Berço do Renascimento italiano, é uma das cidades mais belas do mundo. Foi sob o domínio da família Médici, que a governou desde o início do século XV até meados do século XVIII, que atingiu o seu apogeu.

Sob os auspícios dos poderosos Médici, artistas como Donatello, Brunelleschi, Ghiberti, Filippo Lippi, Botticelli, Michelangelo, Leonardo da Vinci e Galileu Galilei fizeram de Florença um dos maiores centros de arte do mundo. Segundo a Unesco, 60% dos tesouros artísticos da humanidade estão na Itália, metade dos quais em Florença.

A história e a fortuna dos judeus de Florença também estão estreitamente ligadas aos Médici. Pragmáticos governantes e banqueiros, além de grandes mecenas, os Médici estenderam sua proteção aos judeus durante o período mais feroz da Inquisição. Foi à sombra dessa poderosa família que, durante cerca de dois séculos de relativa tranqüilidade, a comunidade se desenvolveu e ocupou um lugar singular na história judaica européia. Assim como em outras comunidades judaicas da Itália, os judeus de Florença participaram da vida e das conquistas culturais do Renascimento. Ainda que no final do século XVI tenham sido obrigados a viver em um gueto, continuaram a se desenvolver.

A importância da presença judaica na história de Florença, em particular durante a Renascença, sempre foi objeto de estudo. Mas, foi somente a partir de 1998, com o início de um novo projeto histórico, na cidade - o Projeto do Arquivo Médici - que se tornou mais precisa a visão sobre as estreitas ligações entre os Médici e os judeus da região. Este projeto visa analisar e catalogar os 300 mil documentos e 3 milhões de cartas pertencentes à família Médici, guardados no Arquivo do Grão-ducado dos Médici. Neste encontram-se a correspondência da família, documentos da administração grã-ducal e os registros do serviço diplomático toscano, do período de 1537 a 1743.

Vivendo sob proteção

Há registros da presença judaica na cidade na época do Império Romano e na Idade Média. Segundo dados históricos, já em 1369 a Comuna de Florença permitia aos judeus participar de atividades ligadas ao setor de finanças. Nas primeiras décadas do século XV, judeus proeminentes atuavam como banqueiros e até embaixadores da República. Um machzor escrito de acordo com o ritual italiano e vendido em Florença, em 1444, atesta a presença de judeus na cidade. No entanto, a implantação oficial de uma comunidade judaica somente se deu após o início da hegemonia dos Médici. Pode-se até dizer que a comunidade foi uma criação da poderosa família. As grandes diferenças políticas entre os Médici e os papas beneficiavam os judeus, pois esses governantes não cumpriam os decretos papais contra a comunidade.

A hegemonia da família Médici teve início em 1437, quando Cosimo, o Velho, assume o poder em Florença. Poderoso centro comercial e bancário, a cidade possuía uma economia em franca expansão, que necessitava de vultosos capitais para se fortalecer. Rico banqueiro e governante pragmático, Cosimo sabia quão importante era para a cidade frear a ganância dos florentinos, conhecidos por serem grandes especuladores e impiedosos usurários. A solução era convidar banqueiros judeus a se estabelecer e trabalhar na região. Cosimo acreditava que, dessa forma, acabaria com os abusos praticados pelos financistas cristãos.

Admitidos em Florença sob a proteção dos Médici, os judeus passaram a desfrutar, apesar da hostilidade do clero, de relativa tranqüilidade e bem-estar. Cosimo, o Velho, garante-lhes uma série de direitos e liberdades. Comparada à perseguição e à violência às quais os judeus eram submetidos em outros lugares, a vida em Florença era tranqüila. Mas tal situação estava diretamente ligada à permanência dos Médici no poder. Por isso, nem sempre tudo transcorria calmamente. Numa cidade castigada por lutas internas pelo poder, os judeus foram expulsos e readmitidos várias vezes na região, conforme o resultado dos embates entre os que apoiavam e os que estavam contra a poderosa família Médici.

Sob Lourenço de Médici, o Magnífico - que governou de 1469 até 1492 - a comunidade floresceu e os judeus participaram da vida do Renascimento. Protetor das artes e das letras, sob seu governo Florença se torna o centro cultural e científico da Europa, contando para isso também com as fortunas de judeus abastados. Eruditos são convidados para vir a Florença e muitos passam a fazer parte da corte, entre eles, Abraham Farissol, famoso por defender o judaísmo em disputas com monges dominicanos.

