Corajosa, decidida e generosa. Estas são algumas características da personalidade de Rebeca, esposa de Itzhak e segunda matriarca do povo judeu.
Movida por esta mesma coragem e inspirada pelo dom da profecia que, durante a difícil gravidez dos gêmeos Esaú e Jacó, lhe revelara que “o mais jovem reinaria sobre o mais velho”, Rebeca também não hesitou em interferir para que Itzhak abençoasse Jacó no lugar de Esaú, fazendo de seu filho menor o pai das Doze Tribos de Israel.
O destino de Rebeca entrelaçou-se com o de Itzhak quando Abraão decidiu que era chegado o momento de seu filho se casar e dar continuidade a seu legado. Para isso, chamou Eliezer, seu mais fiel servo, e pediu-lhe que fizesse o seguinte juramento: “Quero que jures pelo Todo-Poderoso – Senhor dos céus e da terra – que não escolherás esposa para meu filho entre as filhas dos canaanitas, entre os quais me instalei. Nem escolherás uma dentre as filhas de Aner, Eshkol e Mamrai. Vai à terra onde nasci e escolhe uma esposa para Itzhak”. Abraão vivia então em Beersheva.
Mas, pergunta Eliezer: “E se a jovem não quiser voltar comigo, devo então levar teu filho de volta à terra que deixaste?” (Gênese 24: 5). A resposta de Abraão não deixa dúvidas: “Não; meu filho, que foi escolhido como sacrifício ao Senhor no Monte Moriá, não deve deixar a Terra Santa. Meu Senhor, cuja mensagem divulguei em todo o mundo, mandará Seu anjo para ajudá-lo em sua missão. No entanto, se a jovem recusar-se a partir, estarás liberado de teu juramento e poderás escolher uma moça dentre as filhas de Aner, Eshkol ou Mamrai para meu filho. Mas, guarda-te de não levar meu filho de volta para lá”.
Por que Abraão estava tão preocupado com a origem da futura esposa de Itzhak e por que escolheu justamente Aram-Naharaim, a cidade de Nachor, seu irmão? Abraão sabia que uma mulher canaanita jamais poderia ser esposa de seu filho, pois um intransponível abismo espiritual e moral separava Abraão e seus descendentes do povo de Canaã. Ele optou por Aram porque sabia que o povo de sua terra natal não era moralmente corrupto como o de Canaã. No mais profundo de seu íntimo, Abraão desejava para seu filho uma mulher cuja retidão e compreensão de seu papel enquanto companheira e mãe fossem semelhantes às de Sara, sua amada esposa.
Eliezer encontra Rebeca
Segundo o Midrash, Eliezer jurou novamente leal-dade a Abrãao e iniciou os preparativos para partir rumo a Aram. Preparou dez camelos, que viajaram levando os presentes preciosos de seu mestre. Abrãao deu-lhe também um documento no qual afirmava que todos os seus bens pertenciam a Itzhak. O Todo-Poderoso então mandou dois anjos para acompanhar Eliezer. Um tinha como missão escoltar o servo fiel e o outro, atrair no momento certo Rebeca (Rivka, em hebraico) até o poço no qual Eliezer pararia para beber água.
Assim, relata o Midrash, com a ajuda de D’us através de Seu anjo, a viagem de Hebron a Aram, que normalmente duraria 17 dias, foi feita em apenas um dia.
A Torá nos relata como, ao chegar em Aram, Eliezer pede a ajuda Divina para encontrar a mulher certa para Itzhak: “Senhor, D’us do meu mestre Abrãao, Seja misericordioso permitindo que eu cumpra minha missão ainda hoje. Eu permanecerei parado no poço esperando as jovens da cidade que costumam vir buscar água. Faça com que aquela que está destinada a Itzhak responda ao meu pedido para beber água, dizendo: ‘Beba e então eu darei de beber a seus camelos’. Pois aquela que tiver a bondade de oferecer água a mim e a meus animais, fará jus à bondade e hospitalidade que reinam na casa de Abrãao”. Mal acabara de falar, surge Rebeca.
