O Êxodo do Egito, celebrado na festa de Pessach, permeia toda a lei e a tradição judaicas. A Hagadá, texto lido durante o Seder, ensina que em cada geração é dever de todo judeu sentir-se como se ele próprio tivesse saído do Egito.
Efetivamente, a Torá nos ordena “...para que todos os dias da tua vida te recordes do dia da tua saída da terra do Egito” (Deuteronômio 16:3). Instrui-nos, também, que se acaso nossos filhos nos perguntarem por que seguimos esses mandamentos, deveremos responder: “...pelo que o Eterno me fez quando saí do Egito” (Êxodo 13:8).
A lei judaica e seus mandamentos estão vinculados ao Êxodo. O primeiro dos Dez Mandamentos é a afirmação Divina de que Ele é o Senhor, nosso D’us, que nos tirou da terra do Egito, da casa da escravidão (Êxodo 20:2). Ao invés de Se declarar como o Criador de todo o universo, D’us apresenta-Se como O responsável por ter libertado o povo judeu da servidão egípcia.
O Talmud menciona que o povo judeu necessita, sempre, de um sinal de seu vínculo com D’us, representado através da colocação dos tefilin e da observância do Shabat (Eruvin 96a). A Torá menciona quatro vezes o mandamento do uso dos tefilin, duas das quais relacionando-o com o Êxodo: “E será para ti como um sinal sobre tua mão e como lembrança entre teus olhos, para que esteja a Lei do Eterno em tua boca; pois com mão forte te tirou o Eterno do Egito” (Êxodo 13:9). E, mais adiante: “E será como um sinal sobre tua mão e por meio de filactérios (tefilin) entre teus olhos, porque com mão forte nos tirou o Eterno do Egito” (Êxodo 13:16).
O mandamento de guardar o Shabat também é associado com o Êxodo: “Guardarás o dia do Shabat para santificá-lo, como te ordenou o Eterno, teu D’us...E de que servo foste na terra do Egito, e que de lá te tirou o Eterno, teu D’us, com mão forte e braço estendido; portanto te ordenou o Eterno guardar o dia de Shabat” (Deuteronômio 5:12-15).
É evidente que o Êxodo foi de grande importância histórica para o povo judeu. Mas por que estaria relacionado com os mandamentos religiosos? E por que, milhares de anos mais tarde, somos obrigados a lembrá-lo e a transmiti-lo a nossos filhos?
Lições do Êxodo
Na Torá vemos que D’us apresenta-se sob vários Nomes. Mas há dois destes que são, quase sempre, utilizados: um é Elokim, enquanto o outro é composto de quatro letras hebraicas: yud, hei, vav, hei. Este último Nome, que jamais pode ser pronunciado, nem mesmo nas orações, é traduzido como “meu Senhor” ou “o Eterno”.
Os nossos sábios assinalam que o nome Elokim tem o mesmo valor numérico que a palavra “natureza”. Isto representa o envolvimento de D’us com o mundo no curso natural dos acontecimentos, quando o homem é julgado com rigor e justiça. O Nome de quatro letras representa o atributo Divino da misericórdia, quando Ele julga o homem, repleto de perdão e de imerecida bondade, realizando milagres e maravilhas.
Uma leitura atenta da Torá revela que apesar da idolatria que predominava no Egito, os egípcios acreditam em D’us. Ao serem surpreendidos com a praga dos piolhos, os conselheiros do faraó aconselham-no com as palavras: “Isto é o dedo de D’us” (Elokim) (Êxodo 8:15). E, no entanto, quando Moisés se encontrou diante do faraó e lhe transmitiu a ordem de D’us de libertar o povo judeu, o faraó lhe responde que como desconhecia o Eterno (o Nome de quatro letras), não libertaria o povo de Israel (Êxodo 5:2).
