Se a Torá é a pedra angular do judaísmo, o Talmud é o pilar central que se alça dos alicerces e sustenta todo o edifício espiritual e intelectual.

A Torá

Leopold Zunz, historiador da religião judaica do século XIX, deu certa vez, uma caracterização muito feliz da Bíblia. Disse que ela tinha servido de “pátria portátil para os judeus”. Idéia semelhante tinha sido expressa nove séculos antes pelo rabino Saádia, o Gaon (Reitor) da Ieshivá (Academia) de Sura: ”Israel só é um povo graças à Torá”.

Esse fenômeno de uma Escritura que congrega em si a filosofia da crença religiosa, o guia de conduta moral, e que, num passado não muito remoto, abrangia e governava a totalidade da vida judaica, foi observado com admiração por Heinrich Heine, o grande poeta alemão, apesar de livre-pensador convicto: “Os judeus podem consolar-se de haver perdido Jerusalém, o Templo, a Arca da Aliança, os vasos de ouro e os tesouros preciosos de Salomão. Tal perda é insignificante em comparação com a Bíblia – o tesouro imperecível que salvaram. Se não me engano, foi Maomé quem denominou os judeus de “O Povo do Livro” – nome que conservaram até o dia de hoje e que é profundamente característico. Um livro é a sua pátria, seu tesouro, seu governante, sua felicidade e sua maldição. Vivem dentro dos limites pacíficos desse livro. Exercem ali seus poderes inalienáveis. Ali não podem nem ser espezinhados nem desprezados”.

Sem a Bíblia é impossível imaginar que os judeus pudessem ter sobrevivido como povo distinto ou como comunidade religiosa durante tantos séculos e através de tantas vicissitudes. Uma interessante agadá1 relatada no Talmud, ilustra a maneira pela qual o próprio povo concebia sua dedicação à Torá. Quando os israelitas estavam reunidos ao pé do Monte Sinai, a fim de firmar a solene Aliança com D’us, desceu de repente do céu, ficando miraculosamente suspenso sobre suas cabeças, uma aparição do Livro e, ao lado dela, uma da Espada. “Escolham!” ordenou a Bat Kol (a voz celestial). “Podem ter uma coisa ou outra, mas não as duas - o Livro ou a Espada! Se escolherem o livro, devem renunciar à Espada. Se escolherem a Espada, então o Livro perecerá”. O autor rabínico desse episódio concluía então, exultante, que os israelitas tomaram uma decisão memorável na história da humanidade: escolheram o Livro! “Em seguida, o Divino - Abençoado seja!- disse a Israel: (Se respeitarem o que está escrito no Livro, serão preservados da Espada, mas se não o respeitarem, a Espada os destruirá!) O fato é que na história dos judeus, escrita com sangue e sofrimento em tão grande proporção, tem sido precisamente a devoção ao Livro o que os levou tantas vezes à destruição pela Espada, brandida não por eles, mas por seus inimigos; mas o povo judeu sobreviveu a todos seus perseguidores.

A palavra hebraica para Bíblia é Tanach, composta pelas consoantes T-N-Ch, que representam as 3 divisões das Escrituras: Torá (Pentateuco), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). De forma genérica, costuma-se designá-la por Torá, que em hebraico significa “orientação”, correspondendo à sua relação com o povo: uma orientação da vida.

Talmud e Exegese

Se a Torá é a pedra angular do judaísmo, o Talmud é o pilar central que se alça dos alicerces e sustenta todo o edifício espiritual e intelectual. Sob muitos aspectos, o Talmud é o mais importante livro judaico, o principal suporte de criatividade e vida nacional.

A palavra Talmud deriva da raiz hebraica LMD. A raiz verbal LMD se aplica em hebraico tanto a estudo (=lamed) quanto a ensino (= limed).

