Com uma autobiografia íntima e sonhadora, sua arte conta histórias mágicas que exaltam a eterna floração do amor. O herói moderno que cantou a lua, a alma, a união dos amorosos, o casamento, os seres voadores, os sonhos, as lendas e os mitos do homem... Chagall é esta presença luminosa no céu da nossa época. Imigrante, judeu, poeta, pintor, homem amoroso.
Interpretar o mundo criador de Marc Chagall é atravessar um labirinto, pôr em ordem um caleidoscópio. Como Picasso, ele revolucionou profundamente toda a arte moderna.
Cada tela de Chagall conta uma história plena de poesia e de afeto. Chagall contrapõe uma religiosidade cálida e otimista a uma imensa alegria de viver.
A despeito de todas as provações que experimentou ao longo de sua existência, sua pintura permaneceu - sempre e acima de tudo - repleta de vitalidade. Este sentido máximo de comunhão com a vida decorre talvez menos de uma característica de personalidade e mais das próprias raízes nas quais se nutriu sua formação. Tais raízes mergulham no modo de ser e na visão de mundo das comunidades judaicas da Europa Oriental do século XIX, em particular no movimento espiritual nelas gerado, o chassidismo, cujos princípios afirmam a Presença Divina em todas as coisas, apesar de D’us estar acima de todas as coisas, e o constante diálogo entre o homem e seu Criador.
Um diálogo “sui generis” feito de amor e fé absoluta, que não comporta a inquietação racional ou a lógica. Como D’us existe, tudo é possível. O chassidismo, portanto, pressupõe a alteração concreta da realidade diária por meio da oração, outorgando a quem tem fé inabalável a capacidade bíblica de “mover montanhas”, ou seja, de operar milagres na própria vida e na dos demais.
A pintura de Chagall exprime esses fundamentos. Contém a certeza religiosa de que, apesar das tragédias humanas, a vida e o amor são dádivas de D’us e assim devem ser usufruídos. “Haverá sempre crianças que amarão a pureza, apesar do inferno criado pelos homens”, disse o artista, certa vez. E jamais mudou sua perspectiva. Através de meio século de ininterrupta produção, Chagall permaneceu essencialmente um sonhador, lírico, mágico e ingênuo, que usa o pincel para materializar a bondade e a inocência em cores maravilhosas.
Marc Chagall nasceu em Vitebsk, Rússia, em 1887, filho de pais devotos, modestos e de boa paz. O cotidiano fluía simples no gueto judaico. O pai, judeu ortodoxo, tinha uma banca de venda de arenques no mercado. O trabalho alternava-se com a leitura diária dos livros sagrados e a freqüência assídua à sinagoga. Em casa, a intimidade era doce, calma, desprovida de sofisticação, mas profundamente espiritual. A família atribuía significados simbólicos tanto ao trabalho quanto à diversão. Completava o ambiente familiar um avô excêntrico que se isolava no sótão para tocar seu violino em sossego. As velas acesas e a mesa posta às sextas-feiras saudavam o Shabat.
O talento de Chagall revelou-se em suas primeiras pinturas, nas quais representou as principais etapas da vida de um judeu devoto: seu nascimento, casamento e morte. Como pano de fundo de todas essas cenas, sua cidade natal, Vitebsk.
À medida que o jovem Marc cresceu e seu talento desabrochou, a cidade de Vitebsk tornou-se demasiado pequena para seu aprendizado artístico. Era preciso partir, mas para onde? Para São Petersburgo, certamente. Lá, graças a um subsídio mensal de dez rublos, Chagall pôde estudar na Academia de Belas Artes.
O advogado e deputado liberal Maxim Vinaver tornou-se seu patrono e estimulou-o a imigrar para a França, com a promessa de lhe enviar a soma de 125 francos por mês, como provisão para suas necessidades imediatas.
O verão de 1910 já estava no fim quando Chagall chegou a Paris. O impacto foi imenso e Chagall preconizou: “Aqui nasci pela segunda vez. Suas ruas, seus mercados são as academias de minha alma de pintor. Vivo imerso num banho colorido, encontrei aquela luz - aquela liberdade que não vi em parte alguma. Tudo me agrada”.
Desde cedo, Chagall revelou sua personalidade na Escola de Paris. O crítico e promotor berlinense Herwarth Waldeu, escolheu-o para uma mostra, a sua primeira, na galeria “Der Sturm”, em Berlim, um dos principais pontos do movimento modernista. A introdução do catálogo, muito adequadamente, foi escrita pelo poeta e grande crítico. Apollinaire André Breton. Este, em seu manifesto surrealista, reconhece em Chagall o formulador ideal da fusão entre a poesia e as artes plásticas tão ambicionadas pelo surrealismo. “A metáfora assinala sua entrada triunfal na pintura moderna apenas por intermédio de Chagall”, dizia.