Apesar de os egípcios terem conhecimento da existência de D’us, ainda assim adoravam outros deuses e a própria natureza, por acreditar que cada um desses fosse uma fonte independente de poder no mundo. Até mesmo o Rio Nilo e o faraó eram tidos pelos egípcios como divindades a serem reverenciadas.
Não se trata de simples coincidência o fato de que o D’us dos hebreus tivesse castigado o Egito com pragas relacionadas à natureza. O rio adorado pelos egípcios vira um mar de sangue e suas terras, colheitas, posses e corpos são presa de uma série de catástrofes.
D’us ridiculariza tudo aquilo em que acreditavam. E ainda assim, o faraó não percebe ou finge não perceber que O Eterno, D’us de Israel, e o D’us da natureza (Elokim) são Um Único e Mesmo, e que não há outras forças reinantes no mundo. D’us então ordena a Moisés que transmita este aviso ao faraó: “Assim falou o Eterno, D’us dos hebreus: Envia o Meu povo para que Me sirva. Porque desta vez Eu mandarei todas as Minhas pragas a teu coração, a teus servos e a teu povo, para que saibas que não há como Eu em toda a terra. Pois agora poderia estender Minha mão e ferir a ti e a teu povo com a pestilência, e serias aniquilado da terra. Entretanto, por isto é que te fiz ficar, para mostrar-te Minha força, e para que Meu Nome seja anunciado em toda a terra” (Êxodo 9:13-16). A mensagem é clara: o mundo não havia sido criado por D’us para ser abandonado nem tampouco deixado ao acaso das vicissitudes do destino, especialmente quando um perverso faraó acreditava reinar, supremo. Que os maus saibam disto e que a ruína do Egito lhes sirva de lição. E quanto aos bons e justos deste mundo, ainda que temporariamente se vejam cercados de problemas e sofrimento, devem ter a certeza de que D’us está sempre presente, a seu lado, em pleno controle de Seu mundo.
Aí está contida uma lição fundamental do Êxodo. Para que os homens não errassem como o fizeram os egípcios, o primeiro dos Dez Mandamentos é a revelação Divina de que Ele é o Eterno que tirou os judeus da escravidão no Egito. Se D’us Se tivesse revelado como o Criador de tudo, poderíamos também acreditar que Ele estivesse confinado a este mundo tão natural por Ele criado. Os relatos celebrados em Pessach nos lembram que só há Uma Única Fonte de todas as forças existentes no mundo. O mesmo D’us que fez de todos os rios do Egito mares de sangue, Este mesmo D’us pode fazer cair de joelhos o mais poderoso dos impérios, ao passo que pode elevar os escravizados e oprimidos às maiores alturas espirituais e materiais. Assim sendo, o Êxodo nos ensina que D’us está contido na natureza e além. Ele é Onipresente, está em todas as partes – nos Céus e, também, como Ele próprio ordena a Moisés que diga ao faraó – “no meio da terra” (Êxodo 8:18). O Eterno ouve nossas preces, realiza milagres e está sempre atento aos atos e pensamentos mais recônditos de todos os seres. E, mais ainda, com Sua ubiqüidade, dá forma ao curso dos eventos, ainda que nem sempre nos apercebamos disto. Em verdade, como pregam os místicos, Ele define tudo o que é real: apesar de o homem ser dotado de livre arbítrio, tudo o que ocorre provém de D’us. Não há força, poder ou razão de ser que não seja a Sua. A Torá assim o atesta: “(Pergunta...) se tentou D’us vir e tomar para Si uma nação do meio de outra nação por meio de provas, de sinais e de milagres, como tudo o que fez por vós o Eterno no Egito, diante de vossos olhos? A ti foi mostrado para que soubesses que o Eterno, Ele é D’us, e não há outro além d’Ele” (Deuteronômio 4:34-35).
