Ele fala de seu passado sem constrangimento, justifica seus atos como parte da rotina de trabalho e não se arrepende do que fez no campo de concentração de Auschwitz.

Volta ao passado

Eva Kor é um dos "judeus de Auschwitz" e vive em Indiana, nos Estados Unidos. Durante 40 anos manteve silêncio absoluto sobre as experiências pelas quais passou nas mãos de Mengele. Mas, após tanto tempo, decidiu falar sobre o que lhe aconteceu quando tinha onze anos, no campo de concentração. Em busca de seu passado nos arquivos sobre o Holocausto, encontrou a foto de Münch e decidiu contatá-lo e, em seguida, encontrá-lo.

Kor resolveu, então, convidá-lo a ir com ela a Auschwitz, para as comemorações do cinqüentenário de sua libertação. Münch passou 19 meses em Auschwitz, trabalhando no "Instituto de Higiene". Executou suas tarefas tão minuciosamente quanto os demais membros da SS. Sobre esse período, diz: "A erradicação dos judeus era a missão dos SS. Mas os ‘meus’ judeus me admiravam e tinham-me em alto conceito".

O depoimento de Kurt Prager, ex-prisioneiro em Auschwitz, descreve o médico nazista como alguém com resquícios de humanidade e bondade, em meio a loucos e assassinos. O professor Geza Mansfield, outro prisioneiro e assistente de Münch, também o elogiou, dizendo que "ele agiu bem, muito além das leis naturais de humanidade".

Sobre si mesmo, Münch afirma: "Não fui condenado como criminoso de guerra; fui considerado alguém que agiu com humanidade. Consegui fazer experiências em seres humanos que seriam possíveis apenas em coelhos. Foi um trabalho científico importante".

Münch come um sanduíche de presunto enquanto relata como injetou a bactéria estreptococo nos braços e costas de seus prisioneiros. Ele tinha seu próprio laboratório no Bloco 10, onde outros SS também faziam experiências. O médico queria descobrir uma conexão entre os abcessos nos dentes e o reumatismo. Em nome da ciência, arrancava os dentes dos prisioneiros para recolher pus e, se os dentes fossem sadios, injetava-lhes o pus de outros.

Frias lembranças

Münch queria ser cientista, como seu pai, professor de Botânica. Estudou Medicina em Tubingen e Munique e foi membro da Ordem dos Jovens Alemães e da SA. Fez especialização em Bacteriologia e foi líder da Organização de Estudantes do Reich. Em 1 de maio de 1937 tornou-se membro do Partido Nacional Socialista. Ao terminar os estudos, em 1939, não conseguiu nenhum cargo científico. Queixou-se a seu amigo Bruno Weber, médico no "Instituto de Higiene" dos SS, que pretendia abrir um setor da instituição em Auschwitz, e este prometeu ajudá-lo.

Münch e sua esposa chegaram a Auschwitz no verão de 1943 e, segundo suas palavras, a temperatura era ideal para uma boa cerveja e eles estavam animados com a perspectiva de uma nova vida. O céu estava claro e o dia seria perfeito, não fosse pelo cheiro: adocicado e podre. "Ninguém poderia ignorar o mau cheiro da área. As chamas podiam ser vistas saindo das chaminés e, em dois dias, já sabíamos o que estava acontecendo", relembra o médico.

Ao saber da verdade, sua esposa quis partir imediatamente. Mas as possibilidades que Auschwitz oferecia, do ponto de vista científico, fizeram com que Münch ficasse. "As condições de trabalho eram ideais. Os laboratórios estavam muito bem equipados e havia vários acadêmicos de reputação internacional". Sua função era controlar as epidemias, pois o tifo, a febre tifóide e a disenteria eram freqüentes no campo e atacavam a todos, in-dis-cri-mi-na-damente: prisioneiros e oficiais da SS. A propagação das moléstias levou à adoção de medidas radicais, como por exemplo, isolar os presos dentro das barracas e fazê-los marchar rumo às câmaras de gás. As máquinas foram ligadas em sua potência total.