De forma sintética, o Talmud consiste na compilação das leis, tradições, comentários e interpretações judaicas registrados pelos doutos na Babilônia e em Israel, abrangendo um período de mais de 1000 anos (do séc. V a.e.C. ao V e.C). Num mundo em constante mutação, foi um instrumento de adaptação da religião judaica às circunstâncias sempre cambiantes da vida do povo. Nenhuma outra obra expressa tantos aspectos da essência do povo judeu e de seu caminho espiritual, nem teve influência comparável sobre a teoria e prática da vida judaica, dando forma a seu conteúdo espiritual e servindo de guia de conduta. O povo judeu sempre soube que sua contínua sobrevivência e desenvolvimento dependem do estudo do Talmud, e os que são hostis ao judaísmo também tiveram conhecimento desse fato. O livro foi ultrajado, difamado e lançado às chamas inúmeras vezes na Idade Média e igualmente submetido a indignidades similares no passado recente. Em certas ocasiões o estudo talmúdico foi proibido por ser mais do que claro que uma sociedade judaica que abandonasse esse estudo não tinha real possibilidade de sobreviver.

Enquanto a Bíblia se incorporou ao patrimônio da cultura universal e se tornou um clássico da humanidade, o Talmud ficou como o clássico do povo judeu. Israel, o povo do Livro, abraçou o Talmud, como o Livro do povo.

Na história cultural judaica a busca da verdade e da compreensão, em termos de valores religiosos, raramente foi interrompida ao longo de três milênios. O foco central dessa preocupação sempre foi “O Livro”. Em torno dele desenvolvia-se uma atividade contínua de exame e reexame de seus textos sagrados que os judeus veneravam como sendo a verdade divinamente revelada. Uma área contígua de investigação e interpretação crítica, menos importante, mas não desprezível, era a das Leis Orais da Tradição – a Mishná – depois que esse código foi canonicamente fixado no século II, sob a chancela editorial do patriarca da Judéia, Iehudá Ha-Nassi. Essas investigações do texto resultaram num grande número de comentários escritos que se destinavam a precisar melhor e mais profundamente o significado dos sagrados textos hebraicos. O caráter relativamente não dogmático e aberto do pensamento religioso judaico tornou possível esse trabalho de investigação erudita. Não era raro que esses comentários provocassem discórdia e controvérsia por causa da natureza presumivelmente “herética” das opiniões que continham, como o “Guia dos Perplexos” de Maimônides e as “Guerras do Senhor” de Gersônides, que os detratores passaram a chamar de “A Guerra contra o Senhor”. Apesar dessas exceções, a investigação da Torá admitia muitas diferenças de opinião.

A necessidade de esclarecer o texto bíblico e de conciliar aparentes inconsistências e contradições por meio de um método de raciocínio que os especialistas chamam de “exegese”, era a força motriz principal que estimulava os devotos – a escrever e a estudar os comentários. Nos primeiros séculos que se seguiram à destruição do templo no ano 70 a.e.C, este aprofundamento, a busca de esclarecimento e o desejo de uma síntese religiosa resultaram na criação da monumental literatura da Guemará e do Midrash. Junto com a Mishná, da qual eram comentários rebuscados, formaram a obra rabínica coletiva conhecida como Talmud.

As primeiras tentativas de uma abordagem científica ao exame textual da Bíblia e do Talmud tiveram lugar nas academias de Sura, Pumbedita e Nehardea, na Babilônia, no assim chamado período gaônico, nos vários séculos que precederam a Idade Média.

Depois, inúmeras escolas de exegese bíblica, seguindo princípios diferentes, surgiram no Egito, em Tunis, Marrocos, na Espanha e na Provença. Até na França e na Alemanha cristãs, onde os judeus estavam menos avançados culturalmente, começou a despertar certo interesse nos setores, até então desprezados, da filologia e da gramática, embora não chegasse a resultados comparáveis aos dos sefaradim.

Ashquenazim x Sefaradim: A história judaica na Europa é uma história regional, dependendo de onde os judeus se estabeleceram. Ao contrário do Oriente, onde o modelo era determinado por decretos das academias babilônicas, cada comunidade tinha seu próprio caráter, seus próprios rituais litúrgicos e costumes e, às vezes, sua própria variante judaica da língua nativa.

A principal divisão do judaísmo europeu era entre os sefardim da Península Ibérica e os ashquenazim da Alemanha e norte da França. O judaísmo ashquenazi desenvolveu-se no ambiente do cristianismo da Europa ocidental, reagindo à queda do império romano.

No começo da Idade Média, enquanto os judeus da Itália, principalmente em Roma, viviam tranqüilos, sofreram os da França e da Espanha, para lá deportados em grande número pelos romanos, atrozes perseguições. Como se recusavam a se converter ao cristianismo, impôs-se-lhes, sob pena de expulsão, a conversão imediata. Alguns submeteram-se à conversão aparente, aceitando o batismo mas conservando em seus corações a fé no D´us de Israel. Outros preferiram emigrar para o sul da França, longe de Paris e da influência de seus bispos, ou para a Alemanha, do outro lado do Reno.

