O GENERAL ARIEL SHARON, SEMPRE CHAMADO DE ARIK, DEIXOU UM LEGADO DEFINITIVO PARA O ESTADO DE ISRAEL: SUA SOBREVIVÊNCIA. GRAÇAS À SUA ATUAÇÃO NA GUERRA DO YOM KIPUR, O ESTADO JUDEU SE LIVROU DE UMA CATÁSTROFE DE PROPORÇÕES INIMAGINÁVEIS.

Em outubro de 1973, o Egito lançou uma  bem sucedida ofensiva contra Israel, rompendo uma linha de defesa concebida depois da  Guerra dos Seis Dias, junto ao canal de Suez,  pelo general Bar Lev, então chefe do  Estado-Maior de Israel. Essa esteira de trincheiras e casamatas de concreto, que recebeu seu nome, tinha como finalidade garantir a presença israelense na Península do Sinai. Àquela altura, o general Sharon já havia sido transferido para a reserva, amargurado por não ter sido nomeado chefe do Estado-Maior conforme esperava.  Por isso mesmo, permaneceu atuante na vida pública. Costumava declarar, em sucessivas palestras e entrevistas,  que a dita Linha Bar Lev era inútil e contrariava duas  sólidas doutrinas militares postas em prática pelo exército de Israel desde a fundação do Estado – o fator surpresa e, em eventual combate, a rápida mobilidade. Tanto assim que, certa ocasião, bem antes da Guerra do Yom Kipur, depois de inspecionar a Linha Bar Lev, Arik fixou um ponto na margem barrenta do outro lado do canal, com cerca de um metro de altura, e disse para si mesmo: “Se algum dia nós tivermos que atravessar tanques e tropas para o lado de lá, aquele será o lugar ideal”.

Na véspera de Yom Kipur do ano de 1973, Arik recebeu em sua casa, em Beersheva, a visita de um oficial da Inteligência do exército que lhe mostrou uma série de fotografias aéreas. As imagens revelavam uma compacta formação de forças egípcias perto do canal de Suez. Arik percebeu de imediato que uma guerra estava para estourar. Moshe Dayan, ministro da Defesa, recomendou, sem maiores formalidades, que Sharon se reintegrasse ao comando da frente sul.

Quando os egípcios desfecharam seu ataque e dominaram a Linha Bar Lev, eliminando dezenas de soldados israelenses e fazendo mais de uma centena de prisioneiros, o comandante da região sul de Israel era o general Shmuel Gonen. Pouco experiente, faltou-lhe a capacidade para uma reação imediata. A iniciativa de Dayan de reconvocar Sharon provocou um conflito de egos e rivalidades, como costuma acontecer em qualquer corporação. Quando ele chegou ao posto de comando, ouviu o seguinte de Gonen: “Essa guerra terá o  meu rótulo e não o seu”. Este desagradável entrevero  não teve uma só testemunha. Foi-me narrado pelo próprio Arik.

Apegado à possível vulnerabilidade daquele ponto que havia avistado do lado egípcio, começou a traçar um ambicioso plano que consistia em atravessar o canal de Suez. A inusitada travessia, caso consumada, tinha três finalidades. Primeira: surpreender os egípcios e posicionar tropas e blindados na direção do Cairo. Segunda: dobrar à esquerda e seguir rumo à cidade de Suez para ocupá-la. Terceira: Israel ficaria na retaguarda do terceiro exército egípcio impedindo que este recuasse ou avançasse pelo Sinai, permanecendo, assim, estático em função do cerco ao qual estaria submetido. Em princípio parecia uma ideia estapafúrdia. 

Como atravessar o canal? Sharon convocou engenheiros militares e lhes pediu que elaborassem a construção de uma ponte móvel que se apoiaria sobre boias a serem colocadas nas águas do canal. 

Entretanto, um deslocamento de tamanha proporção e de sucesso duvidoso tinha que ser aprovado nas mais altas esferas de planejamento estratégico. O plano de Sharon começou a ser avaliado por um grupo de oficiais de altas patentes liderado por David Elazar, chefe do Estado-Maior, e Chaim Bar Lev,  que, apesar de estar ocupando na ocasião o Ministério do Trabalho, voltara às fileiras do exército e tinha voz ativa, quase preponderante, nas decisões militares. Todos foram contra a pretensão de Arik. Mas, como levar a decisão a Sharon, conhecido por uma impetuosidade que muitas vezes beirava a insubordinação? A missão de dissuadir Sharon do projeto da ponte móvel competiu a Bar Lev.  Foi tensa e dramática a discussão entre os dois. Arik confidenciou-me que, em dado momento, controlou-se para não agredir Bar Lev fisicamente tal a sua frustração somada à indignação.

