Foi na Espanha dominada pelos muçulmanos, durante os séculos X, XI e primeira metade do XII, que os judeus espanhóis criaram uma cultura extraordinária, atingindo altíssimos níveis em todos os aspectos do conhecimento.

Foi uma época marcada pela genialidade e versatilidade intelectual que, impulsionada pela sofisticada cultura árabe que florescia na Espanha medieval, chamada de Sefarad no hebraico medieval, produziu centenas de obras tanto no campo da filosofia e teologia judaica como em todos os ramos da ciência e da literatura. 

Para o judeu sefaradita, durante a Idade de Ouro, o conceito de “ideal” era o de um homem que combinasse em seu espírito, de forma harmoniosa, uma fé absoluta nas leis e preceitos judaicos, vivo interesse pela teologia e filosofia judaicas e elevado apreço pela cultura geral e ciências naturais. Uma afirmação feita pelo historiador e professor Josef H. Yerushalmi, em outubro de 1995, em palestra proferida em São Paulo, na Congregação Beneficente Sefaradi Beit Yaacov, revela esse conceito: “No íntimo da aristocracia judaica espanhola estava a imagem do judeu que combinava harmoniosamente elementos que, outras comunidades, em outra época, considerariam contraditórios ou conflitantes – uma escrupulosa observância religiosa aliada aos modos e costumes cosmopolitas; a Torá e a sabedoria grega; uma intensa devoção à tradição judaica e uma abertura genuína à cultura não-judaica circundante”.

Mas essa era de brilhantes êxitos culturais e intelectuais não foi totalmente “dourada”, como se supõe. O apogeu da cultura hispano–judaica coincidiu exatamente com o de um renovado fanatismo religioso muçulmano que destruiu comunidades inteiras, colocando um fim à permanência dos judeus na Espanha Andaluza.

A invasão muçulmana

A expansão árabe, iniciada após a morte de Maomé, atingiu a Península Ibérica no século VIII, enquanto a região era dominada pelos visigodos. No ano de 711, Tarik ibn Ziyad, general e governador da faixa ocidental do Magrebe, chefiando um exército de sete mil homens e contando com o auxílio de convertidos berberes, venceu o visigodo Rodrigo, rei da Espanha. O poderio islâmico se estendeu com rapidez pela Península Ibérica. Prosseguindo em direção norte, os exércitos muçulmanos chegaram até a cidade de Tours, na França central, onde foram derrotados pelos francos, em 732. A expansão muçulmana tinha alcançado seu ponto máximo no ocidente e as conquistas praticamente cessaram a partir de então. A Espanha chamada de Al-Andaluz ou Andaluzia (denominação árabe da Espanha muçulmana) passou a fazer parte do Império Islâmico. 

Os invasores muçulmanos foram bem acolhidos pelos judeus espanhóis que, em muitos casos, ajudaram-nos a sobrepujar os cristãos. Durante o século VII os judeus foram perseguidos pelo reis visigodos. Obrigados a se tornar cristãos para poder viver na Espanha, muitos foram mortos, outros expulsos ou batizados à força. Abertamente, não havia mais judeus na Espanha na época da invasão islâmica, mas assim que os novos governantes assumiram o poder, a vida dos judeus melhorou sensivelmente e muitos judeus “secretos” – chamados de cripto-judeus ou marranos – voltaram a praticar abertamente seu judaísmo enquanto outros se estabeleceram na Al-Andaluz vindos das demais partes da região e da Europa.

A dinastia de califas omíadas, que, sediada em Córdoba, passou a dominar a região durante praticamente três séculos, criou na Andaluzia uma cultura cosmopolita e secular. Para a civilização ocidental, as contribuições da Espanha islâmica foram inestimáveis, pois, quando os muçulmanos entraram no sul da Espanha, grande parte da Europa havia sido devastada por bárbaros vindo do norte, a civilização clássica greco-romana tinha desaparecido e a Europa vivia um longo período de trevas imposto pela Igreja. Enquanto o resto do continente europeu afundava no obscurantismo e na ignorância, os árabes mantiveram por quase cinco séculos uma civilização altamente sofisticada e requintada na Espanha muçulmana.

