Em nenhuma outra região da França houve uma cultura judaica tão rica como a que existiu entre Estrasburgo e Mulhouse. Ainda hoje encontramos, nessa região, vestígios de 90 sinagogas e mais de 60 cemitérios.

Com uma chave enorme, do tamanho de sua mão, totalmente enferrujada, Roger Chan abre a porta da sinagoga de Westhoffen. Na fachada de pedra de cantaria encontramos rosetas gravadas; sobre a entrada lê-se, em letras hebraicas, o ano da construção do templo: 1865. Com uma expressão melancólica, o Sr. Chan recorda que até a década de 1930 lá se realizavam, diariamente, serviços religiosos.

Uma visão do interior da sinagoga mostra que esse tempo já vai longe. Onde havia os bancos, só se vê um piso de tábuas velhas, empoeirado e mal conservado. Em todos os cantos do teto o mofo tomou conta e o vento corta a sinagoga pelas vidraças e janelas quebradas. Roger Chan, de 69 anos, anda pelo recinto, mostrando o que, no passado, existira nos diversos lugares. O armário com os rolos da Torá ficava bem em frente e um lindo lustre descia do teto. As mulheres só po-diam usar a parte lateral, no alto. Há pouco mais de um ano, a prefeitura de Westhoffen mandou colocar grades de arame no lugar das janelas, que estavam servindo de abrigo para os pombos.

Na aldeia alsaciana de Westhoffen, situada 30 km a oeste de Estrasburgo, a vida judaica se extinguiu depois da 2ª Guerra Mundial. Somente quatro judeus lá residem, atualmente: o sr. Chan, sua irmã de 70 anos e outra senhora, com um filho rapaz de 26 anos. Como em todas as outras aldeias da região, os velhos morreram e os jovens partiram em busca de paragens mais atraentes, com melhores oportunidades para seu futuro.

Chan nos levou à sua casa, para continuar o relato. Sentado em uma poltrona, conversa com a irmã no dialeto dos judeus campesinos que, dentro de muito pouco tempo, ninguém mais usará: o iídische alsaciano, que vem desde a Idade Média. Muitas de suas expressões foram incorporadas ao idioma alemão e ainda são hoje utilizadas. Schmusen, conversar, bater papo; schlemazel, desafortunado, ou meshugue, adoidado, são exemplo disso. Conta-nos, então, que os primeiros judeus chegaram ao Vale do Reno com as legiões romanas, no início de nossa era. No entanto, sua presença na Alsácia só é atestada pelos documentos a partir do século 11. Viviam geralmente nas cidades.

No ano passado, o "Consistoire Israélite du Bas-Rhin" incumbiu o sr. Chan de fazer uma lista de todos os judeus que lá viviam antes da guerra. Puxando pela memória, conseguiu relacionar 67 famílias. Em outra lista, de 41 nomes, constam os que lograram retornar da guerra. Chan se recorda que apenas dois membros da comunidade foram exterminados em campos de concentração, o que é relativamente pouco comparado a outras aldeias da região.

De lá, passamos ao pequeno museu em Bouxwiller, a 40 km a noroeste de Estrasburgo, que documenta a história dos judeus da Alsácia. Gilbert Weil, professor aposentado de arquitetura na Universidade de Marselha, reuniu na antiga sinagoga de sua cidade natal documentos e objetos da cultura judaica. Encimando a entrada da antiga construção, vê-se uma inscrição em dialeto iídische-alsaciano, com caracteres alemães: LEWE UND LEWE LONN - Viver e deixar viver. O prédio, de três andares, foi transformado em museu, carinhosamente administrado por esse professor. O acesso se faz por uma rampa e os objetos estão expostos cronologicamente pelos andares até chegar-se ao terceiro andar, onde estão expostas peças da atualidade.