À pergunta do repórter da Der Spiegel se esse fato não o incomodou, Münch disse que não, pois morrer na câmara de gás foi melhor para eles. "Foi a única maneira de impedir que o campo fosse destruído. Se não morressem pelo gás, morreriam vítimas das epidemias".

Münch jamais se sentiu desconfortável dentro de Auschwitz. Pelo contrário, finalmente conseguiu sentir que pertencia a algum lugar. Entre os médicos SS do campo, finalmente obteve respeito e reconhecimento.

Encontro com Mengele

Para Münch, Mengele foi a "companhia mais agradável" que ele poderia ter encontrado. "Só posso elogiá-lo". Ambos chegaram a Auschwitz no mesmo período e partiram no mesmo dia.

Uma espécie de encontro entre o carrasco e sua vítima. Assim poderia ser definido o encontro entre o médico nazista, Hans Münch, diretor do "Instituto de Higiene" de Auschwitz, e Renne Firestone, irmã de Klara Weinfeld, uma das vítimas das experiências ali realizadas. A cena faz parte do documentário The Last Days, dirigido por Steven Spielberg e produzido por sua Fundação, que ganhou o Oscar de melhor documentário de 1999. Narra o ocorrido em 1944, nas áreas sob domínio alemão.

Considerado um dos momentos mais intensos do filme, o encontro Münch-Firestone choca menos pelas imagens, que mostram Klara Weinfeld ainda viva no campo de concentração, e mais pelas palavras do médico, segundo o qual seis meses era o tempo "normal" de permanência no "Instituto de Higiene", onde os alemães faziam experimentos para mudar a cor dos olhos dos judeus, entre outros.

Aos 92 anos, rosto sereno e voz tranqüila, sem evidências que lembrem o seu passado, Münch é o retrato de um "avô simpático". Cinco anos antes de fazer o filme, então com 87 anos, Münch concedeu uma entrevista ao repórter Bruno Schirra, da revista alemã Der Spiegel, que foi republicada no Sunday Telegraph.

Sem remorso

Durante a entrevista, Münch, amigo íntimo de Josef Mengele, demonstrou a mesma frieza que revelaria no filme de Spielberg. Defendeu o tratamento que os nazistas conferiam aos judeus e as experiências que ele próprio realizava. Segundo a reportagem, "Münch tomou parte no maior crime da história, mas não sente remorsos".

Apesar de ter participado dos processos de seleção em Auschwitz-Birkenau, que decidiam quais os prisioneiros que iriam para as câmaras de gás e quais seriam poupados, após a Segunda Guerra Mundial ficou conhecido como "o bom médico de Auschwitz", pois teria salvo muitos judeus.

A entrevista foi realizada na residência de Münch, depois de, juntamente com o repórter, ele ter assistido, durante três horas e sete minutos, o filme A Lista de Schindler, de Spielberg. Olhando tranqüilamente para as imagens das câmaras de gás que surgiam na tela, para as mulheres e crianças assustadas e desesperadas, afirmou: "O processo de seleção foi retratado fielmente. É absolutamente verdadeiro". Ele sabe o que diz, afinal, protagonizou aqueles fatos.

Münch passa a falar, então, do que ocorria em Auschwitz, de como os judeus eram amontoados em pilhas, uns sobre os outros, e de como morriam sem que os corpos queimassem. "Na verdade, havia um problema técnico nas câmaras de gás, mas foi solucionado". Sentado em uma poltrona de couro, sob um crucifixo, acaricia seu gato Peter e descreve como os prisioneiros cavavam valas ao redor das plataformas, para coletar a gordura dos cadáveres, e como a jogavam novamente sobre os corpos para que queimassem facilmente.

Sua esposa, sentada em outra poltrona, na mesma sala, não parece sequer ouvir as reminiscências do passado de seu marido. Subitamente, no entanto, ela diz: "Tenho vergonha de ser alemã". "Eu, não", retruca Münch. Ele até admite que a vida em Auschwitz não tenha sido muito fácil para os judeus, mas acredita que também não foi fácil para ele. O repórter então lhe pergunta o que faria se encontrasse um judeu novamente. Encolhe os ombros e responde: "Eu não conheço nenhum judeu que esteja vivo. Conheço somente os judeus de Auschwitz".