A vida sob os omíadas

Os califas omíadas eram governantes liberais e não exerceram qualquer tipo de discriminação opressiva contra os judeus. Pelo contrário, eram considerados um segmento útil e leal da população, sendo tratados com dignidade e respeito. Livres para exercer qualquer atividade cultural ou econômica, os judeus de Sefarad ingressaram em vários setores da economia, incluindo o comércio, as finanças e as profissões liberais. Desenvolveram habilidades políticas e se destacaram na administração pública. Tornaram-se médicos famosos, poetas ilustres, filósofos, astrônomos, cartógrafos de renome e também diplomatas e generais. A relação que a comunidade judaica estabelecera com os califas trouxe para os judeus sefaraditas uma maneira de viver agradável, produtiva e satisfatória.

Foi este contexto em Sefarad que, em pouco tempo, atraiu milhares de judeus de outras partes do Oriente Médio e da África do Norte, que logo se estabeleceram nas cidades de Córdoba, Granada, Sevilha, Lucena e Toledo. A comunidade judaica de Sefarad tornou-se a mais populosa e rica fora da Babilônia. O estudo e o saber eram incentivados em todas as áreas, sábios e eruditos judeus gozavam de privilégios e honras parecidos aos dispensados aos estudiosos muçulmanos.

O judaísmo andaluz entrou na chamada Idade de Ouro da cultura judaica no século X, ao se tornar independente do protecionismo religioso e intelectual da comunidade da Babilônia. Os laços que prendiam os judeus sefaraditas às autoridades gaônicas daquela região começaram a se afrouxar quando, em 929, o califa Abd-al-Rahman III rompeu com o Califado Central e declarou o Califado de Córdoba independente de Bagdá e da autoridade religiosa muçulmana do Oriente. 

O califa Abd-al-Rahman III foi um governante extraordinário, liberal e tolerante tanto na forma de pensar quanto nas suas ações. Durante seu reinado, o Califado de Córdoba tornou-se um importante centro econômico e cultural. Foi a primeira economia urbana e comercial a florescer na Europa, depois do desaparecimento do Império Romano. Um apaixonado pela filosofia, poesia, teologia e ciências seculares, Rahman estimulou e patrocinou o conhecimento sob todas as formas e em todas as áreas. 

Sem medir esforços, importou livros de Bagdá e recrutou sábios, poetas, filósofos, historiadores e músicos. Construiu uma infra-estrutura composta de bibliotecas, hospitais, instituições de pesquisa e centros de estudos, criando a tradição intelectual e o sistema educacional que tornariam a Espanha um centro de referência pelos quatro séculos seguintes. No século X, Córdoba, com uma população de mais de 500 mil habitantes, perto de 60 mil palácios e 70 bibliotecas (uma das quais abrigava 500 mil manuscritos e uma equipe de pesquisadores, tradutores e encadernadores), tornara-se um centro mundial e rivalizava em opulência cultural e econômica com o Cairo, Damasco e Bagdá.

Para os judeus, também foi o início de uma época áurea. Na Espanha do século X havia prósperas comunidades em não menos de 44 cidades, muitas com suas próprias ieshivot. Foi neste período que o judeu Hasdai Ibn Shaprut (915-970), um dos homens de confiança do califa Abd-al-Rahman, lançou as bases para o florescimento da cultura judaica. Excelente médico e diplomata, Ibn Shaprut tornou-se líder da comunidade judaica de Córdoba e passou a incentivar o estudo da Torá, do Talmud, fazendo renascer o hebraico. Generoso patrono, Ibn Shaprut convidava para visitar a cidade sábios tal-múdicos, filósofos, poetas e médicos judeus. 

A erudição e a sede pelo conhecimento dos judeus sefaraditas ia muito além da excelência nos campos da Torá e do Talmud e da língua hebraica. Incluía – de forma paralela e harmoniosa – todos os outros ramos do conhecimento humano. Os sábios e eruditos judeus eram também grandes médicos, poetas, filósofos, matemáticos, cartógrafos e astrônomos. Os judeus espanhóis – assim como os cristãos – tornaram-se emissários das atividades cientificas e culturais da Espanha pelo resto da Europa. 

