Vivemos em um mundo paradoxal. Por um lado, as revoluções científico-tecnológicas mudaram totalmente as possibilidades do gênero humano quanto à questão produtiva.

As formidáveis avanços em inúmeras áreas, como a biotecnologia, a genética, a informática, a robótica, a eletrônica, as comunicações, a ciência dos materiais e outras, multiplicaram a capacidade de produção de bens e serviços, superando as previsões mais otimistas quanto ao futuro.

Entre suas numerosas expressões concretas na vida cotidiana, vêem-se fenômenos como a Internet, que abre o acesso pessoal às informações em grandes quantidades, como a possibilidade de transformar cultivos sazonais em permanentes, ou as tão promissoras e variadas aplicações de novas descobertas na medicina, ou ainda a iminente conectividade e interatividade do televisor com o telefone e o computador.

Por outro lado, segundo indicam os organismos internacionais, a metade da população do mundo ganha menos de dois dólares por dia, vivendo em pobreza, anualmente morrem oito milhões de pessoas de por enfermidades totalmente evitáveis ou curáveis, dois trilhões de pessoas carecem de água potável, a média de vida nos países mais pobres é de 51 anos e entre os ricos, 78 anos, e enquanto entre o primeiro grupo 159 de cada mil crianças morrem antes de completar cinco anos de idade, no segundo, apenas seis. De modo semelhante, aprofundaram-se as desigualdades. Segundo informa a ONU, os 20% mais ricos da população mundial são donos de 86% do produto bruto mundial e detém 82% das exportações; os 20% mais pobres, apenas dispões de 1% do produto bruto mundial e sua participação nas exportações é de 1%. Por outro lado, o meio ambiente natural atravessa alarmante processo de deterioração.

Face a esta distância entre as potencialidades da humanidade e a vida concreta de boa parte de seus habitante, fizeram-se ouvir vozes proeminentes manifestando a urgente necessidade de um código ético para a nova economia. E entre estas, o Papa João Paulo II diz que é imprescindível que a humanidade “comprometida com o processo de globalização conceda a si própria um código ético”; o Arcebispo de Canterbury, George Carey, ressalta que sem ética tudo corre perigo e o ex-presidente da União Européia, Guy Verhofstdadt, estabelece que “o que realmente necessitamos é um enfoque ético mundial tanto para o meio ambiente, as relações trabalhistas, como para a política monetária”. No mundo inteiro há uma “sede de ética”; as sociedades civis exigem, cada vez mais, ética na conduta dos líderes, ética nas relações internacionais, ética que regulamente o funcionamento da globalização.

Uma visão do mundo muito antiga, que várias vezes tentou-se eliminar da história, aparece neste mundo paradoxal, com enorme vigor, para conseguir satisfazer esta justificada “sede de ética”. Trata-se do judaísmo. Nasceu de um pacto da divindade com o povo judeu, no qual o povo se comprometeu a seguir os Mandamentos e estatutos divinos, todos de caráter essencialmente ético. Esse código ético foi cuidadosamente guardado e cultivado, nas circunstâncias mais difíceis, arriscando a própria vida e entregando-a em outras oportunidades para protegê-lo, por amplos setores do povo judeu, que conseguiram transmiti-lo de geração em geração. A explicação de como conseguiram sobreviver em meio a contínuas tentativas de extermínio, como a Inquisição, os pogroms e o nazismo, somente se encontra em seu apego total a esse mesmo pacto ético. Levando-o adiante, aprofundando-o durante milênios através da interpretação talmúdica e do estudo contínuo, o povo judeu forjou um modo de vida espiritualmente elevado, que fortaleceu sua solidez nacional. Os grandes impérios da Antigüidade tombaram um após o outro, após se corromperem internamente. Este pequeno povo, frágil e vulnerável, conseguiu sobrevivê-los a todos por esse exigente compromisso ético, que permitiu-lhe cultivar um estilo de vida que, como explicam os sábios do Talmud, devia girar em torno de três eixos: a fé, o estudo e as boas ações. Isto o protegeu e lhe deu uma força histórica de enorme vigor.

Mas cabe perguntar: terá tudo isto algum sentido, atualmente? O judaísmo não deve ser considerado parte do museu mais rico do gênero humano? Mas museu, apesar de tudo, pertencente ao passado? A realidade contemporânea indica o contrário. As idéias básicas da ética judaica que enriqueceram a vida de gerações de famílias judias em seu cotidiano, seguem fazendo-o e foram a base da façanha, incomensurável, que representou a criação do Estado de Israel, em meio a condições extremamente difíceis. Hoje essas idéias não pereceram como tantas outras ideologias, mas, pelo contrário, sua atualidade se mantém em toda a sua plenitude, tendo adquirido ressonância universal.

Algumas das concepções fundamentais do judaísmo são, segundo diferentes versões, percebidas como bases imprescindíveis para o grande código ético pelo qual grande parte do gênero humano clama, neste tempos de globalização, e estão impactando fortemente nossa era.

O mesmo ocorre com a visão de igualdade fundamental entre todos os homens. Foram criados pela divindade, diz o judaísmo, à Sua semelhança. Têm centelhas divinas, foram humildes ou poderosos, sua dignidade deve ser profundamente respeitada e as discriminações são intoleráveis. A divindade é una e comum a todos os seres humanos, sem distinções. Ademais, o judaísmo enfatiza essa concepção igualitária, através de sua mensagem sobre a origem da criação. Os sábios talmúdicos se perguntam, por que a divindade teria criado um único casal, no início, e não vários? E a resposta é, a mensagem era ressaltar que todos nós temos a mesma origem, que ninguém pode alegar sangue diferenciado, nem tampouco características raciais superiores. Esta idéia de igualdade e rechaço às discriminações é, hoje, uma insígnia essencial da luta por uma humanidade melhor.