Segundo o Midrash, Rebeca, filha de Betuel, não costumava ir à fonte para buscar água. Geralmente mandava suas servas, pois, além de modesta e recatada, seu pai era o rei de Aram-Naharaim. Mas o anjo enviado por D’us fez com que ela se dirigisse naquela tarde ao poço, ao encontro de seu destino – ser a esposa de Itzhak.
Parado no local, Eliezer observava as jovens. Queria ver a jovem destinada a ser a futura esposa de Itzhak longe da influência de sua família. Segundo o Midrash, quando Rebeca chegou ao poço com um cântaro nos ombros, Eliezer imediatamente notou que ela não se abaixava para pegar a água, como as demais, mas esta brotava milagrosamente das profundezas em sua direção, indicando ser ela possuidora de uma especial santidade.
Dirigindo-se a ela, ele então perguntou: “Permita-me tomar apenas um gole da sua jarra?” E ela respondeu gentilmente, sorrindo, apesar de não o conhecer: “Beba quanto desejar, meu mestre” (Gênese 24:18). Depois que ele estava saciado, Rebeca acrescentou: “Eu também darei de beber a seus camelos até que estejam satisfeitos”. Novamente ela se aproximou do poço e encheu a jarra para servir os animais, não apenas de um gole, mas em quantidade suficiente para que satisfizessem o estômago. É sabido que os camelos têm capacidade de armazenar água para vários dias. E Rebeca os serviu dez vezes, observada por Eliezer. Além de extremamente linda, ela exalava bondade. Eliezer então teve certeza de que o Todo-Poderoso respondera a seu pedido: ele estava diante da jovem destinada a ser a esposa de Itzhak. Segundo alguns sábios, na época Rebeca tinha apenas 3 anos de idade, enquanto outros acreditam que ela já tivesse 14 anos.
Eliezer então tirou de seu bolso um aro e duas pulseiras de ouro e a enfeitou, perguntando-lhe quem era seu pai e se havia em sua casa um quarto para hospedá-lo por uma noite. Dizendo ser filha de Betuel – filho de Milcá e de Nachor, irmão de Abraão – ela afirmou que havia abrigo para os camelos e também um quarto para hospedá-lo por quanto tempo ele quisesse. Agradecendo ao Todo-Poderoso por tê-lo feito encontrar a jovem adequada, Eliezer exclama: “Abençoado seja o Senhor, D’us de meu mestre Abraão, que me guiou diretamente para a família de meu mestre”.
Rebeca correu para casa para contar à mãe o que havia acontecido, sendo ouvida por seu irmão Labão, que o convidou para sua casa. Eliezer, então, ao reunir-se com toda a família, falou de sua missão e de que maneira o Todo-Poderoso o conduzira até Rebeca. Tanto Labão quanto Betuel concordaram com o pedido de casamento, dizendo: “Isto é obra de D’us” (Gênese 24:50). “A questão foi pré-determinada e não podemos impedi-la. Leve Rebeca para ser a esposa do filho de seu mestre”. Ao ouvir a concordância de Labão e Betuel, Eliezer prostou-se ao chão, para agradecer a D’us, e entregou a Rebeca jóias e enfeites de ouro e prata como presentes de casamento.
No dia seguinte, Labão, irmão de Rebeca, e a mãe tentam impedi-la de partir com Eliezer, argumentando que Rebeca devia esperar um ano para preparar o enxoval e o casamento. Ao ver o anjo esperando por ele fora da casa, Eliezer afirmou que deveria partir imediatamente. A família então disse que a decisão cabia a Rebeca. Mesmo sabendo que seu irmão e sua mãe não concordariam, a jovem afirmou: “Eu irei”. Assim, como Abraão, ela estava pronta para deixar sua família, sua terra natal para tornar-se esposa de Itzhak. Rebeca desabrochara como “uma rosa entre espinhos”, entre pai e irmão corruptos. Apesar de serem ambos perversos, ela permaneceu pura e boa.
