Um dos mandamentos centrais da festa de Pessach se refere ao Chametz. Começando na manhã da véspera de Pessach e se estendendo até o término desta festividade de oito dias (sete em Israel), é proibido ingerir, possuir ou mesmo se beneficiar de qualquer quantidade de Chametz.
Apesar da palavra ser comumente traduzida por “fermento” ou “levedura”, o termo Chametz possui uma definição bem mais precisa. Significa trigo, aveia, cevada, trigo espelta e centeio que permaneceram úmidos por 18 minutos ou mais – tempo suficiente para que se inicie o processo de fermentação.
O processo de eliminação do Chametz consiste de duas partes. Primeiro: alguns dias antes do início da festa, vendemos nosso Chametz a um não judeu. Uma pessoa que possui uma quantidade substancial de Chametz – e está relutante em desfazer-se do mesmo devido à perda financeira – pode vendê-lo a um não judeu e recomprá-lo de volta quando a festa terminar.
A maneira mais simples de realizar essa venda é preenchendo um contrato de venda que é enviado a um rabino, que age como agente e intermedia tanto a venda a um não judeu na manhã antes do início de Pessach, e a recompra, ao entardecer do término da festividade. O Contrato de Venda de Chametz permite a guarda, na casa da pessoa, de Chametz do qual o proprietário não queira se desfazer, pois esses alimentos deixam de pertencer a ele, passando a ser propriedade do não judeu que os adquiriu. Esse contrato não é, como muitos pensam, apenas um estratagema ridículo para burlar as leis da Torá – porque aquele que adquire o Chametz pode, se assim o quiser, ficar de posse daquilo pelo que comprou. Isso raramente ocorre; mas quem vende seu Chametz tem que estar ciente de que não se trata de uma venda de “faz-de-conta”.
A segunda parte do processo consta da busca e extermínio de todo o Chametz que não foi guardado para ser vendido, por meio do Contrato de Venda, na manhã antes do início de Pessach. O processo da procura é realizado na noite antes do Seder. Imediatamente após o cair da noite, o chefe da família conduz essa busca do Chametz sem grande valor financeiro e que ele pode consumir ou descartar tranquilamente antes do início da festa. Pode-se comer o que encontra ou queimá-lo na manhã seguinte.
Deve-se procurar em todos os cantos da casa onde é possível que haja Chametz. Um costume universalmente aceito é o preparo de dez pedacinhos de pão embrulhados individualmente, que são escondidos em diferentes lugares da casa, antes de começar a procura. É importante que esses pedaços sejam firmes, não quebradiços, para não deixar migalhas. Aí começa a procura pela casa com uma vela de cera acesa, de um único pavio. Não se deve usar uma vela de Havdalá.
Antes de se iniciar a busca, recita-se a seguinte Berachá: Abençoado és Tu, Eterno nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos e nos ordenaste remover o Chametz.
Como a pessoa que realiza a busca deverá encontrar os dez pedaços de pão “escondidos”, não há possibilidade de que tenha recitado essa bênção em vão. Chama a atenção o fato de essa Berachá – que inclui tanto a busca do Chametz, à noite, quanto sua eliminação, na manhã seguinte – mencionar “a remoção do Chametz”, e não “a busca do Chametz”. A razão para isso é que a busca é meramente um preparativo para o mandamento essencial – a remoção – ou seja, a eliminação do Chametz, que ocorre na manhã seguinte.
Enquanto conduz a busca, o chefe da família não deve pausar ou discutir qualquer outro assunto que não seja relevante ao que está fazendo. Ele deve colocar cuidadosamente em um recipiente ou uma sacola o Chametz que vai encontrando, inclusive os dez pedacinhos embrulhados. Após a busca, ele coloca tudo o que encontrou em um local previamente escolhido, e diz as seguintes palavras:
“Todo Chametz que está em minha posse, que eu não vi, e que não exterminei, que seja anulado como o pó da terra”.
Na manhã seguinte, véspera de Pessach (14o dia de Nissan), até a hora que for anunciada como o limite para a eliminação do Chametz, queima-se tudo o que foi encontrado durante a busca. Isso inclui os dez pedacinhos de pão.
A eliminação geralmente é feita pelo fogo, mas quando isso for impossível, pode-se fazê-lo por outros meios, como por uma descarga no banheiro.
Após jogar no fogo o Chametz, o chefe da casa repete o que havia pronunciado na noite anterior, após realizar a busca: “Todo Chametz que está em minha posse, que eu vi ou não vi, e que eu exterminei ou não exterminei, que seja anulado como o pó da terra”.