O ponto em comum entre Chagall e o surrealismo é a exaltação do sonho, do inconsciente, do ilógico. Aqui, de nada valem as leis do mundo físico, não há mais barreiras entre os diversos reinos da natureza e as diferentes fases do tempo. Como no pensamento mágico, as coisas que normalmente são alheias entre si tornam-se interligadas. O presente não é só o “agora”, é também a lembrança do passado. A verdade é subjetiva. Por isso, a arte de Chagall representa a autobiografia íntima do pintor. Quando o artista chegou à Paris, já trazia consigo essa perspectiva poética e ilógica do inconsciente e da intuição, radicalmente oposta à reflexão racional. Vitebsk, mais do que Paris, responde pelas inclinações mais profundas que dirigiram sua expressão rumo ao fantástico. Assim como os poetas criaram a licença poética, Chagall criou a “licença pictórica” com seus quadros - algo que o público, uma vez vencida a relutância inicial, passa a aclamar.
Esta é a sua revolução: substituir a ilustração do mundo percebido pelos sentidos, ou seja, “o mundo normal, real, objetivo”, pela ilustração da presença do “irreal” que existe nesse mundo. Chagall nos mostra até que ponto o elemento mágico permeia os dados mais concretos de nossa vivência diária. Daí, também, o desaparecimento dos limites entre o ontem e o hoje. O tempo pertence ao objetivo. Em nosso subconsciente, em nossas dimensões mais interiores, passado e presente coexistem e se fundem.
Ora, se o pintor se liberta da necessidade de reproduzir o mundo sensível, é natural que igualmente use a cor com inteira liberdade, fazendo com que assuma função puramente simbólica. “Os tons de Chagall não contêm a luz física, mas sim iluminação psicológica”, no dizer acertado de um crítico.
Quanto aos temas, nesses anos de formação, a evocação da infância, o amor, a paisagem russa e o calor da intimidade na casa paterna ocupam preponderantemente os pincéis do artista. Um de seus primeiros quadros, “Minha noiva com luvas pretas”, é o retrato de Bela Rosenfeld. Chagall a conheceu em 1909 e casaram-se seis anos depois. Este retrato, cronologicamente o primeiro e o mais célebre dos muitos trabalhos que lhe dedicou, é admirável pela expressão. A obra chega a ser desconcertante pela espiritualidade que emana da jovem, pela misteriosa vibração dos tons - um branco de esmalte, vigoroso no contraste com o fundo e as luvas pretas.
Entre 1911 e 1912, vivendo em Ruche, um aglomerado de modestos estúdios em Montparnasse (onde também habitavam, entre outros, Héger, Modigliani e Soutine), Chagall alcança rapidamente sua maturidade poética e estilística. Os quadros desse período documentam uma precoce plenitude sensual; agressivo e paradoxalmente lírico em “Dedicado a minha mulher”; esplendidamente evocativo e mágico em “Eu e a aldeia e à Rússia, aos asnos e aos outros”. Eufórico e feliz no auto-retrato cubista “Com sete dedos”, Chagall domina todos os elementos de sua riquíssima visão, em que a alegria predomina sobre a tristeza, a pureza sobre a tragédia.
Em 1914, fugindo da I Guerra Mundial, volta à Rússia, onde se casa com Bela e onde é envolvido pela Revolução de Outubro.
Em 1918, designado pelas autoridades revolucionárias Comissário Cultural para a área de Vitebsk, dedica-se a reformular o ensino da arte. Depois de uma breve colaboração, como cenógrafo e estilista, no Teatro Judeu de Arte do Estado, emigra novamente. Em 1922, com a mulher e a filha Ida, recém-nascida, vai para Berlim. No ano seguinte fixa residência, pela segunda vez, em Paris. Chagall reencontra a alegria de viver. Seus quadros da década de 20 introduzem temas característicos dos apaixonados, com buquês de flores, nuvens e namorados sentados às margens do rio Sena.
Até mesmo suas recordações de infância tornam-se mais líricas, como se passassem da memória para a tela através de um filtro de delicada sensibilidade. É o caso de “O violinista verde”. Chagall retrata seu personagem, um judeu humilde, oriundo de guetos russos, vestido com a toga de seu avô rabino. O rosto pintado de verde acentua a suavidade e a melancolia de seus traços.
A atividade do artista é intensa, com numerosas exposições em vários países da Europa. Dedica-se, ainda, à ilustração de obras literárias de Gogol a La Fontaine e à Bíblia.
Em 1931 viajou para a Terra Santa à procura da cor e tipos locais para ilustrações do Pentateuco. A Bíblia de Marc Chagall (1931-39 e 1952-56) representa um imenso trabalho iniciado em sua meia-idade e completado somente 25 anos mais tarde. Uma luz extraordinária banha as figuras rústicas de Vitebsk. Chagall se aproxima da Bíblia com uma interpretação única e ilustra o Pentateuco com retratos contendo ciclos de encontros históricos entre o homem e D´us.
Em suas representações simbólicas na Bíblia, para sugerir a presença de D´us, vêem-se Círculos de Luz, o arco-íris, as mãos de D´us e, freqüentemente, seus mensageiros, os anjos. Na Bíblia de Chagall o sobrenatural e o natural coexistem e se comunicam claramente através de expressivos olhares, gestos e poses.