O assunto voltou à consideração  de Elazar, ainda indeciso no tocante à imprevisível travessia do canal  de Suez. Por fim, com mão forte, entrou em cena Moshe Dayan.  Ele foi ao encontro de Sharon, inteirou-se do planejamento da ponte e conseguiu convencer o Estado-Maior de que, em face da destruição da Linha Bar Lev, da presença egípcia no Sinai e de outros tantos desdobramentos da guerra, as Forças de Defesa de Israel só teriam como alternativa arriscar uma incursão no território inimigo. (Ao norte, felizmente, o exército israelense conseguia conter a ofensiva da Síria nas colinas do Golan). Enfim, a ponte começou a ser construída na décima noite depois do início da guerra. Até então, a sobrevivência de Israel era sombria e imprevisível.

A implantação da ponte e a consequente travessia dos tanques  e demais blindados israelenses, sob  fogo egípcio incessante, foi a mais  árdua e vitoriosa batalha travada pelo exército de Israel em toda a história do país. O jornalista David Landau, ex-editor do jornal Jerusalem Post e um dos mais ácidos críticos de Sharon ao longo dos anos, escreveu  em um livro há pouco publicado:  “O êxito na travessia se deve à audácia, à tenacidade e à devoção de Ariel Sharon por ações ofensivas. Sejam quais forem as controvérsias em torno de seu nome, ele tem um lugar assegurado no panteão de Israel por conta da decisiva batalha travada no transcurso daquela noite”.

Finda a Guerra do Yom Kipur, Sharon esperava, e com toda a razão, que dessa vez fosse nomeado chefe do Estado-Maior. Se isso tivesse acontecido, ele cumpriria um mandato de dois anos no desejado cargo, após os quais provavelmente se retiraria da vida pública. Entretanto, por causa das intrincadas injunções políticas ocorridas dentro do majoritário Partido Trabalhista, ele foi preterido e o posto coube a Mordechai (Motta) Gur, um dos mais destacados comandantes na Guerra dos Seis Dias. Fotografei logo depois do conflito, as inscrições feitas a cal nos tanques e blindados e os grafites existentes em muros de cidades israelenses nos quais se lia: “Arik, melech Israel (Arik, rei de Israel)”.

Com o manto, mas sem o poder da realeza, Arik recorreu a uma série de empréstimos bancários e comprou uma grande fazenda perto da cidade de Ashkelon, ao sul de Israel, tendo como vizinho o Kibutz Bror Chail, fundado por jovens brasileiros nos anos 50. Dedicou-se a atividades agrícolas dando prioridade para a plantação e exportação de melões ao mesmo tempo em que a política começava a se infiltrar em sua vida até então apenas dedicada à carreira militar. Ele sentia que tinha contas a acertar com o establishment.

Tal acerto resultou na formação do Partido Likud, liderado por Menachem Begin, que chegou ao poder nas eleições seguintes, devendo sua vitória em grande parte à popularidade de Arik, o número dois da lista do partido. Suas decepções por jamais ter sido chefe do Estado-Maior foram compensadas quando Begin o nomeou ministro da Defesa. Encontrei-me com ele em Nova York, em 1982, durante uma visita oficial que fez aos Estados Unidos. Perguntou-me quando eu iria de novo a Israel. Disse que viajaria quando ali ocorresse algum evento importante. Respondeu-me com um tom de seriedade: “Então logo, logo, você virá”. Era a véspera da invasão do Líbano que Arik comandaria naquele ano, mas eu não tive a menor ideia de que ele estivesse se referindo a uma ação militar. A invasão do Líbano acabou se tornando um dos momentos mais cruciais e controvertidos de sua vida pessoal e de sua trajetória como soldado. Poucos sabem que muito antes da invasão, Arik tinha mantido encontros secretos com Bashir Gemayel, líder dos cristãos falangistas libaneses. Essa foi a estratégia que ambos desenvolveram: na ação militar, Arik expulsaria a OLP do Líbano, uma permanência que desestabilizava o país e confrontava o poder de Bashir. Assim, sem a presença de Arafat, Bashir assumiria o poder e o Líbano faria a paz definitiva com Israel. A primeira parte do plano deu certo, obrigando Arafat a procurar abrigo na Tunísia. Na segunda parte, Bashir de fato subiu ao poder, no qual se manteve por apenas cinco dias: foi assassinado aos 35 anos de idade e substituído por Amin, seu irmão, incompetente e cético para incrementar os acordos anteriormente feitos por Bashir.