Mas a supremacia do Califado de Córdoba não era sólida e ventos desfavoráveis estavam prestes a derrubá-lo do poder, sinalizando para os judeus sefaraditas o início do fim da era de tranqüilidade na Espanha muçulmana. Quando berberes muçulmanos tomaram Córdoba, fazendo desmoronar a dinastia dos califas omíadas, os judeus viram-se diante de um dos primeiros momentos negros da Idade de Ouro. No entanto, por algum tempo, a situação ainda se manteve estável.

Os perigos em
Al-Andaluz

A vida judaica na Espanha muçulmana não estava isenta de ameaças. De um lado, havia os perigos inerentes à dinâmica da política islâmica vigente em qualquer território governado por muçulmanos. Do outro, a pressão imposta sobre os governantes muçulmanos pelos exércitos cristãos determinados a reconquistar a Península Ibérica do domínio mouro resultou na entrada, na Espanha, de tribos islâmicas vindas do norte da África. 

Em todo o mundo muçulmano o conflito entre as grandes dinastias religiosas que se sucediam no poder era exacerbado por disputas doutrinárias sobre o rigor na aplicação da lei islâmica. Quanto mais rica e mais liberal uma dinastia, mais vulnerável se tornava ao fanatismo de fundamentalistas. E quando uma dinastia liberal era substituída por uma mais fanática, os judeus (assim como os cristãos e outras minorias) eram imediatamente expostos aos riscos inerentes à sua condição de dhimmis. O estatuto de dhimmis era mais do que um acordo que obrigava judeus e cristãos a pagarem certas taxas e impostos para que lhes fosse permitido viver em terras muçulmanas sem aceitar o Corão. A dhimma, na realidade, era um pacto que suspendia, mas não abolia, o “direito” do conquistador muçulmano de matar e confiscar a propriedade do “infiel” conquistado. Os dhimmis eram cidadãos de segunda classe e sobre eles podia ser aplicada uma série de leis destinadas a rebaixá-los social e economicamente. O rigor na aplicação das leis dependia de cada governante muçulmano que podia revogá-las ou aplicá-las com maior ou menor severidade, a seu bel prazer. 

Existiu, durante muito tempo, entre os governantes da Espanha muçulmana, um certo consenso sobre a “utilidade“ dos judeus espanhóis e uma decisão de ignorar algumas das exigências mais rigorosas da lei muçulmana no tratamento das minorias. Mas essa posição foi abandonada quando o fanatismo religioso tomou conta dos novos governantes da Espanha islâmica. 

Quando, no século XI, desmembrou-se a dinastia omíada, dando inicío à Reconquista Espanhola, tornou-se evidente a causa maior que iria determinar o fim desse período: a inabilidade dos sucessivos governantes da Espanha islâmica em manter uma unidade política para enfrentar os exércitos cristãos. Quando, se sentem ameaçados pelos exércitos cristãos, os muçulmanos procuram auxílio nas seitas berberes fundamentalistas do Norte da África. Chegava ao fim a vida judaica na Espanha muçulmana.

A invasão almorávida

O desmembramento da dinastia omíada e a ausência de um poder forte por todo o século XI permitiram, na Andaluzia, o estabelecimento de uma série de pequenos estados islâmicos que variavam em extensão, recursos e poder. Os mais poderosos eram os de Toledo, Sevilha, Badajós e Granada. Em alguns destes, os judeus se sobressaíram ocupando cargos administrativos. O caso mais famoso foi o de Rabi Samuel Ibn Nagral Ha-Naguid (905-1055). Nascido em Córdoba, fugiu dos berberes que tomaram a cidade e se refugiou em Granada, onde se tornou vizir e comandante-chefe do exército. Rabi Ha-Naguid era o epítome do judeu sefaradita, uma síntese harmoniosa de feitos seculares e religiosos. Estudioso da Halachá, líder comunitário, estadista e poeta, considerava sua função política um “chamado Divino” para proteger seu povo e se empenhava pelo seu bem-estar. Além de ser pródigo com os pobres e os necessitados, patrocinou os estudos de um grande número de eruditos e intelectuais judeus. 