Os sinais entre D’us e o povo judeu – o Shabat, a colocação dos tefilin e vários outros – têm uma razão específica para estar correlacionados com o Êxodo. É um lembrete eterno de que D’us preocupa-se e está profundamente envolvido com os problemas dos homens. E, por isso, há um propósito Divino em se guardar os Seus mandamentos. Com a libertação do povo judeu do Egito e a subseqüente outorga da Torá, D’us revelou-Se diante de toda uma nação. Com isto, Ele ensinou ao homem que este tem um propósito na vida e, portanto, receberia leis e diretrizes para poder cumprir sua missão pessoal e coletiva. Nós somos obrigados a nos lembrar disto todos os dias de nossa vida.
O dom da liberdade
Logo após libertar o povo judeu do jugo egípcio, D’us lhes outorga a Torá. É importante notar que quando D’us primeiro se manifesta a Moisés, Ele emite a seguinte ordem: “Porque... depois de haveres tirado o povo do Egito, servireis a D’us sobre este monte” (Êxodo 3:12). Tratava-se do Monte Sinai, local onde o povo judeu iria receber os mandamentos Divinos, com o encargo de mantê-los e transmiti-los a todas as gerações futuras.
Vemos, na Torá, que da mesma forma como D’us tem vários Nomes, Ele também tem várias formas de descrever Seu relacionamento com o povo judeu. Ele os chama de “Meus filhos”, “Meu primogênito”, entre várias outras formas carinhosas. Mas, também, com freqüência, os declara “Meus servos”. A interpretação para tal é que por tê-los salvo do faraó, D’us tornou-se o novo Senhor dos judeus. Pois que está escrito: “...Eu sou o Eterno, vosso D’us, que vos tirei da terra do Egito. E guardareis todos os Meus estatutos e todos os Meus decretos, e os cumprireis; Eu sou o Eterno” (Levítico 19: 36-37). Em outras passagens, D’us dita ao povo judeu que seu propósito na vida é temer e servir a Ele: “E agora, ó Israel, o que pede o Eterno, teu D’us, de ti? Apenas que temas ao Eterno, teu D’us, que andes em todos os Seus caminhos, ames e sirvas o Eterno, teu D’us, com todo o teu coração e com toda a tua alma; que guardes os mandamentos do Eterno e os Seus estatutos que Eu te ordeno hoje, para o teu bem” (Deuteronômio 10:12-13).
Teria sido a liberdade adquirida durante o Êxodo uma troca de propriedade, ainda que por um Senhor infinitamente superior? Isto parece contradizer o próprio espírito de liberdade advindo da libertação.
Em verdade, o temor a D’us, da forma como é definido pela Torá e desde que adequadamente aplicado, constitui o próprio significado de liberdade. É a compreensão de que “não há outro além d’Ele” a permitir que o homem seja realmente livre, a optar por não fazer o mal a despeito das forças externas ou impulsos internos que pendam para o outro extremo. Este conceito é ensinado em um relato da Torá: quando o faraó ordenou que todos os recém nascidos judeus do sexo masculino fossem atirados ao mar, duas mulheres hebréias recusaram-se a cumprir a ordem. “E temeram a D’us as parteiras, e não fizeram como lhes havia falado o rei do Egito, e deixaram os meninos viver” (Êxodo 1:17). Seus nomes eram Shifra e Puá, que os sábios identificaram como Yocheved e sua filha Miriam. Como recompensa por terem temido a D’us, desafiando a maligna ordem do faraó, Ele as recompensou fazendo delas a mãe e a irmã de Moisés. Este seu filho e irmão tornar-se-ia não apenas o líder do povo judeu em sua libertação do jugo egípcio, mas também o maior profeta de D’us de todos os tempos.
A lição contida neste relato é o segredo da verdadeira libertação do homem. Enquanto o homem temer e obedecer a D’us, nenhum outro temor ou receio o deverá abater. Ele é livre para escolher a verdade, a justiça e o caminho da correção, a despeito dos imperativos e ameaças dos faraós de nosso mundo. Assim sendo, não é de surpreender que outros povos historicamente se tenham inspirado no Êxodo em sua luta pela liberdade. Os Estados Unidos, em particular, ao lutar contra os ingleses por sua independência e em sua luta interna pelos direitos civis de seus cidadãos, evocaram a memória do Êxodo dos judeus do Egito. Em referência direta à saída do povo judeu da escravidão para a liberdade, os fundadores da nação americana cunharam a frase: “Rebelar-se contra a tirania é obedecer a D’us”.