No enorme tumulto reinante no Líbano naquelas semanas,  um grupo de falangistas, disposto a vingar-se dos muçulmanos por  causa do massacre sofrido anos antes por seus correligionários na cidade  de Zahle, invadiu no dia 16 de setembro os campos de refugiados de Sabra e Chatila e perpetrou assassinatos contra a sua população. A culpa pelos crimes recaiu sobre Sharon, acusado por não ter evitado que aquele massacre acontecesse. Tratava-se de um argumento subjetivo que logo contaminou a opinião pública mundial e, inclusive, estendeu-se à de Israel. Era, por absurdo, como se o próprio Arik tivesse dado a ordem para o ataque contra os refugiados.

O massacre de Sabra e Chatila ganhou tamanha dimensão que o governo de Israel decidiu instituir uma comissão de inquérito para apurar aquele trágico acontecimento. A propósito, o famoso jornalista italiano Arrigo Levi escreveu no jornal La Stampa, de Turim: “É muito difícil apontar outra nação que, em tempo de guerra, se submeta a uma autocrítica tão severa e tão aberta”. A comissão foi presidida pelo juiz Itzhak Kahan, da Suprema Corte do país. Segundo o primeiro relatório da investigação, quando as tropas israelenses tomaram conhecimento do que havia acontecido, intervieram e obrigaram os falangistas cristãos a se retirarem dos campos de refugiados. Receberam, inclusive, manifestações de gratidão por parte da população muçulmana libanesa.

A opinião pública e a oposição ao Likud exigiram que a investigação fosse aprofundada. No final, a comissão atribuiu a Begin e a Sharon “um certo grau de responsabilidade” pelo massacre, estendendo o  mesmo conceito ao general Raphael Eitan, chefe do Estado-Maior. Enquanto os demais indiciados permaneceram em suas funções, Sharon anunciou que, para a preservação de sua dignidade, renunciaria ao cargo de ministro da Defesa. Foi um exemplo, um legado para os homens públicos de quaisquer países.

Entretanto, muito mais do que o relatório final da comissão, o que de fato atingiu o brio de Sharon foi uma reportagem publicada pela revista semanal americana Time na qual se lia que, durante uma reunião com a família Gemayel, Arik tinha incitado os falangistas a promoverem o massacre nos campos de refugiados como vingança pelo assassinato de Bashir. Era uma difamação sem nenhum fundamento e da maior gravidade. Anos depois, ouvi o seguinte de Sharon: “Quando eu soube do conteúdo da revista, o primeiro pensamento que me ocorreu, foi uma referência às infâmias contidas no livro apócrifo Protocolos dos Sábios de Sion, no qual os judeus são acusados de promoverem rituais de sangue.

A tal reportagem seguia o mesmo caminho, sujando minhas mãos com o sangue de inocentes”. O jornalista Uri Dan, já falecido, meu querido amigo e o mais leal escudeiro de Sharon por mais de 40 anos, contou-me que estava presente na reunião de Sharon com a família enlutada de Gemayel. Conforme seu relato, jamais houve, no dito encontro, a mais remota menção a um ato de vingança ou a um incitamento  para o massacre dos refugiados.

Sharon decidiu processar a revista Time, pedindo uma indenização da ordem de US$ 50 milhões e que também lhe custou uma fortuna com despesas legais. O processo se alongou por três anos de forma passional e tumultuada, na corte de Nova York, tendo à frente o juiz Abraham Sofaer, por acaso judeu. David Halevy, correspondente da Time em Israel, foi chamado para testemunhar e acabou confessando que a informação que transmitira à direção da revista não provinha de uma fonte confiável.

Os jurados do caso concluíram que a revista era inocente, mas Sofaer, em sua sentença, optou por uma solução salomônica, ou seja, uma solução que atingia os dois lados da questão. Por um lado, julgou que Sharon de fato tinha sido difamado; por outro, julgou que a revista agira sem intenção de malícia. De qualquer maneira, ficou o legado de Sharon no sentido de que tal sórdida acusação jamais tornaria a ser imputada a qualquer judeu em qualquer parte do mundo.

Outro momento polêmico da trajetória de Ariel Sharon foi a sua visita, em setembro de 2000, ao Monte do Templo, onde se situa a mesquita de Al-Aksa, no lado de Jerusalém com predominância de população árabe. Cercado por seguranças e hostilizado por populares, Sharon ali permaneceu por 45 minutos. Houve um  consenso na mídia internacional de que aquele passeio de Sharon configurava um intuito de provocação e, portanto, teria dado origem à segunda Intifada, ou seja, sucessivos atos de violência contra civis e militares israelenses. Foi uma conclusão longe da verdade.   A Intifada já vinha sendo preparada há algum tempo e se solidificou quando Arafat manteve, em julho, uma negociação com Ehud Barak, então primeiro-ministro de Israel, mediada por Bill Clinton em Camp David. Os radicais palestinos temiam que Arafat ali fizesse concessões, que na verdade não fez, e programaram ações rebeldes que acabaram eclodindo meses mais tarde. Por seu lado, Arik assim justificou a ida ao Monte do Templo: “Jerusalém é a capital de Israel. Nenhum judeu pode ser impedido de caminhar quando e como quiser na capital de seu país”. Note-se que Sharon sempre usou muito mais o termo judeu do que a condição de israelense.