Oura visão que o judaísmo aportou à humanidade e que, cada vez mais, vê-se recuperada em nossos dias como marco de inspiração para as tentativas de construir uma ordem social justa, é o “profetismo”. Saga sem igual na história, os Profetas de Israel, clamando por justiça, denunciando a corrupção dos poderosos, velando pelos mais fracos, sonhando com a paz, converteram-se em um modelo universal de referência. Como bem o afirma Elie Wiesel, enquanto os deuses do Olimpo grego são estátuas sem vida, os Profetas estão mais vivos e atuais do que nunca. Amós, Isaías, Jeremias, Osias, Ezequiel e muitos outros, são referência sempre atual e contínua. A profecia de Isaías sobre a paz, foi a escolhida para presidir a entrada do único edifício onde se reúne todo o gênero humano, a sede das Nações Unidas, em Nova York.

O judaísmo é portador, também, de uma vibrante mensagem contra o despotismo que tem grande sentido em nosso mundo, no qual grandes setores da população estão lutando pela democratização e por uma maior participação do povo na gestão das sociedades. Bernard Henri Levy, o grande filósofo francês, deslumbra-se diante desta qualidade singular. Descreve-a com emoção: “Isto pode parecer estranho, levando-se em conta a extrema antigüidade do texto bíblico, mas creio que em seu humanismo, em seu sentido de universal, em sua permanente preocupaçaõ com a ética, em sua modéstia ontológica, encontra-se tudo o que necessitamos hoje em dia para construir verdadeiras filosofias anti-despóticas. ¨O judaísmo é uma arma metafísica contra o totalitarismo”.

O judaísmo é, também, repleto de soluções concretas frente aos problemas sociais. Não se evade nem racionaliza os sofrimentos da população, mas, pelo contrário, exige que sejam atendidos e estabelece propostas de como fazê-lo. Como ensinava um dos maiores pensadores judeus da história, Maimônides, os textos bíblicos ordenam dar prioridade acima de qualquer outro dever à Tzedaká. Isto significa ajudar o pobre e a viúva e essa ajuda tem um significado especial. Tzedaká quer dizer justiça. Ajudar o desfavorecido, no judaísmo, é restabelecer a justiça que está sendo violada pela própria existência da pobreza. Esta visão foi incorporada, recentemente, à Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, ao incluir na mesma os direitos sociais básicos. Os textos bíblicos legislam, detalhadamente, sobre a questão social, são portadores dos alinhamentos de uma “política social”, realmente eficaz e humana, Também se rebelam contra as desigualdades e exigem a construção de sociedades sem grandes brechas nem desigualdades, harmoniosas e equilibradas. Projetaram instituições exemplares para esse fim, que hoje estão sendo reivindicadas por amplos setores da humanidade, como as incluídas na idéia bíblica do jubileu, com remissão de dívidas, ano sabático para a terra, retorno da terra a cada 50 anos a seus proprietários originais, entre outras tantas.

O judaísmo transmite, igualmente, uma visão do futuro, plena de esperança. A história não conduz, no judaísmo, à apocalipse, nem à entronização de sociedades pervertidas, mas sim aos tempos messiânicos. Neles, o bem triunfará definitivamente e reinarão a paz, a justiça e o amor. É uma mensagem que dá alento em um mundo sedento de esperança.

Por ser portador conseqüente de mensagens deste tipo, é que o judaísmo teve a influência que exerceu, no passado, e continua exercendo, hoje. Abba Eban capta com extrema sensibilidade esta situação: “Os judeus são apenas uma pequena fração da família humana. Jamais tiveram demasiado poder, nem muito território, nem grande número; no entanto, é impossível relatar a história da civilização sem examinar de perto os que os judeus pensaram, sentiram, escreveram e realizaram”.

A tudo isso se acrescenta uma dimensão do judaísmo de caráter muito especial. Heschel a caracteriza, assinalando que o judaísmo é uma intenção espiritual gigantesca do ser humano de ir em busca do mistério maior: o sentido da vida, o sentido do mundo e o encontro com a divindade.

Este judaísmo que influiu através das idéias e da ética na luta por um mundo melhor, floresceu com grande ímpeto no último século. O judaísmo contemporâneo recriou e fecundou as fontes e gerou expressões poderosas e vigorosas, ampliando ainda muito mais o enorme caudal original.

A época atual é cheia de paradoxos universais que criam angústia, temor e sofrimento. É, também, uma etapa muito especial para Israel e o judaísmo latino-americano, onde surgiu um grave problema: o empobrecimento de grandes setores da comunidade, que está causando efeitos devastadores no judaísmo argentino. Diante das dificuldades mundiais e comunitárias, o judaísmo, essa melodia especial de amor pela divindade e pelos seres humanos, cultivo da família, solidariedade ativa, carinho pelo natureza, encontro da alegria na vida cotidiana, gosto pela vida – tem muito o que contribuir à humanidade.

Sem dúvida, o futuro do próprio judaísmo dependerá de que o amor por sua mensagem transcendental seja transmitido de geração em geração e de que as novas gerações continuem reinterpretando as fontes diante dos novos problemas, apliquem-nas de modo conseqüente em suas ações e continuem enriquecendo-as. Como dizia Heschel, mais do que nunca “necessitamos judeus cuja vida seja um jardim e não um abrigo contra o inverno”.


por Bernardo Kliksberg
Bernardo Kliksberg é Assessor da ONU e de outros organismos internacionais. Presidente da Comissão de Desenvolvimento Humano do Congresso Judaico Latino-americano. Seu último livro: “El Judaísmo y la Justicia Social”, (Fondo de Cultura Económica, Fundación Tzedaká, Buenos Aires, 2001).