Comunidade Judaica na França Medieval

Carlos Magno e os judeus: Quando Carlos Magno (742-814) estendeu seu império sobre toda a Europa central, reunindo sob seu poder a França, a Alemanha e a Itália, a condição dos judeus nestes países começou a melhorar. Ele deteve a decadência urbana e o colapso do governo central que resultara das invasões bárbaras. Por uma questão de consciência política, ele e a dinastia carolíngia estimularam a imigração judaica. Os mercadores judeus receberam tratamento preferencial devido a suas conexões comerciais no Mediterrâneo e no Oriente. Alguns mercadores judeus, de suas bases na França, empreenderam missões exploradoras através da Europa oriental e das estepes da Rússia até o Oriente Médio, de onde continuaram para a Índia e para a China. Homens de negócios judeus tratavam familiarmente com reis e nobres da Europa ocidental durante os séculos X e XI; restrições canônicas impostas aos judeus por sucessivos Conselhos da Igreja foram desconsideradas por seus patrões reais tal era sua importância econômica. Assim, judeus se estabeleceram em Troyes, Mainz, Worms, Speyer, Colônia e outras cidades em desenvolvimento.


O estudo da lei judaica era uma prioridade maior nas comunidades asquenazitas. Desde o século X, cópias do Talmud podiam ser encontradas fora das ieshivot da Babilônia, e isso facilitou a expansão e o desenvolvimento da erudição rabínica onde quer que os judeus se estabelecessem. As cidades renanas de Mainz e Worms, depois Troyes e Sens no norte da França, tornaram-se conhecidos centros acadêmicos.

Vida Cultural (geral x judaica): O ambiente intelectual da Europa na Alta Idade Média estava longe de ser estimulante. As dificuldades da vida econômica, os ideais militares dos bárbaros e o analfabetismo da maioria da população impediam um florescimento cultural semelhante ao do Oriente muçulmano. Além disto, a cultura estava reservada ao clero e os judeus, evidentemente, não faziam parte dos que poderiam ter acesso à mesma. Em meio à ignorância generalizada, o simples fato de os judeus serem alfabetizados já lhes conferia uma enorme vantagem cultural. À medida que as comunidades foram-se estruturando, as necessidades práticas estimularam o surgimento de escolas e centros de estudos judaicos, onde se estudava a Torá e o Talmud. O isolamento cultural em que viviam os judeus impediu a integração que havia no califado. Nenhum deles se ocupou com Geografia, Astronomia ou Gramática com o interesse que estes assuntos despertavam entre os súditos do Califa; o estudo era restringido aos temas judaicos. Surgiram notáveis eruditos nestas comunidades européias, compensando em profundidade o que lhes faltava em extensão.

Rabeinu Guershom (A Luz da Diáspora) e Rashi: Dois rabinos desta época marcaram profundamente a história do pensamento judaico: Guershom de Mainz e Shlomo ben Isaac Rashi. Guershom ben Iehudá, que viveu no final do século X (965-1028), recebeu o cognome de “Meor HaGolá”, A Luz da Diáspora, devido a seu saber, sua cultura. É o primeiro erudito asquenazita conhecido e sua influência foi enorme. Nasceu em Metz e foi educado na França. Foi chamado também de Guershom de Mainz, porque estabeleceu e dirigiu a academia daquela cidade. A academia que fundou em Mainz tornou-se um centro de estudos de excepcional importância. Como comentador do Talmud, contribuiu para que as regras talmúdicas fossem compreendidas e praticadas.

Entre as mais famosas disposições legais (takanot) a ele atribuídas estão: a que proibiu entre os judeus a poligamia, que eles de há muito haviam abandonado na prática; a que exigia o consentimento da mulher para o divórcio e a que garantia a inviolabilidade da correspondência privada. O discípulo mais brilhante de Guershom foi um jovem da cidade francesa de Troyes, chamado Shlomo ben Itzhak, mais conhecido pelo cognome Rashi.


© Jane Bichmacher de Glasman
Professora da UERJ, do ISTARJ,
Coordenadora do Setor de Estudos Hebraicos/UERJ.