha de S. Paulo. Foi editor internacional e correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.