Rebeca e Eliezer partiram de Aram ao meio-dia e chegaram a Beersheva na mesma tarde. Mais uma vez, segundo o Midrash, o Todo-Poderoso reduzira milagrosamente o tempo de viagem. Quando eles se aproximavam, Itzhak foi aos campos orar no local onde sentira a Presença Divina. Foi Itzhak quem instituiu o Minchá – a reza da tarde. Foi lá que Rebeca o viu pela primeira vez, envolto pela luz da Presença Divina e, sobre ele, um anjo a protegê-lo. E disse: “Este deve ser um grande homem. Quem é?” Ao que Eliezer respondeu: “É o meu mestre”. Imediatamente Rebeca agradeceu ao Senhor por ter sido destinada a ele. Segundo o Midrash, ao mesmo tempo, porém, teve a visão de que geraria um filho malvado (Esaú), estremecendo e caindo do camelo. Eliezer a recolhe do chão e a leva a Abrãao e Itzhak.
Casal único
Com Itzhak e Rebeca o texto bíblico relata o primeiro casamento que se conhece na história da humanidade. Foram o único casal monogâmico citado no Gênese, pois, por ter sido “escolhido como sacrifício ao Senhor no Monte Moriá”, Itzhak não podia ter uma outra mulher também como esposa. Itzhak e Rebeca se completavam e, como nos revela a Torá, amavam-se apesar das diferenças de personalidade. Itzhak era um pensador, um homem gentil e carinhoso, mas passivo. Rebeca, ao contrário, um caráter decidido, de muita presença. Ambos possuíam visão profética, mas Rebeca possuía também a intuição feminina.
O Midrash descreve Rebeca entrando na tenda de Sara, a falecida mãe de seu futuro marido. Desde a morte de Sara, cada vez que Itzhak entrava na tenda e sentia a escuridão, entristecia-se. A luz que costumava emanar da tenda que fora de Sara permanecia apagada, restando apenas as trevas. Enquanto Sara viveu, as velas do Shabat permaneciam acesas, a farinha da chalá era abençoada e a Presença Divina pairava sobre sua tenda. Com a vinda de Rebeca, seu casamento com Itzhak e sua entrada na tenda, as três bênçãos retornaram ao recinto.
Os gêmeos
Rebeca, assim como Sara, não conseguia engravidar. Passaram-se vinte anos antes que D’us atendesse as preces de Itzhak e Rebeca, finalmente, conseguisse conceber. Sua gravidez foi difícil, pelos gêmeos que concebera. Durante os noves meses, ela sentia intenso conflito em seu ventre. Diz o Midrash que toda vez que ela passava por um idólatra, Esaú dava-lhe pontapés e queria sair, enquanto que toda vez que passava por uma academia de estudo da Lei, era Jacó quem se agitava em seu interior. A luta era tanta que, em sua dor, ela foi até a Academia de Shem e Ever para perguntar a D’us: “Se isto é assim, então por que eu existo?” E o Todo-Poderoso respondeu-lhe: “Há duas nações em seu ventre... o mais velho servirá ao mais jovem”.
Quando chegou a termo, Rebeca deu à luz gê-meos; o primogênito foi chamado de Esaú e o segundo de Jacó. Os dois filhos de Itzhak e Rebeca eram totalmente diferentes tanto fisicamente como moral e espiritualmente. Enquanto Esaú era um caçador, Jacó estudava.
Rebeca sabia quem era Esaú, realmente; via seus dois filhos em sua verdadeira natureza. Sabia que Esaú era materialista, percebera sua dubiedade e sua brutalidade. Sabia que seu instinto para o mal era maior do que suas qualidades. Após ter vivido anos no meio de pessoas maldosas, Rebeca sabia reconhecer a crueldade e a falsidade, enquanto que Itzhak, que passara sua vida no meio de santidade, pouco sabia sobre a maldade. Rebeca via com clareza que somente Jacó poderia mudar o mundo da forma como Abraão o concebera.