Conta o sr. Weil que a população geral e os judeus alsacianos viveram em perfeita harmonia desde a Idade Média. Não havia guetos, como nas cidades do leste europeu. Na aldeia, todos se conheciam e os costumes religiosos judaicos eram conhecidos e respeitados pelo resto da população. Mas essa convivência pacífica foi abalada no século 14, com as primeiras Cruzadas, quando surge uma grande hostilidade com relação aos judeus, reforçada durante a época da Peste Negra que se abateu sobre toda a Europa. Por volta de 1349, em Estrasburgo, os judeus foram acusados de ter envenenado os poços d'água. Dois mil judeus foram queimados no local onde hoje é a Praça da República e grandes contingentes foram expulsos da maioria das outras cidades da Alsácia. Em uma das vitrines vê-se uma espécie de trombeta, o Grüsselhorn, que era tocado, todas as tardes, do telhado da Igreja do Domo, exortando os judeus a deixar a cidade.

Por essa razão, segundo o administrador do museu, obrigados a se afastar das áreas urbanas, os judeus se refugiavam nos campos, e este êxodo forçado deu origem a uma considerável população judaica rural. Estes núcleos mantinham forte solidariedade comunitária e rapidamente se integravam na vida das aldeias. As maiores comunidades se desenvolveram nas proximidades das cidades, como por exemplo Bischheim, perto de Estrasburgo; Wintzenheim, próxima a Colmar, e Hegenheim, vizinha à Basiléia.

Banidos por legislação das atividades artesanais e agrícolas e do comércio estabelecido, os judeus eram pequenos comerciantes de animais e grãos ou vendedores ambulantes de quinquilharias. Na época da guerra dos Trinta Anos, o judaísmo alsaciano praticamente desaparece, contando apenas com cerca de cem famílias. A Alsácia, novamente anexada à França pelo Tratado de Westfália, em 1648, volta a ser povoada com imigrantes vindos da outra margem do Reno. Com eles, voltam os judeus a se estabelecer na região, pagando pesados tributos de moradia em troca de proteção. Às vésperas da Revolução, nas 180 comunidades rurais da Alsácia vivem cerca de 20 mil judeus, o que representa mais do que a metade dos judeus de toda a França, à época.

A discriminação contra os judeus só terminou após a Revolução Francesa. Em 27 de setembro de 1791, com a publicação do Decreto de Emancipação pelo Parlamento Nacional de Paris, os judeus passaram a ter igualdade de direitos com os outros cidadãos franceses, podendo exercer todas as profissões e viver onde lhes aprouvesse. A aquisição da cidadania provocou um movimento febril em todas as pequenas comunidades alsacianas para a construção de sinagogas. Em 1808, os decretos napoleônicos instituem uma organização central judaica, os consistórios. Entre 1791 e 1914 foram erigidas 176 sinagogas apenas nessa região, de um total de 256 em toda a França.

Em meados do século 19 houve migração dos judeus das aldeias para Estrasburgo e Paris e algum movimento de emigração para os Estados Unidos e a África do Norte. Em Estrasburgo a população judaica crescia continuamente. Em 1904 havia cerca de 5 mil judeus na cidade; em 1936 eram 9.300 e, hoje, a cidade voltou a ter uma comunidade florescente, com mais de 15 mil almas. A situação se inverteu. Praticamente extinguiu-se o judaísmo nas aldeias rurais enquanto se expandia a vida judaica nas cidades.

Atualmente há cerca de 600 mil judeus na França, sendo que uns 20 mil na Alsácia. Como testemunho marcante da presença e da cultura judaica na região há mais de 60 cemité-rios. O maior destes encontra-se em Ettendorf, numa colina, cercado de trigais e milharais. Antes, esse campo era um cemitério de cavalos. O Conde de Hanau-Lichtenberg, cuja família dominava nessa época a região, doou o terreno aos judeus no início de século 16. A sepultura mais antiga é de uma mulher, datada de 1566. Até épocas mais recentes ainda se rea-lizavam sepultamentos. Hoje até os visitantes são uma raridade: percebe-se que não há pedrinhas nas lápides que, usualmente, os visitantes ashquenazitas colocam nos túmulos em lugar de flores.

