Antes mesmo de seu lançamento nas salas de cinema de todo o mundo, o filme "A Paixão " produzido e dirigido pelo ator Mel Gibson, gera debates e críticas pela violência de suas cenas.
Morashá
Aparentemente, a narração da "Paixão de Jesus" foi, no passado, um assunto bastante delicado para os judeus. Como vê esta questão?
Rabino David Weitman
Efetivamente, ao se fazer uma retrospectiva, não há dúvida de que, durante séculos, principalmente na Europa, o período da dramatização da Paixão de Jesus sempre se constitui um momento difícil para as comunidades judaicas. Os judeus sabiam que, nessa época, o ódio das massas contra eles era mais insuflado, levando a perseguições, massacres e matanças de inocentes, os chamados pogroms. Por isso, muitas pessoas se trancavam em suas casas, já antevendo a onda de violência que poderia se abater sobre a população judaica em dia nefasto e difícil. O responsável pela transformação gradativa dos sentimentos do mundo cristão em relação aos judeus foi o Papa João XXIII, pioneiro que, em 1965, durante o Concílio Vaticano II, definiu novas regras sobre o tema da Paixão e as incluiu no documento denominado Nostra Aetate, que renegava claramente o conceito secular de que os judeus eram os responsáveis pela morte de Jesus. Segundo as determinações desta declaração conciliar (Encíclica), não se poderia mais imputar a culpa aos judeus pelos acontecimentos do passado. Ele retirou, sem sombra de dúvida, a acusação de deicídio e proibiu a disseminação de manifestações anti-semitas durante as preces e liturgias, em todo o mundo. O Papa também lamentou os ressentimentos e as mágoas do passado, ressaltando que os judeus não poderiam mais ser condenados ou amaldiçoados.
Morashá :
Será que a abordagem apresentada no filme de Mel Gibson é historicamente correta?
Rabino David Weitman:
O filme é simplesmente uma aberração, ou melhor, uma adulteração da história na medida que não narra os fatos corretamente e, principalmente, por contradizer as determinações do Concílio Vaticano II, responsabilizando novamente e exclusivamente o povo judeu pela morte de Jesus. Infelizmente, não se pode, neste momento, deixar de lembrar que o próprio pai de Gibson negou recentemente a extensão do Holocausto, rejeitando a verdade histórica de que este tenha feito tantas vítimas. Ou seja, ele apresentou a "sua" versão do Holocausto, tentando mudar o rumo da história e minimizando suas conseqüências principalmente no referente à tragédia que se abateu sobre os judeus, na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. Em sua apresentação da Paixão, o ator e diretor também segue a mesma trajetória, tentando mudar os fatos e buscando denegrir o povo judeu. Apresenta como o vilão da história, quando é um fato histórico incontestável que o poder vigente na região na época, era o romano. A área que incluía Jerusalém e a Galiléia, na então Israel, fazia parte do Império Romano; portanto, tudo o que acontecia ali era de responsabilidade total de Roma.
Morashá:
Qual era a relação entre a elite judaica e os representantes de Roma, naquele período?
Rabino David Weitman:
É preciso sempre ter bem claro que, naquela época, o povo de Israel era súdito do Império Romano. Como tal era oprimido e sujeito a um poder supremo representado pelo governador - indicado por Roma - e pelo exército romano. Não havia outro poder político e eram estas forças - governador e exército - que tomavam todas as decisões. É necessário lembrar, ainda, que, a exemplo de Jesus, centenas de milhares de judeus que viviam sob dominação romana também morreram crucificados e que comunidades inteiras da Galiléia foram exterminadas pelos soldados durante o governo do imperador Adriano. Dizem nossos sábios que os cavalos cavalgavam nos povoados judaicos em meio a um mar de sangue, tantas as vítimas inocentes das tropas de Roma. Como poderia, então, esta suposta elite judaica decidir ou impedir a morte de Jesus se não era capaz sequer de impedir a matança constante de tantas outras pessoas? Infelizmente, o sofrimento e o martírio de milhões de judeus, entre os quais rabi Akiva e outros nove sábios, durante este período, é sistematicamente omitido da história. Por estas e outras omissões, o filme de Gibson não pode ser considerado correto do ponto de vista histórico. Ao apresentar o governador Pôncio Pilatos e outros representantes do poder romano como pessoas boas e piedosas, e os judeus como indivíduos vingativos, cruéis e maléficos, o produtor e diretor adultera deliberadamente a história. Todos sabem o quanto os judeus têm compaixão e são piedosos, bem diferentes das crueldades romanas.
Morashá:
Mas, afinal, Gibson não tem o direito de produzir um filme de acordo com os Evangelhos?
Rabino David Weitman
É importante ressaltar que este filme não segue a narração da Paixão baseada nos Evangelhos. É sabido que Gibson usou outras fontes, autores que têm uma visão própria dos fatos apresentados. A discrepância em relação aos Evangelhos é tamanha que houve até um bispo em Detroit (EUA) que afirmou que a dramatização feita no filme não seguia os Evangelhos, mas sim era "segundo Mel Gibson". É uma versão própria. Também é importante lembrar, como a imprensa norte-americana vem repetindo há meses, que o filme é uma abordagem sádica com a duração de duas horas. A Conferência Nacional dos Bispos Católicos dos Estados Unidos emitiu tempos atrás um guia pastoral para os interessados em produzir uma dramatização sobre a Paixão de Jesus. Entre as dezenas de regras apresentadas estão a proibição da caricaturização de personagens e do uso da acusação de deicídio contra os judeus. O filme de Gibson viola todas as regras definidas pelos religiosos norte-americanos e desafia as determinações do Concílio Vaticano II. É claro que um ator, diretor ou produtor tem o direito de fazer um filme com a sua visão. Mas é também universalmente reconhecida a idéia de que o produtor, justamente pela sua influência junto ao público, deve ser responsável social e moralmente. Ele deve estar consciente de que o cinema é um instrumento de comunicação de massa e que os filmes têm um impacto imediato e podem deixar marcas profundas no público que os assiste. Um ator como Gibson jamais poderia ter adulterado desta forma os fatos históricos, utilizando o seu filme para inflamar as massas, reabrindo feridas que estavam começando a cicatrizar.Várias sugestões de mudanças no roteiro foram feitas a Gibson por teólogos católicos e protestantes, para que obra se aproximasse mais da verdade, mas ele se recusou a acatá-las.
Morashá:
Quais podem ser as conseqüências deste filme?
Rabino David Weitman :
Este filme pode causar um retrocesso na história das relações entre a Igreja e o Judaísmo. Pena que realmente, talvez por razões puramente financeiras, Gibson fez questão de produzir este filme de acordo com a sua visão pessoal sobre o tema. Não há dúvida de que este filme fomentará ódio, intolerância e anti-semitismo, pois é difícil assistir duas horas de atos sádicos e sofrimento e não sair das salas de exibição revoltado com o vilão da história que, segundo Gibson, é o povo judeu. Por isso, ele foi totalmente irresponsável, principalmente se levarmos em consideração que a humanidade, diante do terrorismo que está matando milhares de inocentes, busca formas de cultivar a harmonia e a paz entre os povos. Não se pode, também, esquecer que exibir um filme como este em um momento em que a Europa vive um período de recrudescimento do anti-semitismo, além de um ato irresponsável é, acima de tudo, repulsivo.