A expansão do humanismo reviveu o interesse pelo idioma bíblico. Filósofos e nobres cristãos passam a estudar a língua hebraica e a Cabalá. A importância judaica na corte pode ser avaliada pelo afresco "A Jornada de Magi", pintado sobre uma das paredes do Palazzo Médici Ricardi. Na obra estão retratados membros da família Médici e sua corte, entre eles, o judeu Elias Del Medigo. Médico e tradutor, era considerado o maior expoente acerca do sistema aristotélico, na época. Acredita-se que foi com ele que o pensador cristão Pico della Mirandola estudou a língua hebraica e a Cabalá.

A proteção de Lourenço também impediu que os judeus fossem expulsos após a visita de Frei Bernardino da Feltre à cidade. O frade, responsável por instigar libelos de sangue e expulsar judeus de várias cidades italianas, foi banido de Florença em 1488, após proferir virulentos discursos anti-judaicos. Depois da morte de Lourenço, a situação da família Médici e, conseqüentemente, dos judeus sofre um sério revés.

Em 1494 o frade dominicano Girolamo Savonarola assume o poder e instala uma teocracia católica. Decreta a expulsão dos Médici e dos judeus. Um "empréstimo" da comunidade judaica para a República não faz mais do que adiar, por curto prazo, a saída de seus membros da cidade. Quatro anos depois, a oposição interna depõe Savonarola, enforcando-o e queimando seu corpo. Os Médici voltam ao poder e, com eles, os judeus à cidade. Florença chegara à conclusão da necessidade de sua presença para o comércio local.

Toscana e os sefaraditas

Para os judeus da Europa, o final do século XV e início do XVI foi uma época de muito sofrimento. Perseguidos, acabaram expulsos de muitos países do velho continente. Na Península Ibérica isto se deu de um só golpe, proferido pela Espanha, em 1492, e por Portugal, em 1496. Após essas tragédias, esta grande e bem dotada comunidade dispersou-se por todo o Mediterrâneo. Os refugiados sefaraditas eram famosos por sua cultura e sabedoria, assim como por seu poder econômico e contatos comerciais com vários países da Europa e do Oriente. Faziam a ponte entre os europeus e os árabes, eram transmissores da ciência e da filosofia clássica, assim como brilhantes artesãos, matemáticos e fabricantes de instrumentos de precisão e mapas. Se a Espanha estava disposta a perdê-los, não o estavam alguns governantes mais esclarecidos que os convidaram a se estabelecer em seus domínios.

Em 1537, Cosimo I assume o poder. Banqueiro e homem de negócios, conhecia o potencial dos judeus ibéricos. Um de seus conselheiros era Jacob Abravanel, sefaradita que vivia em Ferrara. Abravanel o aconselha a acolher os judeus ibéricos, com todos os direitos e privilégios. Menos de dez anos após subir ao poder, Cosimo I convida judeus espanhóis e portugueses a se estabelecerem em Florença e Pisa. Esta onda imigratória marca o início da história da comunidade sefaradita de Florença. Aos primeiros imigrantes seguiram-se muitos outros judeus e marranos, perseguidos pela máquina destruidora da Inquisição.

O aspecto comercial da relação Médici - judeus é de suprema importância histórica. O papel que estes últimos desempenharam no âmbito do comércio internacional é evidenciado pelos esforços dos governantes em atraí-los à cidade. Documentos do Arquivo Médici revelam as negociações secretas em que Cosimo I se envolveu para levar capital judaico a Florença.

Acredita-se que as atitudes favoráveis de Cosimo I aos judeus também tenham sido influenciadas pela estreita amizade entre sua esposa, Eleonora de Toledo, filha do vice-rei de Nápoles, e Donna Benvegnita Abravanel, esposa de Samuel Abravanel, chefe da comunidade judaica da cidade. Segundo documentos do Arquivo Médici, o próprio Cosimo I interveio para proteger a família Abravanel das garras da Inquisição.

A vinda dos judeus sefaraditas causou modificações no seio da comunidade judaica. Até o século XV, na cidade havia apenas uma sinagoga na qual se seguia o ritual italiano. No entanto, orgulhosos de suas tradições e determinados a mantê-las, os judeus ibéricos, recém-chegados, fundam mais uma sinagoga, onde seguem o ritual sefaradita. Assim, coexistem duas sinagogas - uma para cada rito - cada uma com seu rabino e seu minian.

Não há dúvida de que o liberalismo dos Médici tinha uma forte dose de pragmatismo. Cosimo I foi um perfeito exemplo disto. Depois de cortejar ostensivamente os judeus, entre 1540 e 1550, concedendo-lhes inúmeros privilégios, não hesita em mudar de conduta quando a prioridade passa a ser a manutenção de boas relações políticas com a Espanha e o Estado Papal. Ele almejava o título de grão-duque da Toscana - que obteve apenas em 1609 - e cede às pressões do papa Paulo IV, que lhe prometera apoiar esse anseio em troca da criação do gueto de Florença.