Quando os reis cristãos começaram a representar uma ameaça real para os domínios islâmicos e Alfonso VI retomou Toledo, em 1085, os governantes muçulmanos pediram auxílio aos almorávidas, uma dinastia berbere islâmica do norte da África. Os almorávidas atenderam o chamado e derrotaram os cristãos, mas, em contra-partida, tomaram o poder para si próprios. A meta inicial dos almorávidas era estabelecer uma comunidade política na qual os princípios islâmicos fossem aplicados. Violentos e impre-visíveis, introduziram na Espanha muçulmana uma intolerância até então desconhecida. Por algum tempo, a situação dos judeus tornou-se precária. Os governantes almorávidas os excluíram da administração do estado. Ameaçaram a rica comunidade judaica de Lucena com a conversão forçada, mas aceitaram um pagamento vultuoso, um alto resgate, para aceitar que a comunidade não reconhecesse o Islã.

Mas os judeus tinham muito a oferecer aos novos conquistadores em todos os setores, em particular na área administrativa e diplomática, e com o tempo conseguiram reconquistar um tratamento favorável. Assim, a primeira metade do século XII assistiu o clímax da Idade de Ouro do judaísmo sefaradita. A maioria de seus maiores expoentes viveram justamente entre os séculos XI e XII. 

Almôadas e a fuga dos judeus

O derradeiro e abrupto fim das comunidades judaicas na Espanha muçulmana ocorreu 50 anos mais tarde, com a chegada à Espanha, em 1146, de novas tropas muçulmanas ainda mais fanáticas – os almôadas. Berberes do norte da África, os almôadas se uniram para lutar contra os almorávidas. Seu objetivo era terminar com a corrupção e a lassidão dos governantes islâmicos em seguir e aplicar as leis do Corão. Esses novos guerreiros sitiaram Marrakesh e rapidamente passaram a controlar toda a Espanha muçulmana, terminando com o domínio almorávida. 

O fanatismo reli-gioso e a intolerância incondicional trouxeram insatisfação à população, em geral, e grande sofrimento e destruição para as comunidades judaicas do sul da Espanha. Fecharam sinagogas e ieshivot. Os judeus passaram a ser obrigados a usar roupas que os diferenciassem e não podiam mais nego-ciar livremente. E como na época dos visigodos, passaram a ser obrigados a se converter – desta vez ao islamismo – sob a ponta de espada. A emigração de boa parte dos judeus da Andaluzia a partir do século XII, provocada pela intolerância de seus governantes, fez a cultura judaico-hispânica perder o antigo brilho.

As comunidades judaicas do sul da Espanha não conseguiram sobreviver à perseguição. Muitos judeus, entre os quais Maimônides, fugiram para a África à procura de governantes muçulmanos mais tolerantes; outros foram para o norte da Espanha, então sob domínio cristão. Sentiam-se mais seguros sob domínio cristão, que os recebia de braços abertos. Os judeus tentaram reconstruir na Espanha cristã a cultura e o modo de vida que haviam desenvolvido nos séculos precedentes no sul da Espanha, o que conseguiram por algum tempo. Mas, quando, em 1492, Granada, a última fortaleza muçulmana, foi reconquistada pelos exércitos cristãos, os reis espanhóis decidiram colocar fim à presença judaica na Espanha. Expulsaram, no mesmo ano, todos os judeus de seus territórios. Era o fim da vida judaica na Espanha, os judeus espanhóis sefaraditas se espalharam pelo mundo levando consigo sua cultura e suas tradições que perduram até nossos dias.n

Bibliografia:

• Prof. Yosef H. Yerushalmi palestra proferida na Sinagoga Beit Yaacov no dia 25 de outubro 1995 “Os judeus sefaraditas entre o cristianismo e o islamismo Suplemento Especial Morashá;
• Samelson, William, El legado Sefaradi: romances y relatos judeo-espanõles;
• Borger , Hans, “Uma História do povo judeu”, de Canaã à Espanha.
Editora Sefer;
• Johnson, Paul “História dos Judeus, Editora Imago;
• Seltzer, Robert, “Povo judeu, pensamento judaico “, editor A Koogan.