Chametz e as forças do mal
A prática de espalhar pela casa dez pedacinhos de pão é bastante antiga. E serve a um propósito prático: se não fosse pelos dez pedacinhos, o chefe da família talvez não encontrasse nenhum vestígio de Chametz em sua casa e sua bênção acerca de sua eliminação teria sido em vão. Mas há, também, uma razão cabalística para os dez pedaços de pão. Apesar de também fazerem lembrar as Dez Pragas, eles representam a ideia de que, no reino da impureza, há dez forças que correspondem às Dez Sefirot do reino da santidade. Trata-se das “dez coroas da impureza”, simbolizadas pelos dez pedacinhos de pão que buscamos para depois queimar.
No Talmud e na Cabalá, o Chametz geralmente é usado como símbolo para o mal. O Rabi Moshe Chaim Luzzatto, o Ramchal, ensinava que o Chametz é um símbolo do Yetzer Ha-Rá – o instinto do mal que existe dentro de todos os seres humanos, exceto daqueles que são completamente justos e virtuosos. O Zohar, obra fundamental da Cabalá, equipara o Chametz com idolatria, com as seguintes palavras: “Aquele que come Chametz em Pessach se equipara a quem cultua um ídolo” (Zohar 2: 182). Alguns comentaristas explicam que o Chametz representa o Yetzer Ha-Rá porque, ao contrário da Matzá, ele cresce e incha, remetendo-nos, portanto, ao orgulho, que é a suprema fonte das forças do mal. O fato de que o Chametz faça outro tipo de massa crescer é análogo à maneira pela qual o mal age sobre as funções da alma da pessoa, arruinando-a, e arruinando a alma das pessoas que estejam ao seu redor.
Como o Chametz é um símbolo de arrogância, podemos entender a razão para o Zohar o equiparar à idolatria. Pois, o que é a idolatria? Para o judaísmo, não significa apenas acreditar em mais de um D’us. Significa, também, atribuir poder a qualquer coisa no mundo que não seja a D’us. A arrogância é uma forma de autoidolatria, pois é a crença de que a pessoa é melhor do que os demais, que sabe mais do que todos, e que não deve nada a ninguém. Na verdade, o Talmud ensina que se há algo que afaste a Presença Divina, esse algo é a arrogância, pois o arrogante pretende usurpar o legítimo lugar de seu Criador. Somente pode haver um único D’us no mundo. D’us aguenta um pecador, mas não alguém que se julgue um deus.
Ninguém personificou a arrogância mais do que o Faraó, o vilão na história de Pessach. O rei egípcio, que era idólatra e genocida e desafiava a D’us, proclamava ser uma divindade que havia criado sua própria pessoa. O oposto do Faraó, o herói de Pessach, foi Moshé Rabenu, que, nas palavras da Torá, foi o “homem mais humilde que jamais se viu”. A santidade e a sacralidade estão associadas à humildade, enquanto que a profanidade e a blasfêmia se associam à arrogância.
Matzá, o pão da pobreza, que não cresce e não fermenta, simboliza a humildade. O Chametz, que fermenta, representa justamente o oposto. A festa de Pessach é uma época para agradecermos, pois se D’us não nos tivesse salvado, nossos antepassados e todas as gerações judaicas subsequentes, incluindo a nossa, ainda seríamos escravos ou teríamos sido exterminados pelo Faraó. O reconhecimento e a gratidão advêm da humildade. Além disso, Pessach é a “Festa da Liberdade” e quem é presa de seu próprio ego – que vive para satisfazer seus desejos e seu orgulho – jamais poderá ser realmente livre. Os temas dessa festa, simbolizados pela Matzá, são a antítese do que representa o Chametz.
Chametz e o Instinto do Mal
O judaísmo despreza a arrogância e dá muito valor à humildade. Ensina o Talmud que o mundo se preserva pelo mérito das pessoas humildes. Portanto, cabe perguntar: se o Chametz é um símbolo de arrogância, maldade e idolatria, por que não é proibido o seu consumo o ano inteiro?
Uma das respostas a essa pergunta pode surpreender a muitos. A Torá não proíbe o Chametz o ano todo porque o que simboliza – o Instinto do Mal, o Yetzer Ha-Rá, não é, necessariamente, uma coisa ruim. É o que dá ao homem o livre arbítrio. Se o homem tivesse apenas o Instinto do Bem e não se sentisse tentado a pecar, ele não seria merecedor do poder de escolha entre o certo e o errado. Se não houvesse escuridão no mundo, não apreciaríamos a luz. O Instinto do Mal é necessário para que a vida do homem tenha significado, pois não podemos viver sem desafios. A resistência e o esforço resultam em crescimento e progresso. Isso é válido para todas as esferas – a física, a intelectual ou a espiritual. Nesta última, somente se adquire mérito através do esforço. A vida, segundo os cabalistas, é um campo de batalha, onde lutam os instintos positivos e os negativos do homem. Não fosse pelo Yetzer Ha-Rá, não haveria luta espiritual e, portanto, nenhuma possibilidade de vitória.