Paulo IV, que assumiu o papado em maio de 1555, ocupara, durante anos, o posto de Grande Inquisidor. Um de seus primeiros atos foi reverter a política, até certo ponto benevolente, dos papas do Renascimento face aos judeus. Assim, dois meses após ser eleito, decreta a instituição em caráter oficial do gueto compulsório, com o objetivo de isolar os judeus.

Para os judeus de Florença iniciou-se, então, um longo período de privações, proibições e imposições. Em 1567, Cosimo I decreta obrigatório o uso do "segno", um distintivo para identificação especial; em 1569 fecha as fronteiras da Toscana a judeus não-residentes; em 1570 fecha os bancos de judeus e os proíbe de se tornarem membros das Corporações de Ofícios; no ano seguinte, ordena a criação do gueto compulsório. Estima-se que em 1571 houvesse cerca de quinhentos judeus na cidade - número que permaneceu estável durante o século seguinte.

Mas o relacionamento entre os judeus e os Médici sempre foi marcado por tolerância e pragmatismo e as leis anti-judaicas nunca foram aplicadas com o mesmo rigor registrado em outras partes. Judeus proeminentes, em particular sefaraditas, gozavam de privilégios especiais como a permissão de viver fora do gueto ou a isenção no uso do "segno" nas roupas. Sabedor da importância dos judeus para o comércio com os países do Mediterrâneo, menos de 25 anos após a criação do gueto por seu pai, Ferdinando I, convida comerciantes judeus para se instalar em Livorno, concedendo-lhes residência e vários outros privilégios, sem restrição alguma a suas atividades comerciais. Os judeus dessa cidade prosperam e a comunidade se torna uma das mais importantes e influentes da Europa.

 

Cotidiano no gueto

 

Como vimos, em 1555, uma bula do papa Paulo IV ordena a total e absoluta segregação dos judeus em um bairro próprio, totalmente murado e com portões a serem fechados ao escurecer. Somente ao alvorecer podiam ser reabertos. Apesar de existirem bairros judeus desde o início da Diáspora, esse gueto compulsório não pode ser confundido com a antiga Judería, Juivrie ou Judengasse, lugares que a população judaica escolhia, de forma um tanto espontânea, para viver.

 

Por não poder ter dentro de sua área nenhuma igreja, o gueto foi instalado na região menos nobre da cidade, onde é o atual centro histórico de Florença. Os judeus não podiam tornar-se proprietários, apenas locatários das propriedades onde viviam e trabalhavam. Impuseram-lhes restrições comerciais, como a proibição de vender lã, seda ou pedras preciosas. Mas apesar de tudo, continua a florescer entre os muros do gueto a vida religiosa, cultural e social. Tinham permissão de eleger o próprio conselho e somente os tribunais rabínicos tinham jurisdição sobre a comunidade toda. A bela Arca Sagrada de uma de suas duas sinagogas está atualmente no Kibutz Yavne, em Israel.

 

Os Hasburgo-Lorena

 

Em 1737 morre o último dos Médici e o governo de Florença passa às mãos da família Habsburgo-Lorena. Influenciados pelas idéias do Iluminismo, os novos dirigentes continuaram com um modelo de governo liberal, mas o apogeu cultural da cidade chegara ao fim. Os Habsburgo-Lorena mantinham boas relações com a comunidade judaica. Em 1750 permitiram-lhes comprar os edifícios onde estavam instaladas as duas sinagogas; cinco anos mais tarde os portões do gueto não eram mais trancados ao anoitecer e, em 1779, todas as casas e lojas foram vendidas para um grupo de banqueiros judeus. As leis que regiam a vida da comunidade eram até certo ponto brandas, se considerarmos os preconceitos da época. Nesse período o clero também adota uma nova política quanto aos judeus, trocando a coerção física pela persuasão. O batismo de crianças menores de treze anos era regulamentado por lei. Durante o governo dos Habsburgo-Lorena raramente ocorreram atos de violência contra a população judaica e quando aconteciam eram reprimidos pelas autoridades e pelo clero. Ataques contra a comunidade durante a Revolução Francesa, em 1790, foram contidos pelo bispo de Florença. Apesar da relativa tranqüilidade, a população judaica diminuiu e no século XVIII chegava a menos de mil habitantes.