Em Ettendorf encontramos diversos muros antigos que circundam a colina - sinal de que o cemitério foi ampliado com o passar do tempo. Isabelle Medinger, que trabalha em sua tese de doutoramento na Universidade de Paris sobre os cemitérios judaicos, descobriu em suas pesquisas que o local serviu como campo santo para 26 comunidades vizinhas. A historiadora, de 25 anos, acrescenta que a maioria dos cemitérios da Alsácia estão mal conservados. Em Ettendorf há muitas pedras cobertas por uma espécie de parasita que as faz parecer pintadas de amarelo e dificulta a leitura das inscrições. O capim, às vezes, é cortado, mas a maioria das lápides estão afundando, como se a terra as tragasse, pouco a pouco.

Mais raras do que os cemitérios são os banhos rituais, as micvês. As poucas encontradas estão localizados nas adegas das residências particulares. Encontramos uma micvê restaurada em Bischheim, ao norte de Estrasburgo. Uma escada em caracol, em estilo renascentista, leva a dois andares abaixo do nível da casa.

As leis de pureza têm grande importância na religião judaica e cada comunidade sempre teve o seu local para o banho ritual. Os homens se purificam para o Shabat; as mulheres, após o período menstrual. Segundo a lei, os 500 litros de água têm que vir diretamente de uma fonte, das chuvas ou de um lençol de águas subterrâneas, daí a explicação para a sua localização na adega, geralmente instalada em nível abaixo do solo. A micvê de Bischheim é extremamente simples e consta de um reservatório de dois metros quadrados, cercado de paredes lisas, sem decoração especial. Em Estrasburgo, na Rue des Juifs, encontram-se vestígios de uma micvê pública, datada do século 13, mais ornamentada.

Uma estatística exposta no Musée Judéo-Alsacien, em Bouxwiller, atesta as condições de pobreza dos judeus que viviam nos campos da Alsácia. Em 1857, somente cinco por cento dos protestantes e nove por cento dos católicos não tinham meios de sobreviver sem auxílio externo, enquanto que a percentagem de judeus atingia treze por cento. No entanto, são descendentes dessa região famosos judeus como o diretor do filme Ben Hur, William Whyler, e o Primeiro Ministro francês, Léon Blum.

Durante séculos os judeus não tiveram permissão de adquirir qualquer propriedade imóvel, não po-diam exercer profissões liberais e eram excluídos das antigas corporações (hoje, sindicatos). Muitos deles, portanto, como já vimos, dedicavam-se ao pequeno comércio ou emprestavam dinheiro a juros. Roger Chan, de Westhoffen, orgulha-se de suas origens como vendedor de tecidos, ocupação já praticada por sua avó. A família possui uma loja de tecidos desde 1880. Na porta da loja, como em todas as casas judaicas da região, vê-se uma mezuzá. No andar superior, são as dependências privadas, onde ele reside. Em cada porta, também, uma antiga mezuzá.

No entanto, as portas de ferro de enrolar de sua loja, foram baixadas definitivamente no último dia do ano de 1995. Ele explica, "sou velho demais para este trabalho". Agora ele é somente um privatier, um particular, que fica na prefeitura de Westhoffen, com a enferrujada chave na mão, à espera dos visitantes interessados em conhecer a velha sinagoga local, vestígio de uma comunidade que conheceu dias de glória, como atestam as ilustrações desta matéria.

Léo Epstein, leitor de Morashá no Rio Janeiro, foi convidado pela prefeitura da cidade onde nasceu, próxima à região, para participar dos festejos do 750º aniversário da cidade, no ano passado, na qualidade de "remanescente da vida judaica da cidade".

Estatísticas coletadas no Badische Zeitung, jornal alemão, sobre sítios culturais judaicos em 29 comunidades da Alsácia.