Há outra razão para que o Instinto do Mal – e tudo o que representa – não seja de todo ruim. É o fato de ser o motor que aciona as pessoas. Ao nos levantarmos pela manhã, vamos ao trabalho em busca de prazer, honra e felicidade. Somente um verdadeiro Tzadik, um homem como Moshé Rabenu, vive todos os momentos de sua vida para servir a D’us e cumprir Sua Vontade. A maior parte de nós vive para si próprio ou para aqueles a quem amamos.
O Midrash (Gênesis Rabá) cita um versículo da primeira porção da Torá, que diz o seguinte: “E D’us viu tudo o que fizera, e o achou muito bom: ‘bom’ se refere ao Instinto do Bem, mas ‘muito bom’ se refere ao Instinto do Mal. Por quê? Porque se não fosse pelo Yetzer Ha-Rá, ninguém construiria uma casa, casar-se-ia, teria filhos ou trabalharia”.
Essa passagem do Midrash nos ensina que o Yetzer Ha-Rá é uma criação Divina e serve a um propósito muito bom. Como vimos, é o que faz o homem avançar na vida. É o que leva o homem a trabalhar com afinco, escolher uma esposa e constituir uma família. Senão, faria apenas o mínimo indispensável para sobreviver. O Instinto do Mal e suas manifestações – desejo, egoísmo, arrogância e egocentrismo – podem ser ruins e desprezíveis, mas a isso se deve o progresso do mundo.
Comemos Chametz durante o ano porque temos que aprender a lidar com o Instinto do Mal e usá-lo em nosso benefício. Contudo, o Yetzer Ha-Rá nem sempre é bem vindo. O judeu não pode ter em sua posse quantidade alguma do Chametz durante Pessach. Tampouco se podia oferecer Chametz no Altar do Tabernáculo nem do Templo Sagrado de Jerusalém. Pois está escrito: “Não degolarás sangue de Meu sacrifício que tiver fermentado (com Chametz”) (Êxodo 34:25) e “Nenhuma oblação que oferecerdes ao Eterno será preparada com fermento (com Chametz”) (Levítico 2:11). No Altar de D’us, não há lugar para Chametz – símbolo do Yetzer Ha-Rá. Durante Pessach, quando recordamos os inúmeros milagres que D’us realizou em nosso benefício – como nos salvou da escravidão e aniquilação e nos escolheu para ser Seu povo amado – não há espaço para arrogância ou orgulho. Durante o restante do ano, no entanto, bem como em outros lugares que não o Altar, o Chametz foi permitido, porque até a Era Messiânica, o homem precisará combater e dominar seu Instinto do Mal, usando-o para realizar coisas grandiosas.
O Baal HaTanya ensinava o seguinte: “Nossos Sábios disseram sobre a arrogância, ‘Amaldiçoado é aquele que a possui, e amaldiçoado é aquele que não a possui’. A arrogância torna o ser humano em um ídolo. Mas sem ela, como podemos mudar o mundo?”. Ele nos ensinou como solucionar esse enigma: Deixe sua consciência saber que arrogância de nada vale e o poder que D’us colocou em seu coração poderá, então, ser facilmente encontrado.
Em outras palavras, o homem primeiro precisa aprender a ser humilde e modesto como uma Matzá. Quando ele perceber que nada é diante de D’us, ele poderá usar o Chametz que tem dentro de si para fazer grandes mudanças no mundo. Como ensinava o Rebe de Lubavitch, “O homem é a agulha de D’us para costurar os muitos retalhos da Criação em um único traje para Sua Glória. Em uma ponta, a agulha tem que ser resistente e afiada, para passar pela prova. Mas na outra ponta, deve ter um orifício, um vazio para prender o fio. Com o mundo, seja resistente e afiado. Dentro do vazio, sinta quão pequeno você é perante o Infinito”.
Durante a Festa das Matzot, eliminamos o Chametz de nossa vida, literal e metaforicamente, e retornamos à nossa Origem Inicial, e assim nos lembramos que nada somos comparados ao Infinito. Ao término de Pessach, retornamos ao mundo, enfrentando-o com firmeza e determinação para executar o propósito para o qual D’us nos enviou a este mundo.
BIBLIOGRAFIA
Rabi Dr. Hillel ben David, Chametz – http://www.betemunah.org/chametz.html
Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel), The Passover Haggadah, Carta, Jerusalem
Freeman, Tzvi , Bringing Heaven Down to Earth – CreateSpace Independent Publishing Platform