 

A era da emancipação

 

O processo de emancipação dos judeus de Florença começou em maio de 1799, quando as tropas de Napoleão Bonaparte conquistaram a Toscana, trazendo consigo os ideais da Revolução Francesa: liberdade, fraternidade e igualdade. Os muros do gueto foram arrasados e todas as leis específicas aos judeus são declaradas nulas e sem efeito. Mas a derrota de Napoleão e a restauração das monarquias na Europa trazem os Lorena de volta ao governo de Florença. Os judeus são novamente obrigados a voltar para o gueto e sua emancipação é cancelada. Entretanto, as idéias de liberdade já estavam enraizadas e, em 1848, os muros do gueto foram demolidos para sempre e os judeus autorizados a viver fora de seus limites. Apesar disto, muitos membros da comunidade, principalmente os menos favorecidos, optaram por permanecer no antigo gueto. A emancipação civil aconteceu em 1850, quando os Lorena foram derrubados do poder, instituindo-se um governo provisório. Foi nesse período que o judeu Sansone d'Ancona foi indicado ministro das Finanças.

 

Durante o Risorgimento, movimento ideológico e político que unificou a Itália, em 1861, a Toscana uniu-se ao Reino da Itália através de um plebiscito. Como resultado desse processo, foi concedida aos judeus a cidadania total, de acordo com a constituição de 1848. Desde então eles vêm participando da vida política da região.

 

Florença tornou-se a capital do novo estado italiano de 1865 a 1870. Para se adequar ao novo papel foi submetida a um processo de transformações arquitetônicas e urbanísticas, inclusive à demolição do centro histórico. Suas casas e ruas estreitas não estavam de acordo com o novo planejamento urbano. O gueto foi evacuado em 1885, sendo erguidos, em seu lugar, suntuosos edifícios. Nada mais resta do antigo gueto além de alguns quadros e fotografias. Livres para viver onde quisessem, os judeus montaram em uma casa próxima do antigo gueto duas pequenas sinagogas que funcionaram até 1962.

 

Foram feitos planos para a construção de uma nova sinagoga, "digna da beleza da cidade". Começou a arrecadação de fundos, entre os quais destaca-se a generosa doação da família Montebarocci. Mas o projeto só se concretizou 30 anos mais tarde, graças ao legado do Cavaliere David Levi, que queria viabilizar a construção de uma "sinagoga monumental, digna de Florença". Seguindo o rito sefaradita, a magnífica sinagoga -conhecida pelos judeus florentinos como Tempio Maggiore - foi inaugurada em 1882, numa cerimônia que contou com presença de personalidades do mundo judaico e autoridades da cidade.

 

Nas décadas que se seguiram, a importância da comunidade de Florença foi crescendo, tornando-se o centro do judaísmo italiano. Desde 1899 o Colégio Rabínico Italiano foi transferido de Roma para Florença.

 

Das cinzas do Holocausto

 

Florença não passou incólume pela tragédia do Holocausto. Quando os nazistas a ocuparam, no outono de 1943, havia cerca de três mil judeus na cidade. Terminada a Segunda Guerra Mundial, a população judaica fora reduzida a 1.600 pessoas. A primeira deportação de judeus ocorreu em 6 de novembro do mesmo ano e a segunda, cinco dias mais tarde, na qual foi levado o rabino Nathan Cassuto, médico e líder espiritual da comunidade florentina. Na terceira deportação, em 6 de junho de 1944, 16 idosos foram levados do asilo de velhos da cidade para a Alemanha. Do total dos 243 judeus florentinos deportados pelos nazistas, voltaram apenas 13.

 

Durante o período de permanência nazista na cidade, o Tempio Maggiore foi usado como depósito e estábulo e seus tesouros, confiscados pelos nazistas. Parte desses objetos foi posteriormente recuperada. No dia 14 de agosto de 1944, a sinagoga foi seriamente danificada pelos nazistas que tentaram destruí-la colocando bombas em seu interior. Felizmente, partisans italianos conseguiram desativar a maioria das bombas, sendo destruída apenas uma das galerias para o público feminino.

 

A exemplo do que ocorria no resto da Europa, também a comunidade judaica de Florença começou o seu processo de reconstrução. A sinagoga foi restaurada, recuperando a antiga glória, mas permanecem nas portas da Arca Sagrada as marcas das inclementes baionetas nazistas...

 

Em 1966 o " Tempio Maggiore" foi vítima de mais uma calamidade. Uma enchente de grandes proporções atingiu a cidade, danificando a sinagoga, inclusive sua biblioteca histórica e 90 Sefarim, alguns dos quais muito antigos. Tudo foi rapidamente restaurado e hoje se pode admirar a beleza do belo templo sagrado.

 

Bibliografia:

 

"The Jews and the Medici" - 1999 "The Medici Archive Project"

 

Kurinsky, Samuel - Hebrew History Federation: Jewish History from the Archives of Florence and Cremona" "Fact Paper 38-I" - "The Medici Archive Project" http://medici.org/jewish/

 

www.firenzebraica.net Federation: "Jewish History from the Arch