A obediência a D’us é, de fato, o ponto máximo da revolta contra a tirania. No momento em que o homem percebe que D’us não é apenas Elokim, mas também o Eterno, o Bondoso, Aquele que controla todas as ocorrências, nesse momento já não há mais nada ou ninguém a temer. Apesar de não o perceber, o faraó nada mais é do que um joguete nas mãos do D’us Vivo de Israel. Isto é ilustrado por um fascinante ensinamento chassídico. A Torá nos conta que antes de lançar a oitava praga contra os egípcios, D’us ordena a Moisés ir ao palácio do faraó e, mais uma vez, exigir dele a libertação do povo judeu. D’us diz a Moisés: “Vem ao faraó” (Êxodo 10:1). A escolha das palavras é estranha; a ordem deveria ter sido “Vá ao faraó”. Os místicos judeus explicam que D’us de fato dizia a Moisés “Vem Comigo ao faraó. Juntos entraremos no palácio da grande serpente. Juntos descobriremos o segredo mais cuidadosamente guardado pelo mal: o fato de que este mal, de fato, não existe. E quando aprenderes este segredo, nenhum mal há de te derrotar. Quando verdadeiramente absorveres este segredo, tu e teu povo serão verdadeiramente homens livres”.
A suprema libertação
A certa altura do Seder de Pessach, abrimos as portas para receber o espírito do profeta Eliahu, ou Elias. Também lhe dedicamos uma taça de vinho – a quinta taça do Seder. Em seu tempo, o profeta Eliahu declarou a D’us que todo o povo judeu O havia abandonado (Reis 19:10). E, por este motivo, o profeta visita todas as casas nos Sedarim de Pessach para testemunhar que, apesar dos milhares de anos de exílio e mesmo nas circunstâncias de maior provação, o povo judeu permaneceu fiel ao Eterno, e continua celebrando a outorga desse Seu presente – a liberdade.
O profeta Eliahu também visita o Seder pelo fato de este ser não apenas uma comemoração do passado, mas uma exaltação ao futuro. O Êxodo e todos os seus milagres, a libertação do povo judeu e sua jornada para a Terra Prometida, prenunciam um futuro de uma redenção ainda maior. Há um ensinamento que nos diz que o profeta Eliahu será aquele a anunciar a chegada dessa nova era.
Em nossas orações, denominamos a festa de Pessach de Zman Heruteinu, a “época de nossa liberdade”. Não nos referimos à mesma como “época de nosso júbilo”. Isto porque, apesar de suas maravilhas e milagres extraordinários, e apesar de ter sido feita justiça, não nos rejubilamos com o sofrimento e a morte de outros povos.
A libertação final, no entanto, será uma era de júbilo perene e ilimitado para todos os povos. Enquanto o primeiro Êxodo só envolveu o povo judeu, o próximo irá incluir o mundo todo. Todos os judeus retornarão à Terra de Israel e lá viverão em segurança para sempre. Toda a humanidade somente conhecerá a paz e a prosperidade. Não mais haverá sofrimento individual nem coletivo. Enfermidades, pobreza, ignorância, angústia e mesmo morte serão fenômenos do passado. E aqueles que já deixaram este mundo retornarão ao nosso convívio.
Ainda iremos nos reunir, todos, em Jerusalém, como proclamamos na conclusão do Seder de Pessach. Pois que o Eterno nos prometeu, em Miquéias 7:15, ...“Como nos dias de tua saída do Egito, Eu te mostrarei maravilhas”. Que seja a Sua vontade que isto ocorra de pronto, ainda em nossos dias.