De todos os homens públicos de Israel que tive o privilégio de conhecer pessoalmente, nenhum deles avistou o povo judeu com a abrangência de Sharon. Ele não gostava da palavra diáspora e via e sentia o povo judeu como uma só nação, uma só entidade. Numa conversa com o diplomata americano Elliot Abrams, especialista em assuntos do Oriente Médio, ele comentou: “Acima de tudo, sou um judeu e sinto que carrego nos meus ombros a responsabilidade pelo futuro do povo judeu. Não quero  que o futuro do povo judeu  dependa de ninguém, nem mesmo dos nossos melhores amigos”. Mais um momento polêmico e controverso em sua vida: a retirada de Gaza, quando era primeiro-ministro. Enquanto tantos outros líderes sempre disseram almejar a paz, ele passou da retórica para a realidade.   A retirada unilateral de Israel de Gaza, em 2005, poderia causar-lhe enorme dano político no plano doméstico, já que a retirada implicava em desalojar daquela região centenas de famílias de israelenses. Sempre pragmático, Arik analisou a questão de Gaza da seguinte forma:   “A esquerda não faria nada; a direita muito menos. Se eu não fizesse, ninguém faria. E se eu fracassar nessa iniciativa, nunca mais alguém tentará coisa alguma”. Arik não fracassou, mas enfrentou uma feroz oposição interna, o que correspondia a uma contradição: em todas as pesquisas de opinião pública a população israelense afirmava com larga maioria que era a favor da paz. Pois justamente quando Sharon deu um passo concreto nesse sentido, sofreu os mais inflamados ataques e críticas. Com bom humor, disse a um amigo: ”Durante toda a minha vida achei que devia proteger os judeus. Agora vejo que tenho que me proteger deles...”.

Ariel Sharon partiu sem concretizar  o projeto que mais ambicionava. Queria que as fronteiras de Israel estivessem totalmente definidas quando deixasse o posto de  primeiro-ministro. Segundo relato do mesmo Abrams, quando Sharon sofreu um leve derrame, no dia  18 de dezembro de 2005, recebeu  um telefonema do presidente  George W. Bush,  ao qual disse: “Estou me sentindo bem. Vou repousar alguns dias e em seguida volto ao trabalho”. Bush respondeu: “Nós precisamos de você com saúde. Regule melhor suas horas de atividades. Preste atenção na comida, você precisa emagrecer”.

Qual o legado de Ariel Sharon para  o povo de Israel e para o povo judeu?  Não há um legado, há inúmeros legados, mas todos forjados na mesma natureza: a sua inabalável e constante defesa do Estado Judeu desde os primeiros passos na carreira militar e na vida política, sempre seguro de suas ações e sem temer objeções. Um exemplo eloquente: a certa altura, decidiu começar a construir um muro na fronteira  com a Cisjordânia. O mínimo que a mídia disse é que se tratava de uma réplica do muro de Berlim, um verdadeiro muro da vergonha. Arik nem ouviu. E o fato é que naquela região o tão contestado muro está contribuindo para diminuir o terrorismo em pelo menos 90%.  Para quem imagina que o legado é um conceito abstrato, fui testemunha de seu legado concreto.

Transcrevo, a seguir, o que escrevi aqui na revista quando Arik adoeceu de vez em janeiro de 2006. Repito a essência do texto porque qualquer acréscimo seria supérfluo. Na terceira semana de outubro, dias depois do cessar-fogo, fui ao acampamento de Arik do outro lado do canal de Suez. Dali embarcamos num pequeno avião monomotor que nos levou até perto de sua casa, em Beersheva. Em seguida, rumamos para uma localidade próxima, Beeri, em cujo cemitério haveria uma cerimônia em homenagem aos militares mortos durante o conflito. Eram cerca de 400 túmulos rodeados pelas famílias dos soldados, a maioria jovens entre 18 e 30 anos de idade. Por quanto tempo eu ainda viver, jamais esquecerei o som daquele Kadish (oração pelos mortos) coletivo, entoado por centenas de vozes soluçantes, enquanto Arik também chorava.

Na saída do cemitério, centenas de pessoas se atiraram ao seu encontro para abraçá-lo e cumprimentá-lo. Lembro bem de um judeu humilde, decerto de procedência oriental, aparentando uns sessenta e tantos anos, que parou à sua frente e disse:  “Arik, a guerra levou meus dois filhos. Mas, se foi para o bem de Israel, que assim seja. Obrigado pela nossa salvação”.

Zevi Ghivelder,
ESCRITOR E JORNALISTA