A bênção
A Torá relata que “quando Itzhak envelheceu e sua visão estava definhando, ele convocou seu filho mais velho, Esaú...” (Gênese 27:1). Segundo um Midrash, seu problema na vista fora causado quando ele estava no altar de sacrifício no Monte Moriá, e o anjo interveio segurando a mão de seu pai. Neste momento, as lágrimas entraram em seus olhos, ali alojando-se e enfraquecendo sua visão ao longo dos anos. Outro Midrash diz que, quando Itzhak estava para ser sacrificado, o Paraíso abriu-se e ele foi cegado pela luz da Presença Divina.
Itzhak sentira que havia chegado a hora de dar sua benção ao filho primogênito, por isso mandou Esaú caçar e preparar uma refeição, para então abençoá-lo. Mas ao ouvir isto, Rebeca que não esquecera a profecia de que “o mais velho servirá ao mais jovem”, decidiu agir. E, contrariando a vontade de Itzhak, interferiu para garantir a seu filho mais novo a bênção paterna que, de acordo com a tradição, seria concedida a Esaú, o primogênito.
Rebeca, certa do que fazia, insistiu para que Jacó a ouvisse e seguisse de maneira exata as suas orientações. Prometeu que, se o seu plano falhasse, ela obedeceria os desejos do marido. Mas o plano deu certo e Jacó recebeu a bênção de Itzhak.
Segundo o Rambam, Itzhak não estava a par da profecia de que “o mais velho servirá ao mais jovem”, pois Rebeca nunca a revelara a ele. Itzhak podia, segundo Rashi, estar ciente das limitações de Esaú, mas acreditava que a bênção o melhoraria. Apesar de saber que Jacó era o líder espiritual, o verdadeiro herdeiro do legado de Abraão, em seu íntimo, Itzhak sonhava com uma parceria, uma verdadeira comunhão entre os irmãos Esaú e Jacó. Esperava que Esaú se dispusesse a prover alimento e sustento ao irmão, Jacó, a quem cabia estudar e ensinar a Torá – e que, juntos, herdariam e transmitiriam o legado da vida judaica. Rebeca, no entanto, com sua biná, intuição feminina, percebeu que a Esaú não interessava a “parceria” com Jacó. Interessava-lhe apenas usufruir sozinho de seu sucesso material. E que Jacó seria o único a herdar e a transmitir o judaísmo.
Quando Itzhak se deu conta do que acontecera, estremeceu no fundo de sua alma. Porém, sabia que a bênção havia sido conferida com inspiração Divina e, assim sendo, era válida (Bereshit Rabá, 67). Rebeca estava certa: Jacó era o escolhido por D’us.
Quando Esaú percebe o ocorrido, fica enfurecido e planeja matar o irmão. Mais uma vez a intuição de Rebeca salva Jacó. Ao perceber os planos de Esaú, Rebeca manda Jacó para longe, para a casa de seu irmão Labão, onde devia permanecer até que Esaú superasse sua raiva. Rebeca temia o poder dessa raiva, temia pela vida de seus dois filhos. Por isso, mais uma vez, tomou uma decisão difícil, mandando seu filho Jacó para longe.
Nunca mais Rebeca viu Jacó; ela morreu antes que ele voltasse para casa. A Torá não relata nada sobre a morte de Rebeca, nossa segunda matriarca, só que está enterrada na gruta de Machpelá, ao lado de seu marido, Itzhak.
Bibliografia
• The Call of The Torah, An anthology of interpretation and commentary on the Five Books of Moses, Bereishis, Rabbi Elie Munk, Mesorah Publications
• A Torá Viva, anotado por Rabino Aryeh Kaplan, editora Maayanot.
• The Midrash Says – The Book of Beraishis
• Raver, Miki, Listen to Her Voice – Women of the Hebrew Bible