“Desde minha juventude, tive fascínio pela Bíblia. Sempre me pareceu a fonte maior de poesia de todos os tempos. A Bíblia é como um eco da natureza e tentei transmitir- lhe este segredo. Meu D´us é o D´us de Israel, o D´us de nossos ancestrais! Meu livro sagrado é a Bíblia”.
Entre as primeiras manifestações de temas bíblicos em seu trabalho estão as obras sobre Adão e Eva (1910-12), Caim e Abel (1911) e também algumas com símbolos bíblicos, como a descrição do Profeta Eliahu disfarçado de mendigo, em “Sobre Vitebks” (1914) ou transformado em um camponês russo voando em uma carruagem em “A carruagem voadora”, em 1913.
Para Chagall, a Bíblia se tornou tão intrínseca à sua imaginação que emerge consciente e inconscientemente em muitos de seus trabalhos, permitindo múltiplos significados e interpretações.
Em 1941, durante a ocupação da França pela Alemanha, migrou para os Estados Unidos. Lá encontrou uma acolhida calorosa contraposta a uma cética incompreensão diante de sua obra. Como já fizera na URSS, Chagall dedicou-se a explorar as possibilidades de expressão no teatro.
Em 2 de setembro de 1944 morre Bela. Durante trinta anos foi a companheira adorada e ideal, misto de esposa e secretária, crítica de arte e escritora, mãe de sua filha e guia espiritual. Sua morte deixa o artista prostrado. Meses se passam até que retome o trabalho e ergua os olhos para o mundo que, apesar dos escombros, tenta reconstruir-se. Ao retomar os pincéis, Chagall não consegue evitar que o sofrimento da guerra e seu drama pessoal se traduzam nas imagens. “A alma da cidade”, de 1945, exprime a dupla angústia do pintor.
Em 1947, Chagall volta à França onde seu nome é reverenciado como um dos maiores artistas do século. A Bienal de Veneza de 1948 concede-lhe o Prêmio Internacional da Gravura.
Em 1953, em Turim, praticamente todo o mundo ocidental rende-lhe homenagem na mais ampla exposição retrospectiva, até então, dedicada a um pintor vivo. Também o amor reaparece. Em 1952, uma segunda companheira, Valentina, vem confortar seu isolamento. Com ela Chagall empreende algumas viagens. Em 1959, em visita a Paris, a presidente do Hospital Hadassah diz, instigando-o: “Agora o povo judeu veio a você. Esta é a sua oportunidade de criar algo que fique para a posteridade”.
Com entusiasmo, Chagall concorda em criar, na sinagoga do Hospital Hadassah, em Jerusalem, os doze vitrais representando as doze tribos de Israel. A cor dominante da janela de Reuven, o filho mais velho de Jacó, é azul, simbolizando a frutificação. Chagall baseou-se na descrição bíblica de Reuven: “A arte de meu primogênito, minha vontade e os primeiros frutos de minha força... instá- vel como água”. A tribo de Reuven é mencionada como uma tribo de pastores. No céu estão o sol e as águias que simbolizam a força de Reuven. A tribo de Levi tem uma janela translúcida, dourada. A santidade da Torá é guardada pela tribo de Levi. Em todas as janelas, somente os olhos e as mãos do homem. Mãos levantadas em bênção, mãos erguendo uma coroa, mãos segurando o Shofar. Velas nos dois lados das Tábuas da Lei simbolizam o serviço no Templo. Uma luz dourada irradia das velas e das tábuas. Uma cesta de frutas no centro evoca o costume de levar as primícias ao Templo. Os vitrais de Chagall são povoados por figuras que bóiam, animais, peixes, flores e muitos símbolos judaicos: “Todo o tempo em que trabalhei, dizia Chagall, sentia meu pai e minha mãe olhando por sobre os meus ombros e atrás deles havia D´us. As cores principais de cada vitral foram inspiradas nas cores dourada e azul púrpura e continham outras como a esmeralda, turquesa, safira, ágata, berílio, lápis lazuli, jasper e jacinto.
Os vitrais foram exibidos primeiro em Paris, num pavilhão do Louvre especialmente construído para isso e depois no Museu de Arte Moderno de Nova York. Presente à inauguração oficial em Jerusalém, em 6 de fevereiro de 1962, Chagall disse que sentia muita alegria em ofertar seu modesto presente ao povo judeu e que sempre sonhara com a amizade e a paz entre todos os povos.
Marc Chagall é um homem em paz. Um repórter norte-americano perguntou-lhe se estava satisfeito com a vida que levava e quais eram as suas convicções: “Estou satisfeito” respondeu-lhe o artista. “Creio primeiro em D´us, no povo judeu, na sua continuidade, na pintura e na música de Mozart. A única coisa que desejo é fazer livremente o que eu quiser. Meu trabalho é minha satisfação. Quanto ao resto, tudo continuará. Haverá outros Chagall. Sempre os há, sempre haverá cores, música, poesia. Sempre haverá artistas atraídos pela luz”.
Marc Chagall faleceu em 1985, em Saint-Paul-de-Vence, França.